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Uma cidade sem Deus

14/12/2008

Foto: Guido Motani/Corbis/Latinstock

JURADO DE MORTE Saviano: um escritor de talento e um homem de coragem sobre-humana
 

Gomorra, livro e filme, traz um panorama devastador da Camorra, a superorganização criminosa que, de Nápoles, abarca o mundo

Isabela Boscov

De início, não é fácil seguir o que está acontecendo em Gomorra (Itália, 2008), que estréia nesta sexta-feira no país: gângsteres são executados por amigos durante uma sessão de bronzeamento; dois homens de meia-idade participam de um leilão para a produção de peças de alta-costura em sua fabriqueta; um senhor de ar próspero e seu jovem assistente inspecionam uma pedreira abandonada; bandos vendem drogas num conjunto habitacional decrépito; o filho de uma dona de armazém almeja virar soldadinho do crime, e é testado levando tiros no peito, com um velho colete à prova de balas. Aos poucos, entende-se o que liga esses personagens e suas histórias. Essa é a vida na periferia de Nápoles e nas miseráveis cidades ao norte dela – e toda essa vida é inescapavelmente tocada pela Camorra, a superorganização criminosa sediada ali, na região italiana da Campânia, mas que se faz presente em todo o planeta, de maneiras às vezes insuspeitadas. Deslindar essa teia foi o formidável trabalho a que se dedicou o jornalista Roberto Saviano no livro–reportagem também intitulado Gomorra (tradução de Elaine Niccolai; Bertrand Brasil; 350 páginas; 39 reais), que chega às livrarias neste dia 15, e no qual o filme do diretor Matteo Garrone se baseia. Aos 29 anos, Saviano está pagando um preço impossível pelo destemor, pela meticulosidade de sua apuração e pela prosa fluente, que fizeram de Gomorra um best-seller. É guardado 24 horas por dia por um destacamento policial e perdeu tudo o que se assemelhe à normalidade. Desde a publicação, há dois anos, a Camorra o jurara de morte. Com o lançamento do filme, os clãs criminosos decidiram que a sentença deve ser cumprida quanto antes. Saviano cogita deixar a Itália. Seu próprio livro, contudo, prova que a Camorra está em toda parte.

Há alguns anos, a Camorra era uma organização provinciana, eclipsada em alcance e celebridade pela Cosa Nostra, a máfia siciliana. Mas a Operação Mãos Limpas caiu pesado sobre a Cosa Nostra e desbaratou muitas de suas atividades. Nesse vácuo, a Camorra floresceu, apoiada nas infinitas oportunidades proporcionadas pelo gigantesco porto de Nápoles. Floresceu à sombra: ao contrário dos sicilianos, os camorristas não dão a mínima para tradição e códigos de conduta, que muito contribuíram para a mitologia em torno da Cosa Nostra. E, ao contrário de outros grupos similares na selvageria, como os narcotraficantes cariocas, não querem saber de "comunidade" nem de festa – a única coisa que interessa à Camorra é o lucro, em margens astronômicas. Os camorristas seguem uma lógica capitalista tão moderna e avançada que deram forma a um pesadelo: tornaram-se indispensáveis à economia legítima, que muitas vezes nem imagina estar-se valendo dos seus serviços para progredir. Em outros casos, imagina, sim. Mas finge que não.

O traçado que Saviano faz das ramificações da Camorra é aterrador. O "sistema", como ela gosta de se chamar, está na vanguarda de todo tipo de negócio ilícito, como extorsão, prostituição e tráfico de entorpecentes e de armas. Controla quase a totalidade das drogas que entram na Europa (até a Cosa Nostra já compra dela) e é dona de parte dos arsenais militares que ficaram a descoberto com o esfacelamento da União Soviética. Neles, seu principal interesse são os fuzis AK-47, que, por ser baratos e confiabilíssimos, são a arma preferida do terrorismo e da guerrilha em todo o mundo. A Camorra mantém os estoques nos países de origem e os movimenta conforme a encomenda, à moda de uma Amazon.com da venda ilegal de armamentos.

