JURADO DE MORTESaviano: um escritor de talento e um homem de coragem sobre-humana
Gomorra, livro e filme, traz um panoramadevastador da Camorra, a superorganização criminosa que, de Nápoles,
abarca o mundo
Isabela Boscov
De início, não é fácil seguir o que está
acontecendo em Gomorra (Itália, 2008), que estréia nesta
sexta-feira no país: gângsteres são executados por amigos durante uma sessão
de bronzeamento; dois homens de meia-idade participam de um leilão para a
produção de peças de alta-costura em sua fabriqueta; um senhor de ar
próspero e seu jovem assistente inspecionam uma pedreira abandonada; bandos
vendem drogas num conjunto habitacional decrépito; o filho de uma dona de
armazém almeja virar soldadinho do crime, e é testado levando tiros no
peito, com um velho colete à prova de balas. Aos poucos, entende-se o que
liga esses personagens e suas histórias. Essa é a vida na periferia de
Nápoles e nas miseráveis cidades ao norte dela – e toda essa vida é
inescapavelmente tocada pela Camorra, a superorganização criminosa sediada
ali, na região italiana da Campânia, mas que se faz presente em todo o
planeta, de maneiras às vezes insuspeitadas. Deslindar essa teia foi o
formidável trabalho a que se dedicou o jornalista Roberto Saviano no
livro–reportagem também intitulado Gomorra (tradução de Elaine
Niccolai; Bertrand Brasil; 350 páginas; 39 reais), que chega às livrarias
neste dia 15, e no qual o filme do diretor Matteo Garrone se baseia. Aos 29
anos, Saviano está pagando um preço impossível pelo destemor, pela
meticulosidade de sua apuração e pela prosa fluente, que fizeram de
Gomorra um best-seller. É guardado 24 horas por dia por um destacamento
policial e perdeu tudo o que se assemelhe à normalidade. Desde a publicação,
há dois anos, a Camorra o jurara de morte. Com o lançamento do filme, os
clãs criminosos decidiram que a sentença deve ser cumprida quanto antes.
Saviano cogita deixar a Itália. Seu próprio livro, contudo, prova que a
Camorra está em toda parte.
Há alguns anos, a Camorra era uma organização
provinciana, eclipsada em alcance e celebridade pela Cosa Nostra, a máfia
siciliana. Mas a Operação Mãos Limpas caiu pesado sobre a Cosa Nostra e
desbaratou muitas de suas atividades. Nesse vácuo, a Camorra floresceu,
apoiada nas infinitas oportunidades proporcionadas pelo gigantesco porto de
Nápoles. Floresceu à sombra: ao contrário dos sicilianos, os camorristas não
dão a mínima para tradição e códigos de conduta, que muito contribuíram para
a mitologia em torno da Cosa Nostra. E, ao contrário de outros grupos
similares na selvageria, como os narcotraficantes cariocas, não querem saber
de "comunidade" nem de festa – a única coisa que interessa à Camorra é o
lucro, em margens astronômicas. Os camorristas seguem uma lógica capitalista
tão moderna e avançada que deram forma a um pesadelo: tornaram-se
indispensáveis à economia legítima, que muitas vezes nem imagina estar-se
valendo dos seus serviços para progredir. Em outros casos, imagina, sim. Mas
finge que não.
O traçado que Saviano faz das ramificações da
Camorra é aterrador. O "sistema", como ela gosta de se chamar, está na
vanguarda de todo tipo de negócio ilícito, como extorsão, prostituição e
tráfico de entorpecentes e de armas. Controla quase a totalidade das drogas
que entram na Europa (até a Cosa Nostra já compra dela) e é dona de parte
dos arsenais militares que ficaram a descoberto com o esfacelamento da União
Soviética. Neles, seu principal interesse são os fuzis AK-47, que, por ser
baratos e confiabilíssimos, são a arma preferida do terrorismo e da
guerrilha em todo o mundo. A Camorra mantém os estoques nos países de origem
e os movimenta conforme a encomenda, à moda de uma Amazon.com da venda
ilegal de armamentos.
Mais assustador ainda é quão fundo a Camorra
se infiltrou em setores que ninguém suporia associados ao crime organizado.
