"Olha aí o pé do presidente", aponta Renzo
Nalon, o atual proprietário, depois de tirar da caixa um par de fôrmas de madeira
número 41. As peças foram modeladas sob medida para FHC - sola mais ilustre da seleta
clientela da sapataria fundada em 1902 por Vicenzo Pellegrini.
Vicenzo já era mestre sapateiro formado em Nicastro,
província de Cantazaro, Sul da Itália, quando desembarcou com o filho Alberto e a mala
cheia de ferramentas no Brasil, no fim do século 19. Renzo jura que as características
dos pés da Itália meridional - deformados, segundo ele - facilitaram o ofício do velho
Vicenzo, seu tio-avô, por aqui. "Além da colônia italiana ser imensa, os pés dos
brasileiros do Sudeste e Sul também são muito ruins", diz.
Vicenzo morreu 13 anos depois de abrir sua calzaturiere
e o negócio passou para o filho Alberto, que imprimiu o selo de alta qualidade nos
sapatos. Dos áureos tempos da Pellegrini há ainda hoje, conservada como uma relíquia
capaz de causar espanto no mais experiente podólogo, uma fôrma número 52 do lutador
Primo Carneiro, rei dos ringues na década de 40.
Foi nessa época que o pai de Renzo, Tito Nalon, trocou
a italiana Pádua por São Paulo, onde se empregou como guarda-livros (contador) na
fabriqueta do conterrâneo, localizada na época à Rua Conselheiro Ramalho, no Bexiga -
de onde só saiu há três anos.
Tito era casado com a irmã de Pellegrini. O filho
Renzo foi criado nos fundos da loja ao lado dos sapateiros e começou a trabalhar como
auxiliar de expedição. Era incumbido de colocar ilhós e cordões nos sapatos,
encaixotá-los e despachá-los.
Instrumentos rudimentares
"Naquela época fabricávamos mais de 300
pares por mês", lembra. Volume que sucumbiu à industrialização das décadas de 60
e 70, quando fábricas de Franca e do Sul esmagaram as sapatarias artesanais. Para
sobreviver, a Pellegrini se elitizou. Hoje produz pouco mais de 20 pares por mês na
oficina em que cinco funcionários operam um maquinário pré-revolução industrial - ou
seja, rudimentares instrumentos de lixar, fresar e amassar.
A carteira de clientes é pequena, mas fiel como o
presidente da República. Quando calçou seu primeiro Pellegrini, FHC nem sonhava com o
Palácio do Planalto. Hoje já está no 12.º, um mocassim preto de couro de cabra
uruguaio fabricado no início do ano.
O presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Almir
Pazzianoto - cujos pés 41, considerados perfeitos por Renzo, estão lá em uma caixa
próxima à do chefe da Nação -, é outro notável representante do Poder na Pellegrini.
Pazzianoto desembolsa cerca de R$ 400 por um par. É
este o preço médio dos modelos, todos fabricados com couro importado como o box calf
alemão, arrancado de bezerros de no máximo um ano e meio de vida.
Quem deseja, e pode, meter os pés num Pellegrini deve
esperar quase um mês - prazo para que o próprio Renzo tire as medidas (caso o cliente
nunca tenha feito um sapato lá), fabrique as fôrmas e dê entrada no processo de
produção, que vai do corte e pesponto à montagem.
O preço e o tempo de espera compensam. Renzo garante
que o cliente sai de lá pisando em nuvens e só volta três anos depois, ou melhor,
voltam seus sapatos e mesmo assim só para uma troca de sola. A durabilidade média de um
Pellegrini de uso constante é de dez anos.
"Durabilidade com conforto. Um pé nunca é igual
ao outro. É como a impressão digital, cada um tem a sua", ensina Renzo abrindo a
caixa das fôrmas do restauranteur Giovanni Bruno, possuidor de um par de pés
"desgraçadamente ruim". Bruno tem um pé maior que o outro, calosidades e um
saliente joanete na parte superior de um deles - características perceptíveis para quem
observa suas fôrmas.
Mas os piores pés que já se submeteram ao exame de
Renzo são os do ex-jogador da Seleção Brasileira Éder Aleixo. "Ele tem um pé
todo torto", conta o sapateiro que, com a experiência de ter feito sapatos para o
guarda-roupa oficial de três Seleções Brasileiras, revela que os pés que tanta
familiaridade possuíam com a bola passavam longe do modelo perfeito.
Os de Sócrates, por exemplo, são curvos e pequenos
(41) para a altura do jogador, 1,90 m. "Ele só pisa com a frente e o
calcanhar", dispara Renzo, sem medo de pisar no calo do antigo cliente.(André
Nigri © O Estado de S Paulo)