Nesta semana, o
filósofo italiano Mario Perniola, de 60 anos, lança no Brasil o livro Pensando o Ritual
- Sexualidade, Morte, Mundo (Studio Nobel, 264 págs., R$ 26), em que reúne ensaios
publicados anteriormente em La Società dei Simulacri e Transiti.
"Não é necessário sermos grandes viajantes para perceber que o
mundo contemporâneo oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida
contraposição entre sagrado e profano, entre simbólico e pragmático, entre selvagem e
racional", escreve Perniola em sua introdução. Para explicar esse mundo
contemporâneo, utilizando especialmente os conceitos de trânsito, simulacro e rito sem
mito, Perniola recorre "não à Grécia antiga, que constitui o ponto de referência
por excelência do pensamento filosófico contemporâneo, mas à Roma antiga, que, na
literatura filosófica do século 20, é objeto de arraigada hostilidade". Outro
momento a que recorre é o barroco, também um período que, por um longo período, esteve
distante do pensamento filosófico.
Perniola participa nas sexta-feiras do Café Filosófico da Livraria
Cultura (Av. Paulista, 2.073, tel. 0-- 11 285-4033). Vai abordar a questão do ritual em
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
O clássico de Sérgio Buarque foi recentemente relançado na Itália. E
Perniola, há 18 anos, tornou-se um freqüentador do Brasil. Para o autor italiano, a
relação do brasileiro com os ritos e com o corpo faz lembrar a que tinham os romanos. O
ritual seria, mais que uma tradição ou um acontecimento coletivo, uma relação de cada
indivíduo com o próprio corpo.
Leia abaixo entrevista que o italiano concedeu ao Estado, por telefone, de
Roma.
Estado - O sr. escolheu como tema do Café Filosófico o livro Raízes do
Brasil. Por que razão?
Mario Perniola - Primeiro, porque esse é um livro fundamental para
entender o Brasil, ao lado de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e de Formação
do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. Segundo, porque esse livro, reeditado
recentemente na Itália, além da discussão em torno da questão da cordialidade e da
polidez, tem uma outra dimensão, que é o debate em torno do rito, um assunto em que o
Brasil oferece expressões muito interessantes para pensar.
Estado - O que, por exemplo?
Perniola - Estive no Brasil pela primeira vez há 18 anos. Desde então,
procuro voltar pelo menos duas vezes por ano. Encontro no Brasil, especialmente nas
cidades que mais visito, Recife e Salvador, uma relação com o rito e com o corpo que me
remete ao que ocorria na Roma antiga.
Estudei e aprendi com antropólogos e pesquisadores das religiões de
origem africana, como Pierre Verger. Considero o ritual uma espécie de pensamento do
corpo, em que a tradição cumpre um papel, mas que é sobretudo uma forma de as pessoas
se relacionarem com o próprio corpo.
Estado - Para o sr., a civilização romana é uma referência mais
importante que a grega. Por quê?
Perniola - Normalmente, os filósofos olham para a civilização grega
como a origem de tudo, e vêem Roma como uma repetição de uma tradição. Mas acho que
eles supervalorizam os gregos. Para mim, a civilização romana ajuda a pensar a sociedade
atual tão ou mais que a grega. Há no meu livro um pouco, o tempo todo, uma polêmica
subterrânea contra Heidegger. A filosofia heideggeriana dá uma grande importância à
questão da origem, do original. No mundo em que vivemos, o mundo pós-moderno, é o mundo
da cópia, da repetição, do simulacro. Ponho em questão essa idéia de originalidade,
de criatividade.
Estado - O original não existe, então?
Perniola - Eu acredito que há mudanças, mas que elas ocorrem lentamente.
Há formas que atravessam os séculos e se desenvolvem de uma maneira lenta, por isso uso
a palavra trânsito.
Estado - Mas essa idéia não está bastante próxima da de
"repetição diferente", de Heidegger?
Perniola - Sim e não, é uma questão delicada. Mas, para Heidegger, há
sempre uma valorização da origem, a celebração da criação.
Estado - O sr. utiliza a palavra trânsito para discutir a questão do
amor e Vênus como uma espécie de padroeira de uma forma de pensá-lo.
Perniola - Do ponto de vista histórico, temos três formas diferentes de
amor. O amor cortês, durante a Idade Média, o amor passional, no barroco, e o amor
romântico, no século 19. Mas agora vivemos a crise de todos esses modelos, e a questão
que se põe é como pensar o amor atualmente.
Talvez como o amor louco, mostrado pelos surrealistas, André Breton etc.