Mais assustador ainda é quão fundo a Camorra se infiltrou em setores que ninguém suporia associados ao crime organizado. As grandes grifes italianas de roupas produzem suas peças exclusivas nas fabriquetas da área de Nápoles. Como estas só recebem após a entrega do produto pronto, dependem do financiamento da Camorra para entrar na disputa pelas encomendas. Os artesãos são operários que vivem de seu trabalho exímio (e mal pago, e sem nenhum benefício). Mas, em última análise, são empregados da Camorra, como o livro mostra num episódio de partir o coração, dedicado ao alfaiate Pasquale – que entra em depressão ao ver Angelina Jolie, no tapete vermelho do Oscar, vestindo o terninho branco que ele confeccionou anonimamente (no filme, o conjunto de Angelina vira um vestido para Scarlett Johansson). As peças excedentes, idênticas às que serão vendidas nas lojas das grifes, são distribuídas pela Camorra com o silêncio cúmplice das marcas. Isso faz com que elas cheguem, como "falsificações", a consumidores que de outra forma não poderiam adquiri-las, ampliando a fama das marcas sem prejuízo de sua imagem de qualidade.

Da mesma forma, a Camorra se tornou necessária à distribuição de "falsificações genuínas" de eletroeletrônicos, à venda de alimentos para atacadistas, ou ao sistema de crédito financeiro – e por aí afora. Onde os camorristas plantam suas bandeiras, porém, a morte chega junto. Sua entrada no setor do saneamento urbano fez disparar a incidência de câncer em certos locais, já que o lixo tóxico é despejado sem proteção em aterros clandestinos (como a pedreira que o senhor próspero inspeciona no filme). Seu sistema de tráfico de drogas é outro exemplo eloqüente do comércio selvagem que a organização pratica. Todo ele foi movido para áreas residenciais densas e de desemprego rampante, como as cidades-satélite de Secondigliano e Scampia. O negócio fica "amigável" às pessoas que não querem andar por guetos, e os moradores viram pequenos investidores do tráfico: entregam seu dinheirinho a camorristas e levam parte do lucro. Mas, claro, ficam sujeitos a execuções sumárias ou a ser pegos no fogo cruzado das freqüentes disputas entre clãs rivais. Com sua indiferença brutal a tudo o que não seja lucro – e está-se falando aqui em faturamentos da ordem de 500 000 euros diários para cada clã –, os camorristas testam novas misturas de drogas em viciados. Se eles passam mal ou morrem, é sinal de que o "corte" não está no ponto.

Gomorra, o livro, alterna-se entre a vida sobressaltada das pessoas miúdas tocadas pela Camorra e a visão do macronegócio. Gomorra, o filme, fica quase que só com o universo das pessoas pobres e pouco instruídas que, mais cedo ou mais tarde, formarão algum laço com a Camorra. Ao fim de suas duas horas, tem-se uma idéia de como é viver sob um poder invisível, mas onisciente e onipresente – um poder quase divino, e totalmente maligno. Livro e filme transbordam também a indignação de Saviano com o que ele julgava ser um tumor e descobriu constituir um câncer em estágio avançado de metástase. Escritor versado e homem de coragem singular, ele compartilha agora com os personagens que descreveu a asfixia de viver sob uma sentença de morte.

(© Veja)

 


Fugindo dos mafiosos

A Camorra italiana ameaça matar até o Natal o jornalista Roberto Saviano, autor de Gomorra, livro que revela nomes e atos da organização criminosa

Antonio Gonçalves Filho

O filme Gomorra, baseado no livro homônimo que virou best-seller em 43 países, estréia dia 19 no Brasil, mas pode ser que seu autor, o jornalista italiano Roberto Saviano, não esteja vivo até lá para comemorar o sucesso da obra, um marco do atual cinema italiano e já na lista dos favoritos do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009. Saviano, escondido e protegido por escolta policial desde 2006, quando lançou o livro na Itália, foi ameaçado de morte e corre o risco de não comemorar o Natal este ano. A Camorra italiana, organização criminosa sediada en Nápoles com ramificações no mundo todo (Brasil inclusive), prometeu matá-lo até o dia 25, colocando um ponto final na carreira do autor, cujo livro Gomorra (Bertrand Brasil, tradução de Elaine Niccolai, 350 págs., R$ 39) chega dia 15 às livrarias de todo o País.

