O ator Toni Servillo fala da dificuldade de participar de Gomorra, filme de
Matteo Garrone em que protagoniza o mafioso Franco
Luiz Carlos Merten
Durante sua presença no Brasil, para participar do Festival do Rio, no
começo de outubro, o diretor e roteirista italiano Gianni Di Gregorio falou
bastante de sua parceria com Matteo Garrone, realizador do excepcional
Gomorra, que estréia hoje, e também sobre o 'Leoncino' - o Leão de Ouro para
melhor filme de diretor estreante - que recebeu no recente Festival de
Veneza, por Pranzo in Agusto. Di Gregori teve, porém, mais um assunto para
tratar com o repórter do Estado, que queria saber mais sobre Toni Servillo.
"É o maior italiano vivo", talvez tenha exagerado um pouco o cineasta. "É um
ator na tradição de figuras míticas do passado, como Marcello Mastroianni,
Vittorio Gassman e Alberto Sordi, e num certo sentido os ultrapassa, porque
nenhum possuía, como Toni, essa extraordinária capacidade de mudar, física e
emocionalmente, para melhor servir ao personagem."
Quando se fala no revival atual do cinema italiano, a revalorização passa
com certeza por dois autores de filmes que representaram a Itália no
Festival de Cannes, em maio. Um deles foi justamente Gomorra, que Matteo
Garrone adaptou do romance de não ficção de Roberto Savério, autor jurado de
morte pelo crime organizado. O outro foi Il Divo, de Paolo Sorrentino, de
quem Servillo é o ator fetiche, tendo interpretado, também, outras obras
essenciais do autor, como As Conseqüências do Amor e O Amigo da Família.
Ambos os filmes foram laureados em Cannes, um com o Grand Prix (Gomorra), o
outro com o prêmio do júri (Il Divo), mas o prêmio que seria indiscutível -
o de melhor ator para Servillo -, o júri presidido por Sean Penn preferiu
atribuir ao Benicio Del Toro de Che, de Steven Soderbergh.
Júris são sempre imprevisíveis, fazem composições de prêmios, e, até quando
acertam, é raro que não ocorra uma injustiça - uminha, que seja. Benicio Del
Toro, que encerrou em alto estilo a Mostra de São Paulo, pode ser um astro e
ter mais glamour do que Toni Servillo, mas melhor ator não é, com certeza.
Gomorra é o indicado da Itália para concorrer a uma vaga no próximo Oscar.
Pode até ser que consiga, mas é pouco provável que Servillo seja indicado
para concorrer a melhor ator. Hollywood, com as exceções de praxe - a
francesa Marion Cotillard foi melhor atriz no ano passado, por Piaf - Hino
ao Amor, só consegue olhar para o próprio umbigo. Mas seria um caso
elementar de justiça se Toni Servillo fosse pelo menos indicado entre os
cinco.
Sendo diferentes em técnica e estilo - Gomorra é uma reportagem realista e
violenta, na vertente de Cidade de Deus, de Fernando Meirelles; Il Divo é
uma representação elaborada, como costuma ser o cinema de Sorrentino, agora
sobre o mundo da política -, ambos os filmes se completam e você terá
oportunidade de confirmar isso quando, ou se, Il Divo também furar o
bloqueio da distribuição e chegar às telas brasileiras. Gomorra trata das
estruturas do poder no mundo do crime, mostrando como a Camorra, a Máfia
napolitana, recruta seus integrantes e domina a cidade pela corrupção e pela
violência. Gomorra trata de um poder paralelo, um fenômeno do submundo. Il
Divo, cinematografia do ex-premier Giulio Andreotti, trata do poder no topo
da pirâmide social e política.
Servillo consegue ser, com idêntica excelência, o persuasivo chefe criminoso
de Gomorra e o político que encarava sua função como arte e a exercia com
tanto virtuosismo que era chamado de 'divo'. O Servillo de Gomorra é mais
próximo daquilo que o ator é, fisicamente. Sua composição é pesada em Il
Divo, mas não mais do que a daquele usurário que interpretou no filme
precedente de Paolo Sorrentino, O Amigo da Família. A questão é: quem é esse
homem, um ator tão extraordinário e, ao mesmo tempo, tão pouco conhecido?
