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O homem que faz o poder pisar nas nuvens

07/11/2001

Vidal Cavalcante/AE  RENZO NALON (com o molde de FHC): ‘Um pé nunca é igual ao outro. É como a impressão digital’


Renzo Nalon, dono da sapataria Pellegrini, cria calçados sob medidas para uma seleta clientela. Para adquirir um par de seus sapatos feitos a mão, até FHC entra na fila de espera

   Nos fundos de uma pequena loja em Santa Cecília estão reunidos os pés que sustentam alguns dos corpos que dirigem a Nação. As bases que dão apoio a Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer, Almir Pazzianoto, a empresários e outras personalidades são armazenadas em caixas de papelão amontoadas em compridas estantes de madeira. Fazem parte do acervo de uma quase centenária sapataria de São Paulo: a Pellegrini.

   "Olha aí o pé do presidente", aponta Renzo Nalon, o atual proprietário, depois de tirar da caixa um par de fôrmas de madeira número 41. As peças foram modeladas sob medida para FHC - sola mais ilustre da seleta clientela da sapataria fundada em 1902 por Vicenzo Pellegrini.

   Vicenzo já era mestre sapateiro formado em Nicastro, província de Cantazaro, Sul da Itália, quando desembarcou com o filho Alberto e a mala cheia de ferramentas no Brasil, no fim do século 19. Renzo jura que as características dos pés da Itália meridional - deformados, segundo ele - facilitaram o ofício do velho Vicenzo, seu tio-avô, por aqui. "Além da colônia italiana ser imensa, os pés dos brasileiros do Sudeste e Sul também são muito ruins", diz.

   Vicenzo morreu 13 anos depois de abrir sua calzaturiere e o negócio passou para o filho Alberto, que imprimiu o selo de alta qualidade nos sapatos. Dos áureos tempos da Pellegrini há ainda hoje, conservada como uma relíquia capaz de causar espanto no mais experiente podólogo, uma fôrma número 52 do lutador Primo Carneiro, rei dos ringues na década de 40.

   Foi nessa época que o pai de Renzo, Tito Nalon, trocou a italiana Pádua por São Paulo, onde se empregou como guarda-livros (contador) na fabriqueta do conterrâneo, localizada na época à Rua Conselheiro Ramalho, no Bexiga - de onde só saiu há três anos.

   Tito era casado com a irmã de Pellegrini. O filho Renzo foi criado nos fundos da loja ao lado dos sapateiros e começou a trabalhar como auxiliar de expedição. Era incumbido de colocar ilhós e cordões nos sapatos, encaixotá-los e despachá-los.

Instrumentos rudimentares

   "Naquela época fabricávamos mais de 300 pares por mês", lembra. Volume que sucumbiu à industrialização das décadas de 60 e 70, quando fábricas de Franca e do Sul esmagaram as sapatarias artesanais. Para sobreviver, a Pellegrini se elitizou. Hoje produz pouco mais de 20 pares por mês na oficina em que cinco funcionários operam um maquinário pré-revolução industrial - ou seja, rudimentares instrumentos de lixar, fresar e amassar.

   A carteira de clientes é pequena, mas fiel como o presidente da República. Quando calçou seu primeiro Pellegrini, FHC nem sonhava com o Palácio do Planalto. Hoje já está no 12.º, um mocassim preto de couro de cabra uruguaio fabricado no início do ano.

   O presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Almir Pazzianoto - cujos pés 41, considerados perfeitos por Renzo, estão lá em uma caixa próxima à do chefe da Nação -, é outro notável representante do Poder na Pellegrini.

   Pazzianoto desembolsa cerca de R$ 400 por um par. É este o preço médio dos modelos, todos fabricados com couro importado como o box calf alemão, arrancado de bezerros de no máximo um ano e meio de vida.

   Quem deseja, e pode, meter os pés num Pellegrini deve esperar quase um mês - prazo para que o próprio Renzo tire as medidas (caso o cliente nunca tenha feito um sapato lá), fabrique as fôrmas e dê entrada no processo de produção, que vai do corte e pesponto à montagem.

   O preço e o tempo de espera compensam. Renzo garante que o cliente sai de lá pisando em nuvens e só volta três anos depois, ou melhor, voltam seus sapatos e mesmo assim só para uma troca de sola. A durabilidade média de um Pellegrini de uso constante é de dez anos.

   "Durabilidade com conforto. Um pé nunca é igual ao outro. É como a impressão digital, cada um tem a sua", ensina Renzo abrindo a caixa das fôrmas do restauranteur Giovanni Bruno, possuidor de um par de pés "desgraçadamente ruim". Bruno tem um pé maior que o outro, calosidades e um saliente joanete na parte superior de um deles - características perceptíveis para quem observa suas fôrmas.

   Mas os piores pés que já se submeteram ao exame de Renzo são os do ex-jogador da Seleção Brasileira Éder Aleixo. "Ele tem um pé todo torto", conta o sapateiro que, com a experiência de ter feito sapatos para o guarda-roupa oficial de três Seleções Brasileiras, revela que os pés que tanta familiaridade possuíam com a bola passavam longe do modelo perfeito.

   Os de Sócrates, por exemplo, são curvos e pequenos (41) para a altura do jogador, 1,90 m. "Ele só pisa com a frente e o calcanhar", dispara Renzo, sem medo de pisar no calo do antigo cliente.(André Nigri © O Estado de S Paulo)

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