Crítica/"Gomorra"
"Gomorra" apresenta o submundo da Camorra, máfia do sul da Itália
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Diante de um filme de Nanni Moretti, temos a impressão, antes de tudo, de
estar diante de uma personalidade, de um artista que desenvolve seu ofício
com grande talento.
Ele é italiano, claro, e isso está em sua fala, em seu modo de se
comportar, no humor. Mas desse fato nós nos damos conta em segunda
instância, por relevante que seja.
Diante de "Gomorra", nossa sensação é bem outra. É como se assistíssemos
renascer a escola italiana de cinema, que foi uma das melhores do mundo
antes de entrar em decadência, a caminho de uma inexplicável extinção.
Alguns sinais já haviam surgido, aqui e ali, dando conta desse ressurgimento
do filme italiano: "Novo Mundo", há não muito tempo, de Emanuele Crialese,
era um bom exemplo disso.
Existe alguma coisa a mais em "Gomorra", que, como se sabe, é adaptado do
livro de Roberto Saviano, famoso não só pelo sucesso internacional, como por
ter valido a seu autor o fato de se tornar jurado de morte pela Camorra, a
máfia napolitana. O livro é um relato jornalístico, não o filme.
Modo de vida
Frases publicitárias o aproximam de "Cidade de Deus", mas isso parece
apenas uma maneira amadorística de seduzir os espectadores. Se fosse para
fazer uma comparação, o longa italiano dialoga mais com "Do Outro Lado da
Lei", o filme argentino de Pablo Trapero. Em última análise, a máfia no sul
da Itália é um modo de vida.
O livro talvez tenha implicações mais contundentes. A força do filme vem,
ao contrário, dos seus silêncios. Dos seus notáveis silêncios. Ali está um
vasto e pobre condomínio, por onde passeia um cobrador. Ou um ateliê de
costura recheado de imigrantes ilegais. Ou ainda, claro, o tráfico de
drogas.
Nada que surge na tela se assemelha a uma anomalia: as coisas são assim,
vive-se assim, não é possível que seja muito diferente. Talvez por isso, o
que mais nos interessa no painel desenvolvido por Garrone sejam as histórias
individuais, às quais nem chegamos a ter um acesso completo, como a do
cobrador que passa de casa em casa, ou dos garotos tolos que tentam
atravessar negócios de cuja sutileza de organização nem ao menos parecem
duvidar. Ou, ainda, o chefe de um ateliê de alta costura que, para
sobreviver dignamente, ensina imigrantes chineses a trabalhar com moda.
A maneira de narrar de Garrone não nos leva, como nas concepções
clássicas, de fora para dentro dos acontecimentos. Começamos fora e
terminamos fora, como se o objetivo do filme fosse, precisamente, o de
produzir estranhamento, impedir nossa familiaridade com tal objeto.
Porque Garrone sabe que a eficiência de denúncia de um filme de ficção é
nula (foi de denúncia em denúncia que o cinema italiano perdeu boa parte de
seu encanto, aliás, bem antes de Berlusconi ter o poder que tem). No caso,
existe um livro jornalístico que faz essa parte com eficiência. Ao filme
cabe, então, reter fatos que acontecem estranhamente, como se fossem apenas
um ligeiro desvio da realidade. Não são tiroteios, degolas ou algo do tipo.
São, antes, roupas que se usam, comportamentos, formas de respeito etc.
Fazem parte de um conjunto que existe ao nosso lado -inclusive aqui no
Brasil, em São Paulo- e que ignoramos, em parte porque queremos, em parte
porque não conhecemos seus códigos.
O filme se refere, entre outros, à indústria italiana da moda, seu modo
de agir ligado às máfias e à exploração de imigrantes ilegais. Ninguém,
entre nós, tem o direito de gritar "escândalo". Sabemos muito bem o que
passam os imigrantes ilegais (no caso brasileiro, quase escravizados) em
ateliês que não é preciso sair do centro de São Paulo para saber que
existem. Somos como Nápoles. Aqui também mundos secretos existem no subsolo.
Garrone podia ter feito, a respeito, um novo "Metrópolis", longa de Lang
de 1926. Rejeitou o expressionismo e fez bem. Seu filme tem a discrição, a
limpidez e até certa sujeira, coisas de grandes obras.