Nascido em 1959 e irmão do músico Beppe Servillo, Toni freqüenta os palcos
com a mesma desenvoltura como aparece na tela do cinema e da TV. No teatro,
é também diretor (de montagens de textos clássicos e modernos). No cinema, a
carreira tem apenas 16 anos, e seu primeiro papel importante foi em Morte di
Um Matematico Napoletano, de Mario Martone. Na TV, o maior triunfo foi com
Sabato, Domenica e Lunedi, adaptado da peça de Eduardo De Filippo.
Ele acaba de ganhar o troféu de melhor ator europeu do ano por seu papel
como Franco, em Gomorra. Franco conduz o lucrativo negócio que consiste em
transformar terras boas para agricultura em cemitérios para depósito de lixo
tóxico. Andreotti, em Il Divo, exibe seu poder como num teatro. Franco
esconde o jogo. Sua arte de criminoso consiste em ser discreto e ele parece
um bom sujeito disposto a ajudar todo mundo.
Na coletiva de Il Divo, em Cannes, Servillo disse que, embora já tivesse
trabalhado muitas vezes com Paolo Sorrentino, nunca, como neste filme, ele
teve tanto a impressão de um (re)começo. "Filmamos com o entusiasmo de quem
se iniciava na carreira, talvez porque o próprio personagem, embora muito
conhecido, seja um intocável na Itália." Servillo documentou-se de todo
material possível para fazer o seu Andreotti, mas chega um momento em que o
ator tem de criar, não copiar. "Tentei fazê-lo humano, e cômico, mas
evitando o risco da caricatura. Era o que Paolo (Sorrentino) me dizia o
tempo todo - evitemos a caricatura." Depois de tantos dramas, ambos ensaiam
fazer agora uma comédia que seja também uma forma de homenagem aos grandes
do humor à italiana.
Embora seja napolitano, Servillo admite que não foi fácil fazer Gomorra.
"Matteo (o diretor Garrone) filma somente em locações. Em todos os seus
filmes, o cuidado com a escolha dos ambientes e a figuração faz parte de um
método muito elaborado, por mais que seu realismo pareça espontâneo. No caso
de Gomorra, tínhamos a Camorra de olho na gente, mas ao contrário de Savério
(o escritor) eles perceberam que não estávamos documentando suas atividades
e terminaram por nos deixar livres para filmar. O maior problema terminou
sendo o dialeto. Matteo gosta de improvisar os diálogos, ele não apenas
autoriza como incentiva os atores a se apropriarem das falas, para que
fiquem mais verdadeiras. Eu próprio tive dificuldade para dominar o dialeto
napolitano." O fato de ter sido lançado com legendas em italiano, não
impediu que Gomorra fosse um grande sucesso de público no país e até no
exterior. Gomorra concorre com Última Parada 174, de Bruno Barreto, outro
filme sobre violência urbana, a uma vaga no Oscar. Em menos de um mês,
saberemos qual dos dois - ou se ambos - vão disputar a estatueta dourada da
Academia de Hollywood. A indicação mais merecida, a de Toni Servillo, esta
parece improvável, mas... Quem sabe? O Oscar, afinal, não é, como se diz,
uma caixinha de surpresas?
Serviço
Gomorra (Gomorrah, Itália/2008, 137 min.) - Drama. Dir. Matteo Garrone. 18
anos. Cotação: Ótimo
Ameaçado de morte pela Máfia, autor de 'Gomorra' diz que sua causaganhou
visibilidade
Rodrigo Fonseca
RIO - Com a cabeça a prêmio pela Camorra, a máfia napolitana, o jornalista e
escritor Roberto Saviano, de 29 anos, autor de "Gomorra", encara as ameaças com
coragem. Sua segurança pode ter crescido ao saber que o longa-metragem inspirado
em seu romance-reportagem (recém-lançado pela editora Bertrand Brasil) vai
representar a Itália na briga pelo Globo de Ouro de filme estrangeiro. Dirigida
por Matteo Garrone, a produção, que estréia esta sexta-feira no Rio, ainda
ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes. As vendas do livro, na ordem de dois
milhões de exemplares, também são alentadoras. Mas, nesta entrevista por e-mail
ao Globo, Saviano comemora outra vitória: sua causa se popularizou.
