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Diretor italiano evita denúncia fácil e filma mundo estranho

21/12/2008

Foto: Divulgação

Cena de "Gomorra", filme de Matteo Garrone baseado em livro cujo autor é jurado de morte
 

Crítica/"Gomorra"

"Gomorra" apresenta o submundo da Camorra, máfia do sul da Itália

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA 

Diante de um filme de Nanni Moretti, temos a impressão, antes de tudo, de estar diante de uma personalidade, de um artista que desenvolve seu ofício com grande talento.

Ele é italiano, claro, e isso está em sua fala, em seu modo de se comportar, no humor. Mas desse fato nós nos damos conta em segunda instância, por relevante que seja.

Diante de "Gomorra", nossa sensação é bem outra. É como se assistíssemos renascer a escola italiana de cinema, que foi uma das melhores do mundo antes de entrar em decadência, a caminho de uma inexplicável extinção. Alguns sinais já haviam surgido, aqui e ali, dando conta desse ressurgimento do filme italiano: "Novo Mundo", há não muito tempo, de Emanuele Crialese, era um bom exemplo disso.

Existe alguma coisa a mais em "Gomorra", que, como se sabe, é adaptado do livro de Roberto Saviano, famoso não só pelo sucesso internacional, como por ter valido a seu autor o fato de se tornar jurado de morte pela Camorra, a máfia napolitana. O livro é um relato jornalístico, não o filme. 

Modo de vida

Frases publicitárias o aproximam de "Cidade de Deus", mas isso parece apenas uma maneira amadorística de seduzir os espectadores. Se fosse para fazer uma comparação, o longa italiano dialoga mais com "Do Outro Lado da Lei", o filme argentino de Pablo Trapero. Em última análise, a máfia no sul da Itália é um modo de vida.

O livro talvez tenha implicações mais contundentes. A força do filme vem, ao contrário, dos seus silêncios. Dos seus notáveis silêncios. Ali está um vasto e pobre condomínio, por onde passeia um cobrador. Ou um ateliê de costura recheado de imigrantes ilegais. Ou ainda, claro, o tráfico de drogas.

Nada que surge na tela se assemelha a uma anomalia: as coisas são assim, vive-se assim, não é possível que seja muito diferente. Talvez por isso, o que mais nos interessa no painel desenvolvido por Garrone sejam as histórias individuais, às quais nem chegamos a ter um acesso completo, como a do cobrador que passa de casa em casa, ou dos garotos tolos que tentam atravessar negócios de cuja sutileza de organização nem ao menos parecem duvidar. Ou, ainda, o chefe de um ateliê de alta costura que, para sobreviver dignamente, ensina imigrantes chineses a trabalhar com moda.

A maneira de narrar de Garrone não nos leva, como nas concepções clássicas, de fora para dentro dos acontecimentos. Começamos fora e terminamos fora, como se o objetivo do filme fosse, precisamente, o de produzir estranhamento, impedir nossa familiaridade com tal objeto.

Porque Garrone sabe que a eficiência de denúncia de um filme de ficção é nula (foi de denúncia em denúncia que o cinema italiano perdeu boa parte de seu encanto, aliás, bem antes de Berlusconi ter o poder que tem). No caso, existe um livro jornalístico que faz essa parte com eficiência. Ao filme cabe, então, reter fatos que acontecem estranhamente, como se fossem apenas um ligeiro desvio da realidade. Não são tiroteios, degolas ou algo do tipo.

São, antes, roupas que se usam, comportamentos, formas de respeito etc.

Fazem parte de um conjunto que existe ao nosso lado -inclusive aqui no Brasil, em São Paulo- e que ignoramos, em parte porque queremos, em parte porque não conhecemos seus códigos.

O filme se refere, entre outros, à indústria italiana da moda, seu modo de agir ligado às máfias e à exploração de imigrantes ilegais. Ninguém, entre nós, tem o direito de gritar "escândalo". Sabemos muito bem o que passam os imigrantes ilegais (no caso brasileiro, quase escravizados) em ateliês que não é preciso sair do centro de São Paulo para saber que existem. Somos como Nápoles. Aqui também mundos secretos existem no subsolo.

Garrone podia ter feito, a respeito, um novo "Metrópolis", longa de Lang de 1926. Rejeitou o expressionismo e fez bem. Seu filme tem a discrição, a limpidez e até certa sujeira, coisas de grandes obras. 