Eu, no entanto, não caminho nessa direção. Acredito, sim, numa participação que
implica, aos mesmo tempo, num certo distanciamento. O que parece mais importante, para
mim, é um novo tipo de experiência, que talvez poderia ser definida como "sentir de
fora".
Estado - E por que esse amor estaria ligado a Vênus?
Perniola - A palavra Vênus, inicialmente, não é nem masculina nem
feminina.
É neutra. Para mim, isso é muito importante: a nova sexualidade, o novo
amor vai além da divisão tradicional entre masculino e feminino. Escrevi um livro, O
Sex-Appeal do Inorgânico, em que defendo uma nova sexualidade marcada pela distância.
Estado - E onde entra a palavra trânsito?
Perniola - Na nova situação, as opções não seriam apenas o amor
romântico ou o libertino. Estaria aberta a possibilidade de caminhar entre esses dois
modelos, sem se ter de fixar em nenhum deles.
Estado - Uma das poucas imagens que ilustram seu livro é a do êxtase de
Santa Teresa. Por quê?
Perniola - Essa é uma representação do transe, e nesse aspecto o Brasil
tem um vasta experiência. É uma experiência muito importante, veja o que se passa em
Recife e Salvador. Há uma ligação profunda entre a sensibilidade barroca e esse
momento.
Estado - E o que é o transe, para o sr.?
Perniola - O transe, no fundo, não está ligado exatamente ao ritual. Há
também o transe selvagem, mas mesmo neles estão institucionalizados. São restritos a
algumas pessoas e situações específicas. Mas todos os outros são um momento particular
de processo ritual. Acho que está, assim, ligada a essa perspectiva de distanciamento. O
transe não significa ceder seu corpo à possessão de um deus. O que realmente me parece
importante, no transe, é a ligação com o próprio corpo, que se transforma numa
espécie de vestimenta.
Há, assim, algo que liga o transe de Santa Teresa e o que ocorre nas
religiões afro-brasileiras.
Estado - Haveria algum tipo de herança européia no transe
afro-brasileiro?
Perniola - Sim, talvez da região do Mediterrâneo, mais dos gregos que
dos romanos (risos), nesse caso. Segundo alguns pensadores, o transe se originou nessa
região e depois penetrou no continente africano. Aqui na Itália, há o ritual das
Virgens do Arco que se parece muito com os rituais afro-brasileiros, sobretudo por seu
caráter de confraria.
Estado - O sr. escreve que os meios de comunicação de massa, até o
momento, negam o caráter de simulacro.
Perniola - O que eu procuro demonstrar é que, na sociedade
contemporânea, estamos além da diferença entre a realidade e aparência. Isso me parece
um aspecto interessante, ir além da distinção tradicional entre o real e a aparente.
Estado - Para o sr., houve uma importante transformação na sociedade. O
que mudou e o que não mudou?
Perniola - Para mim, o grande momento de transformação foram os anos 60,
quando, nos países desenvolvidos, as novas tecnologias, como a televisão, se
popularizam. O que se acontece nesse momento? Passamos de uma perspectiva ligada ainda às
ideologias para uma outra dimensão, que em outro livro defini como sensologia. A
ideologia está ligada, sobretudo, ao pensamento.
A sensologia é mais uma certa maneira de sentir coletiva. Parece-me que a
nossa sociedade não é mais uma sociedade ideológica, mas uma sociedade sensológica.
Sensologia que se apresenta de formas diferentes: nos anos 60 e 70, pela contestação
revolucionária, nos anos 80 e 90, uma sensologia cínica. Vivemos agora uma sensologia
integralista, ligada ao catolicismo.
Mas isso não significa um retorno da religião. Não acredito que o
jubileu desse ano significa o retorno da fé. É uma sensologia religiosa.
Estado - E qual é o significado desse "retorno" da fé?
Perniola - Não é um retorno, é uma maneira de sentir, uma maneira de
sentir coletiva. A diferença é que isso pode mudar muito rapidamente, é algo em
movimento, sem raízes. Podemos definir nossa sociedade como uma sociedade da credulidade:
uma sociedade que, num certo sentido, não acredita em nada; e, em outro, acredita em
tudo. Um exemplo é a volta da superstição: não importa qual.
Estado - Não faz muito sentido perguntar isso a um filósofo, mas o sr.
vê isso de um modo positivo ou negativo?
Perniola - O que posso dizer é que, apesar de tudo, sinto-me contente de
viver nesse momento. (Haroldo Ceravolo Sereza,
OESP)
|