Apesar de ameaçá-lo pelas denúncias narradas em forma de romance por "Gomorra",
a Máfia de Nápoles hoje vende DVDs piratas do filme de Matteo Garrone, do qual o
senhor é co-roteirista. De que maneira o longa-metragem ampliou o debate do
livro?
ROBERTO SAVIANO:Meu livro e
o filme (que se concentra em apenas cinco dos vários núcleos de personagens do
romance) são produtos muito diferentes entre si. E esta autonomia recíproca
conserva a força dos dois, sem que um se sobressaia sobre o outro como vencedor.
A atmosfera de detalhes que se respira no longa de Garrone é a mesma do livro.
Ambos são marcados pela ausência de juízos morais e pelo desejo de catapultar
nosso leitor ou espectador para o centro de um turbilhão de eventos que eles não
gostariam de testemunhar. Uma morbidez sã cerca "Gomorra" em seu desejo de expor
aquilo que, de cara, qualquer um repudia. O roteiro, com o qual pude colaborar,
mistura-se ao que escrevi, mesclando as cores, os ruídos e as sensações da
realidade. Parece um docudrama. Um documentário.
"Gomorra" expõe práticas das atividades da máfia e disseca com dados
estatísticos sua importância para o florescimento da economia de Nápoles. Foram
estes dados que o transformaram em um alvo vivo?
SAVIANO:O livro mostra que a Camorra oferece trabalho em nível local
nas regiões onde se instala, o que lhe garante a aprovação dos habitantes.
Estamos falando de uma organização que movimenta 150 milhões de euros por ano,
contabilizando cerca de dez mil mortos anuais.
Falamos aqui de cinema e literatura em um momento em que corre o boato de que a
Camorra quer a sua cabeça numa bandeja até o Natal. O que as ameaças que
cercaram o livro lhe ensinaram sobre a morte?
SAVIANO:Cresci em um
território onde as diferenças são resolvidas com armas. Antes de saber o que
aprendi sobre morte, é mais urgente perguntar o que eu aprendi tendo nascido e
crescido em um lugar como Nápoles. Essa seria a pergunta mais justa a ser feita.
Essa realidade me ensinou a cultivar a desconfiança. "Gomorra" é a súmula das
minhas experiências nesse sentido. As questões que hoje cercam o meu livro
apenas afloram essas minhas vivências passadas.
A hipótese de ser morto a qualquer minuto o assusta?
SAVIANO:A morte me
preocupa. Eu me preocupo em ter uma morte violenta. Isso faz com que eu sempre
adote uma postura distanciada. A morte passou a fazer parte da minha vida. Mas
ela é presente no dia-a-dia de qualquer um. Por enquanto, sinto que ela não me
espreita de perto (o escritor anda acompanhado por seguranças onde quer que vá,
incluindo sua passagem por Cannes, escoltada por agentes armados). Digo isso
porque continuo a escrever, a fazer pesquisas com metodologias diferentes. Creio
que esta seja a minha missão, o meu dever.
Omertà, o folclórico código de honra dos mafiosos, que impõe a lei do silêncio,
ainda é válido para a Camorra dos anos 2000?
SAVIANO:Omertà é um código
que será válido sempre, embora, como sugerem os dados que eu pesquisei, muitos
mafiosos detidos nos últimos anos se propuseram a colaborar com a Justiça.
Visto por 500 mil espectadores na França, após ter virado fenômeno popular na
Itália, "Gomorra", de Garrone, começa sua carreira internacional embalado em
elogio de Martin Scorsese, que considerou a narrativa singular. Cotado para o
Oscar de filme estrangeiro, o filme quebrou tabus cinematográficos em seu país?
SAVIANO:A Itália é a pátria
da dublagem. A idéia de utilizar legendas no filme, para alcançarmos um formato
bastante difuso no diálogo com o documentário, causou muita perplexidade. Mas
isso vem mais de sua fidelidade ao real.
No filme, há histórias como a de dois marginais apaixonados por "Scarface", de
Brian De Palma. Há ainda um chefão que dá uma aula sobre o papel da Camorra para
as finanças da Itália. De que forma esses relatos pinçados do livro mudam a
abordagem da violência?