(© Folha de S. Paulo)

 


Crítica/livro/"Gomorra"

Escritor vê campo de concentração a céu aberto no sul da Itália

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM ROMA 

Se "Gomorra" fosse apenas mais um romance-reportagem sobre uma organização criminosa qualquer, não estaria fazendo todo esse barulho. O livro de Roberto Saviano, 29, parte de uma exploração minuciosa dos meandros da Camorra para tentar entender como funcionam os mecanismos de economia e violência globalizada. Faz um salto do particular ao universal, e, por isso, concerne não só a uma região do sul da Itália, mas a todo o mundo.

Sua imagem inicial, a chuva de cadáveres que cai de um contêiner içado por uma grua no porto de Nápoles, remete num curto-circuito às pilhas de corpos de Auschwitz. No caso, os mortos são chineses que migraram para trabalhar na Itália por salários baixíssimos e pouparam o suficiente para que seus corpos fossem congelados, transportados e sepultados em algum pedaço de terra na China. Não deviam ser vistos, mas uma manobra mal feita os faz desabar do contêiner no colo do leitor. E não dá mais para fingir que eles não estão ali.

Saviano não adota a perspectiva de um repórter investigativo que busca simplesmente descrever uma trama criminosa. Seu relato mais se assemelha ao testemunho de quem tem diante dos olhos um imenso campo de concentração a céu aberto. Por isso a ênfase reiterada na dificuldade de narrar o horror.

O livro acompanha de perto as transformações e a modernização da velha máfia napolitana nos últimos 30 anos. A Camorra não existe, o que há são clãs e cartéis que operam a logística de financiamento, produção e distribuição de mercadoria ilegal. Mas é na construção civil que a economia dos clãs se sustenta, e aí é fundamental a gestão dos contratos públicos e a interferência no plano diretor das cidades.

O sucesso da empresa está na adoção dos procedimentos do capitalismo mais avançado sem os entraves legais e burocráticos da chamada economia formal. Da periferia de Nápoles se fazem negócios com a China e o Leste Europeu, o norte da África e as Américas, por onde circulam têxteis e drogas, laticínios e armas, o que se imaginar.

Lendo-se "Gomorra" vem a suspeita -ou a certeza- de que tudo o que se veste, se come e se consome hoje tem uma origem espúria e sangrenta.

"A lógica do empreendimento criminoso, a mentalidade dos boss coincide com o mais extremo neoliberalismo. As regras ditadas, as regras impostas, são as do mercado, do lucro, da vitória sobre todo concorrente. O resto é o zero, não vale nada", diz Saviano no melhor capítulo do livro, "Cimento Armado". Obviamente, nesse contexto em que a vida não vale nada, as quebras de contrato são resolvidas com extrema violência.

O livro começa com o vestido de Angelina Jolie na entrega do Oscar e termina com as montanhas de lixo acumuladas em Nápoles e arredores, vistas recentemente nas TVs de todo o mundo, que são o subproduto rentável dessa economia, a ponta final da cadeia.

Recordando-se de Pasolini, Saviano diz: "Eu sei qual é a verdadeira Constituição do meu tempo. Qual é a riqueza das empresas. Eu sei que a medida de cada pilastra é o sangue dos outros. Eu sei e tenho provas. E não poupo ninguém". 

MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na USP 

GOMORRA 
Autor:
 Roberto Saviano 
Tradução: Elaine Niccolai 
Editora: Bertrand Brasil 
Quanto: R$ 39 (350 págs.) 
Avaliação: ótimo

2 milhões de exemplares foi o total vendido do livro de Roberto Saviano em 32 países. O Brasil é o 33º a lançá-lo.

(© Folha de S. Paulo)


JÚRI DE CANNES PREMIOU LONGA DE GARRONE

"Gomorra", de Matteo Garrone, foi saudado como uma espécie de renascimento do cinema italiano, em razão do surpreendente Grande Prêmio do Júri dado ao longa no Festival de Cannes, em maio passado. A boa notícia foi complementada com o Prêmio do Júri dado a "Il Divo", de Paolo Sorrentino, outra surpresa da equipe responsável por escolher os premiados, liderada pelo diretor e ator Sean Penn. "Gomorra" também é o representante italiano na categoria de filme estrangeiro no Oscar.

GOMORRA 
Produção: Itália, 2008 
Direção: Matteo Garrone 
Com: Toni Servillo, Gianfelice Imparato, Maria Nazionale 
Onde: a partir de hoje no Cine Bombril, Reserva Cultural e circuito 
Classificação: não indicado a menores de 18 anos 
Avaliação: ótimo

(© Folha de S. Paulo)

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