Numa madrugada de 2006, o psicanalista italiano Contardo Calligaris tentava
se esquentar do frio paulistano saboreando um milho cozido, comprado do lado de
fora do Teatro Oficina, em São Paulo.
Ele havia acabado de assistir a uma das longas sessões de Os sertões – O homem
2, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Ao avistá-lo, o ator da montagem,
Ricardo Bittencourt, não titubeou em abordálo. Foi em sua direção e sugeriu que
o psicanalista lhe escrevesse um monólogo. A ideia já vinha com título e tudo:
“Tarja preta”. Após aceitar a proposta do ator, o psicanalista, agora autor de
teatro, passou a dissecar, durante oito meses seguidos, os muitos mistérios e
tabus masculinos analisados ao longo de 35 anos de clínica. O resultado é o
espetáculo O homem da tarja preta, no Teatro Leblon
com a missão de investigar o que é ser homem hoje em dia: – É a crise do macho
moderno – define o psicanalista.
Estereótipo de classe média Mas para o conteúdo, o psicanalista, é claro, tinha
uma concepção completamente própria e oposta à do ator.
– Ele deu enfoque no pênis, enquanto eu pensava no remédio.
Eu queria falar de amor, mas ele disse que deveríamos falar de sexo. Então
acertamos – explica Bittencourt.
A experiência, em que pôde acompanhar milhares de histórias, cômicas ou
trágicas, relatadas no divã, lhe serviu para esculpir um monólogo centrado num
homem não apenas comicamente complexo, mas, sim, perplexo quanto ao destino, à
missão e ao significado de seu gênero sexual.
– Até os anos 60, a psicologia e os estudos voltados à sexualidade se cercaram
dos mistérios femininos.
Tenho estantes repletas de livros sobre o assunto. Em relação aos homens,
pensávamos, erroneamente, que sabíamos como funciona sua sexualidade – diz o
psicanalista. – Acho a identidade masculina igualmente complexa. Ninguém sabe
direito o que é ser homem. E sê-lo não é mais fácil que ser mulher. Existe um
vasto repertório dado pela literatura e pelo cinema, por exemplo.
Na peça, o ator representa um personagem que tem o seu nome, Ricardo. Casado e
com dois filhos, ele serve ao estereótipo típico do pai de família da classe
média. Mas por detrás da tela do computador, protegido pelo anonimato, ele se
insere no universo das salas virtuais de bate-papo para dar vazão a seus
impulsos e fantasias sexuais mais ousadas. Lança mão do guarda-roupas da mulher,
se maquia e mantém entusiásticas conversas com homens.
É um crossdresser. Gay ou não, permanece a questão. Mas o psicanalista prefere o
determinar como um tipo cada vez mais comum de sexualidade fértil.
– Chega uma hora que a categorização por gênero perde o sentido.
Seria mais interessante catalogarmos por fantasias sexuais em vez de gêneros
definidos – propõe Calligaris.
– Quando ele se veste de mulher e procura parceiros na rede, está realizando
mais uma fantasia do que propriamente gostando de homens.
Para muitos homens, a masculinidade é um drama. Ao mesmo tempo, é uma uma
obrigação, algo que se exige, e um enigma.
Dirigido pela atriz Bete Coelho, Bittencourt surge devidamente “montado” e
maquiado. Para cobrir o dorso, lança mão de gravata e um terno bem cortado. Já
na parte inferior, o despudor vem à tona, com salto alto vermelho e meia-calça
preta.
Leva na mão a aliança de casamento e na cabeça suas confusas fantasias,
relatadas para a plateia.
– É uma mudança de comportamento ocorrida nos últimos 10 anos. As possibilidades
de relacionamento geradas pela internet produziram uma transformação enorme na
vida psíquica e sexual.
Na rede, as pessoas descobrem que suas fantasias se encaixam com o pensamento de
outras.
Assistida em São Paulo por quase 15 mil pessoas em cinco meses, a peça
possibilitou a Calligaris observar a reação da plateia feminina.
– Falamos não só para os homens, mas especialmente para as mulheres diz. – Elas
descobrem curiosidades incríveis sobre seus parceiros. Mistérios que
desconheciam e outros comportamentos que nem suspeitavam. Elas se surpreendem ao
entender que os homens passam a maior parte do seu dia em devaneios.
(©
JB Online)
Um ator em busca de um novo – e amplo – repertório sexual
O ator Ricardo Bittencourt
Fã dos textos e crônicas publicadas por Contardo Calligaris,
o ator Ricardo Bittencourt dedicou 14 anos de sua formação pessoal em sessões de
psicanálise. Às vésperas de iniciar o espetáculo, porém, resolveu trocar a
análise por um personal trainer. Era hora de tratar do corpo e, é claro, fazer
terapia em cima do palco. Mais que um presente do autor, O homem da tarja preta
lhe serviu para expandir seus conhecimentos, extirpar preconceitos e lhe
conferir um vasto território sexual.
– A peça provocou uma intervenção na minha vida. Teve quase o efeito de uma
autorização para que eu vivesse minha sexualidade em toda a sua plenitude –
conta o ator. – Pude experimentar um vasto conhecimento sobre mim, sobre sexo,
sobre ser homem.
Além disso, pude ampliar também o meu repertório sexual durante esse processo.
O labirinto do texto, seu conteúdo e, talvez, o despudor de batizar o personagem
com o nome de Ricardo permitiram uma escuta inédita para o ator baiano. Enquanto
tanto se fala sobre o mistério do sexo feminino, anatomicamente voltado para
dentro, a abordagem de Calligaris desvenda o mistério masculino.
– Em seus textos ele sempre revela algo que deixamos passar batido.
E assim é com a peça – analisa Bittencourt. – Ele diz que não é porque o membro
está para fora que a gente sabe o que fazer com ele. E é exatamente porque ele
está à vista que a gente não para de se perguntar o que devemos fazer com ele. A
peça é sobre a necessidade de uma identidade secreta. O homem constituido por
suas fantasias.
(©
JB Online)
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