A leitura de Gomorra - paronímia que aproxima a cidade bíblica dos pecadores da Camorra italiana - deve ser feita preferencialmente com um balão de oxigênio por perto. O ar é fétido, irrespirável, desde o primeiro parágrafo, em que Saviano descreve uma cena apocalíptica. Nela, um contêiner balança no porto de Nápoles enquanto a grua se desloca para o navio. De seu interior desabam corpos congelados de chineses, cujos documentos devem ter passado às mãos de compatriotas, igualmente explorados pela Máfia chinesa, que, segundo Saviano, trabalha em sociedade com a Camorra. E apresenta dados de tirar o fôlego: 20% das importações têxteis da China passam pelo porto de Nápoles, onde 60% das mercadorias escapam do controle aduaneiro. É também em Nápoles, segundo ele, que opera o maior armador do Estado chinês, que administra o maior terminal de contêineres napolitano em sociedade com empresários suíços, donos da segunda maior frota de navios do mundo.

Bastaria essa denúncia para Saviano ser ameaçado pela Camorra. Apesar do apoio público que recebeu de escritores como o anglo-indiano Salman Rushdie e do ganhador do Nobel Orhan Pamuk, o destino de Saviano parece mesmo selado desde o dia em que se infiltrou entre os camorristas para descobrir como funcionava a máfia napolitana. Ele descobriu uma organização envolvida tanto no tráfico de drogas como no despejo clandestino de resíduos químicos, além dos rotineiros crimes de vingança que envolvem famílias camorristas e seus dissidentes. No ramo "empresarial", a Camorra comandaria ainda a construção civil na Itália, a fabricação de leite adulterado, a importação de fuzis Kalashnikov e até o tráfico de moldes das grifes européias para a China dos falsificadores. Nada mais globalizado que o crime organizado.

(© Estadão)


A Máfia sem Glamour

Esqueça os gângsteres de terno de ''O Poderoso Chefão''. Em ''Gomorra'', o crime organizado é sujo, violento e veste sunga

André Nigri

No início dos anos 70, um jovem e pouco conhecido diretor chamado Francis Ford Coppola topou o desafio de reerguer um gênero em decadência havia pelo menos duas décadas em Hollywood: o filme de gângster. Obras como Scarface — A Vergonha de uma Nação (1932), de Howard Hawks, e Os Assassinos (1946), de Robert Siodmak, fizeram grande sucesso quando lançadas, mas o público parecia cansado e queria novidades. O estúdio Paramount procurava novos talentos e resolveu bancar a idéia de Coppola: verter para as telas o romance O Poderoso Chefão, de Mario Puzo, que se tornara um best-seller nos Estados Unidos. Em 1972, quando a saga da família Corleone estreou nas telas, não só o gênero saiu do coma como O Poderoso Chefão passou a figurar nas listas das obras-primas do cinema. Em seguida ao sucesso, vários diretores descobriram na máfia um novo filão. Vieram Capone — O Gângster (1975), de Steve Carver, Scarface (1983), de Brian De Palma, e, quatro anos depois, Os Intocáveis, do mesmo diretor. Martin Scorsese renovou o gênero contando histórias do baixo clero mafioso em Caminhos Perigosos (1973) e mais tarde faria Os Bons Companheiros (1990). O diretor Sam Mendes foi quem mais diretamente dialogou com a obra de Coppola, quando filmou Estrada para Perdição (2002). Todos esses filmes são filhos do Chefão. Todos os seus diretores, com exceção do inglês Sam Mendes, são americanos. Neste mês, entra em cartaz no Brasil o perturbador e excelente Gomorra, do italiano Matteo Garrone, que, como O Poderoso Chefão, parece destinado a romper ou a renovar o filme de máfia.