(©
Folha de S. Paulo)
Crítica/livro/"Gomorra"
Escritor vê campo de concentração a céu aberto no sul da Itália
MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM ROMA
Se "Gomorra" fosse apenas mais um romance-reportagem sobre uma organização
criminosa qualquer, não estaria fazendo todo esse barulho. O livro de
Roberto Saviano, 29, parte de uma exploração minuciosa dos meandros da
Camorra para tentar entender como funcionam os mecanismos de economia e
violência globalizada. Faz um salto do particular ao universal, e, por isso,
concerne não só a uma região do sul da Itália, mas a todo o mundo.
Sua imagem inicial, a chuva de cadáveres que cai de um contêiner içado
por uma grua no porto de Nápoles, remete num curto-circuito às pilhas de
corpos de Auschwitz. No caso, os mortos são chineses que migraram para
trabalhar na Itália por salários baixíssimos e pouparam o suficiente para
que seus corpos fossem congelados, transportados e sepultados em algum
pedaço de terra na China. Não deviam ser vistos, mas uma manobra mal feita
os faz desabar do contêiner no colo do leitor. E não dá mais para fingir que
eles não estão ali.
Saviano não adota a perspectiva de um repórter investigativo que busca
simplesmente descrever uma trama criminosa. Seu relato mais se assemelha ao
testemunho de quem tem diante dos olhos um imenso campo de concentração a
céu aberto. Por isso a ênfase reiterada na dificuldade de narrar o horror.
O livro acompanha de perto as transformações e a modernização da velha
máfia napolitana nos últimos 30 anos. A Camorra não existe, o que há são
clãs e cartéis que operam a logística de financiamento, produção e
distribuição de mercadoria ilegal. Mas é na construção civil que a economia
dos clãs se sustenta, e aí é fundamental a gestão dos contratos públicos e a
interferência no plano diretor das cidades.
O sucesso da empresa está na adoção dos procedimentos do capitalismo mais
avançado sem os entraves legais e burocráticos da chamada economia formal.
Da periferia de Nápoles se fazem negócios com a China e o Leste Europeu, o
norte da África e as Américas, por onde circulam têxteis e drogas,
laticínios e armas, o que se imaginar.
Lendo-se "Gomorra" vem a suspeita -ou a certeza- de que tudo o que se
veste, se come e se consome hoje tem uma origem espúria e sangrenta.
"A lógica do empreendimento criminoso, a mentalidade dos boss coincide
com o mais extremo neoliberalismo. As regras ditadas, as regras impostas,
são as do mercado, do lucro, da vitória sobre todo concorrente. O resto é o
zero, não vale nada", diz Saviano no melhor capítulo do livro, "Cimento
Armado". Obviamente, nesse contexto em que a vida não vale nada, as quebras
de contrato são resolvidas com extrema violência.
O livro começa com o vestido de Angelina Jolie na entrega do Oscar e
termina com as montanhas de lixo acumuladas em Nápoles e arredores, vistas
recentemente nas TVs de todo o mundo, que são o subproduto rentável dessa
economia, a ponta final da cadeia.
Recordando-se de Pasolini, Saviano diz: "Eu sei qual é a verdadeira
Constituição do meu tempo. Qual é a riqueza das empresas. Eu sei que a
medida de cada pilastra é o sangue dos outros. Eu sei e tenho provas. E não
poupo ninguém".
MAURÍCIO SANTANA DIAS é
professor de literatura italiana na USP
GOMORRA
Autor: Roberto Saviano
Tradução: Elaine Niccolai
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 39 (350 págs.)
Avaliação: ótimo
2
milhões de exemplares foi o total vendido do livro de Roberto Saviano em 32
países. O Brasil é o 33º a lançá-lo.
(©
Folha de S. Paulo)
JÚRI DE CANNES PREMIOU LONGA DE
GARRONE"Gomorra", de Matteo Garrone, foi saudado como uma espécie
de renascimento do cinema italiano, em razão do surpreendente Grande Prêmio
do Júri dado ao longa no Festival de Cannes, em maio passado. A boa notícia
foi complementada com o Prêmio do Júri dado a "Il Divo", de Paolo
Sorrentino, outra surpresa da equipe responsável por escolher os premiados,
liderada pelo diretor e ator Sean Penn. "Gomorra" também é o representante
italiano na categoria de filme estrangeiro no Oscar.
GOMORRA
Produção: Itália, 2008
Direção: Matteo Garrone
Com: Toni Servillo, Gianfelice
Imparato, Maria Nazionale
Onde: a partir de hoje no Cine
Bombril, Reserva Cultural e circuito
Classificação: não indicado a
menores de 18 anos
Avaliação: ótimo
(©
Folha de S. Paulo) |