SAVIANO:"Gomorra" foi um
livro escrito em campo. Ele pode acrescentar aos estudos sobre crime organizado
uma abordagem testemunhal. Mas a minha maior satisfação em relação ao livro é
saber que ele ajudou a veicular as discussões sobre a Camorra fora de nossa
região e fora do âmbito dos tribunais, das análises universitárias e das
redações de jornal.
Com que referências literárias "Gomorra" dialoga?
SAVIANO:Entre os autores
italianos, minhas referências literárias foram de Pier Paolo Pasolini (cineasta
que escreveu livros de poesia como "Amado meu") a Leonardo Sciascia (autor de "O
dia da coruja" e "A cada um o seu"). Também passei por Danilo Dolci ("Sicilian
lives"), Vincenzo Consolo ("Il sorriso dell'ignoto marinaio"), Goffredo Fofi
>ita<("Intocabili"), Ernesto Rossi ("Elogio della galera"), Primo Levi ("Os
afogados e os sobreviventes"), Varlam Yalamov ("Grafite") e Anna Politkovskaia
("The dirty war"). Nos últimos anos, existem alguns livros aos quais eu me sito
muito ligado, seja pelo argumento, seja pelo estilo: "Maximun City", de Suketu
Metha, e "Beaufort", de Ron Leshem (cuja adaptação para o cinema concorreu ao
Oscar de filme estrangeiro este ano).
A literatura brasileira hoje tem autores especializados na violência urbana como
Ferréz ("Capão Pecado") e Julio Ludemir ("Rim por rim"). Há na Itália uma
bibliografia farta sobre a Máfia?
SAVIANO:Existem muitos
livros superficiais sobre a Camorra. Prefiro os romances de Anna Maria Ortese
("A iguana"), Giuseppe Montesano ("Di questa vita menzognera") e Raffaele
LaCapria (roteirista de "Os bravos na arena", de Francesco Rosi) aos tratados
técnicos que só têm utilidade para consulta e que esclarecem pouco a
complexidade do fenômeno criminal. Um tratado que considero muito válido sobre a
atividade do crime organizado foi escrito por Salvatore Lupo ("História da máfia
- Das origens aos nossos dias", lançado no Brasil em 2002 pela editora da Unesp)
e recentemente traduzido para o inglês.
Em Cannes, onde Gomorra foi classificado como uma mistura de "Z", de
Costa-Gavras, com "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, o diálogo em que o
mafioso Franco (Toni Servillo) descreve a dependência financeira de Nápoles pela
Camorra arrancou palmas. Como é esse peso econômico?
SAVIANO:Graças aos ganhos
com o tráfico de entorpecentes e ao contrabando de produtos diversos, incluindo
materiais eletrônicos, a Camorra dispõe de capital para investir em empresas.
Com suas ligações políticas, ela pode se envolver em empreitadas no mercado
financeiro. Eis seu mecanismo, simples, mas útil.
Para Sophia Loren, italiano 'Gomorra' vencerá o Oscar
NÁPOLES - A atriz italiana Sophia Loren disse com convicção que o
filme "Gomorra" (2008), do diretor Matteo Garrone e inspirado no best-seller
homônimo do jornalista Roberto Saviano, irá vencer o Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro em 2009.
"É um filme muito importante e tenho certeza que ele ganhará
muitos prêmios. Eu votarei nele, é um belo filme, diz coisas, quer combater
algo", falou a atriz, de 74 anos e vencedora de um Oscar.
"Gomorra", que retrata os meandros da Camorra (máfia napolitana),
foi escolhido no último mês de setembro pela Associação Nacional de Indústrias
Cinematográficas, Audiovisuais e Multimidiáticas (Anica) para representar a
Itália na disputa pelas indicações ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
A produção, que estreou na Itália em maio deste ano, tem recebido
criticas favoráveis da imprensa especializada e foi a vencedora do Grande Prêmio
do Festival de Cannes.
Os cinco filmes estrangeiros que irão concorrer ao Oscar serão
anunciados no próximo mês e a entrega do prêmio acontecerá no dia 22 de
fevereiro de 2009, em Los Angeles, Estados Unidos.