Gomorra é uma adaptação do romance homônimo do jornalista napolitano Roberto Saviano, que, publicado há dois anos na Itália, chega ao Brasil com o filme, em lançamento da editora Bertrand Brasil. O livro vendeu 1 milhão de cópias em seu país e já foi traduzido para mais de 40 línguas. Saviano conta em detalhes as entranhas da organização criminosa mais perigosa e carniceira do mundo: a Camorra napolitana, conhecida por assassinar uma pessoa a cada três dias, em média. A publicação custou caro ao autor. Saviano vive em lugar desconhecido, com proteção policial 24 horas por dia. Os chefões do vespeiro em que ele mexeu juraram-no de morte até o Natal. O filme adaptado do livro é um marco no cinema italiano, combalido nos últimos anos com produções medianas e sem fibra. Ganhou o Prêmio do Júri no último Festival de Cannes e chega como um dos favoritos ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Em quase tudo, Gomorra — paronímia entre Camorra e o nome da cidade bíblica destruída pelo fogo dos céus — é o oposto de O Poderoso Chefão. A começar pela glamorização. Coppola recriou a Nova York do imediato pós-guerra como um fino ourives. O filme todo foi rodado em locações artesanalmente construídas, não em cenários. A fotografia de Gordon Willis é meio dourada e com iluminação de cima para baixo. A villa onde a família Corleone e seus aparentados vivem é sofisticada, ligada por alamedas imponentes. Em Gomorra, o cenário, real, é um horrível conjunto habitacional da periferia imunda de Nápoles, um lugar chamado Scampia, ninho da Camorra. A luz é natural. As casas são sujas e com mobília velha. Desde que a Justiça italiana colocou em prática a chamada Operação Mãos Limpas, nos anos 80 e 90, vários chefões da máfia tiveram que abandonar seus palacetes e viver clandestinos em lugares sórdidos. E é nesses cenários sem nenhum glamour que as famílias decidem a vida dos milhares de habitantes e diversos negócios da Camorra.

Os negócios da Camorra também se diferenciam radicalmente dos tocados pelo clã dos Corleone. Em uma famosa cena de O Poderoso Chefão, Don Corleone (Marlon Brando — em papel que lhe valeu o Oscar de melhor ator) diz que sua família não iria entrar nos negócios de entorpecentes. As atividades da família eram o controle dos sindicatos, a corrupção política e o jogo. Em Gomorra, isso parece brincadeira de criança. A máfia napolitana controla o porto de Nápoles, por onde entram e de onde saem mercadorias contrabandeadas, inclusive drogas como cocaína e heroína. Mas não é só. Um dos chefes camorristas é dono de vários aterros clandestinos e ilegais nos arredores de Nápoles. Ele negocia diretamente com indústrias do norte rico da Itália, como Milão, os locais onde o lixo tóxico é depositado por preços muito abaixo do mercado. O resultado, ao longo dos anos, é um índice alarmante de contaminação do solo e um número igualmente elevado de pessoas com câncer.

Se O Poderoso Chefão geralmente é comparado a uma ópera na qual os personagens sofrem com as reviravoltas da vida, Gomorra pode ser visto como um grande afresco. Cinco histórias se sobrepõem no filme de Matteo Garrone e, juntas, formam um painel do mundo do crime em Nápoles. Há o já citado chefe do clã dos aterros de lixo tóxico. Há, também, a história de Pasquale, um talentoso estilista obrigado a costurar vestidos de grife falsificados. Ele é um frustrado, pois seu sustento depende de encomendas da Camorra, à qual ele e todos os personagens do filme estão condenados. Suas roupas acabam sendo vendidas, sem crédito, em sofisticadíssimas lojas européias e são comumente vistas sobre a pele de celebridades do cinema.

Se em O Poderoso Chefão a hierarquia prevalece — cada um sabe seu lugar e o chefe é um só, Don Vito —, em Gomorra impera certa anarquia, bem traduzida na história dos personagens Marco e Ciro. Eles roubam armas de camorristas e acreditam poder sair atirando e matando a esmo. Não é difícil prever o destino dos dois. Um dos focos do filme é mostrar o fascínio exercido pela Camorra sobre os jovens da periferia de Nápoles. Nisso, ele se assemelha mais a Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, mas é muito mais seco e árido. Não há concessões. Todos os habitantes vivem da máfia ou aterrorizados por ela. O Poderoso Chefão é uma obra-prima que marcou época e mudou a história do gênero. Gomorra, um excelente filme, não chega a ser uma obra-prima, mas, como O Poderoso Chefão, atualiza a visão do cinema sobre o mundo do crime organizado. 


O filme
Gomorra (2008), de Matteo Garrone. Com Toni Servillo e Gianfelice Imparato. Estréia neste mês. 

Veja também
O Poderoso Chefão (1972). De Francis Ford Coppola. Com Marlon Brando e Al Pacino. Um retrato fantástico da máfia italiana na Nova York do imediato pós-guerra. Disponível em DVD, em cópia restaurada.

(© Bravo Online)


Vídeo:

Trailer Gomorra


 

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