As grandes grifes italianas de roupas produzem suas peças exclusivas nas
fabriquetas da área de Nápoles. Como estas só recebem após a entrega do
produto pronto, dependem do financiamento da Camorra para entrar na disputa
pelas encomendas. Os artesãos são operários que vivem de seu trabalho exímio
(e mal pago, e sem nenhum benefício). Mas, em última análise, são empregados
da Camorra, como o livro mostra num episódio de partir o coração, dedicado
ao alfaiate Pasquale – que entra em depressão ao ver Angelina Jolie, no
tapete vermelho do Oscar, vestindo o terninho branco que ele confeccionou
anonimamente (no filme, o conjunto de Angelina vira um vestido para Scarlett
Johansson). As peças excedentes, idênticas às que serão vendidas nas lojas
das grifes, são distribuídas pela Camorra com o silêncio cúmplice das
marcas. Isso faz com que elas cheguem, como "falsificações", a consumidores
que de outra forma não poderiam adquiri-las, ampliando a fama das marcas sem
prejuízo de sua imagem de qualidade.
Da mesma forma, a Camorra se tornou
necessária à distribuição de "falsificações genuínas" de eletroeletrônicos,
à venda de alimentos para atacadistas, ou ao sistema de crédito financeiro –
e por aí afora. Onde os camorristas plantam suas bandeiras, porém, a morte
chega junto. Sua entrada no setor do saneamento urbano fez disparar a
incidência de câncer em certos locais, já que o lixo tóxico é despejado sem
proteção em aterros clandestinos (como a pedreira que o senhor próspero
inspeciona no filme). Seu sistema de tráfico de drogas é outro exemplo
eloqüente do comércio selvagem que a organização pratica. Todo ele foi
movido para áreas residenciais densas e de desemprego rampante, como as
cidades-satélite de Secondigliano e Scampia. O negócio fica "amigável" às
pessoas que não querem andar por guetos, e os moradores viram pequenos
investidores do tráfico: entregam seu dinheirinho a camorristas e levam
parte do lucro. Mas, claro, ficam sujeitos a execuções sumárias ou a ser
pegos no fogo cruzado das freqüentes disputas entre clãs rivais. Com sua
indiferença brutal a tudo o que não seja lucro – e está-se falando aqui em
faturamentos da ordem de 500 000 euros diários para cada clã –, os
camorristas testam novas misturas de drogas em viciados. Se eles passam mal
ou morrem, é sinal de que o "corte" não está no ponto.
Gomorra, o livro, alterna-se entre a
vida sobressaltada das pessoas miúdas tocadas pela Camorra e a visão do
macronegócio. Gomorra, o filme, fica quase que só com o universo das
pessoas pobres e pouco instruídas que, mais cedo ou mais tarde, formarão
algum laço com a Camorra. Ao fim de suas duas horas, tem-se uma idéia de
como é viver sob um poder invisível, mas onisciente e onipresente – um poder
quase divino, e totalmente maligno. Livro e filme transbordam também a
indignação de Saviano com o que ele julgava ser um tumor e descobriu
constituir um câncer em estágio avançado de metástase. Escritor versado e
homem de coragem singular, ele compartilha agora com os personagens que
descreveu a asfixia de viver sob uma sentença de morte.
A Camorra italiana ameaça matar até o Natal o jornalista Roberto
Saviano, autor de Gomorra, livro que revela nomes e atos da organização
criminosa
Antonio Gonçalves Filho
O filme Gomorra, baseado no livro homônimo que virou best-seller em 43
países, estréia dia 19 no Brasil, mas pode ser que seu autor, o
jornalista italiano Roberto Saviano, não esteja vivo até lá para
comemorar o sucesso da obra, um marco do atual cinema italiano e já na
lista dos favoritos do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009.
Saviano, escondido e protegido por escolta policial desde 2006, quando
lançou o livro na Itália, foi ameaçado de morte e corre o risco de não
comemorar o Natal este ano. A Camorra italiana, organização criminosa
sediada en Nápoles com ramificações no mundo todo (Brasil inclusive),
prometeu matá-lo até o dia 25, colocando um ponto final na carreira do
autor, cujo livro Gomorra (Bertrand Brasil, tradução de Elaine Niccolai,
350 págs., R$ 39) chega dia 15 às livrarias de todo o País.
A leitura de Gomorra - paronímia que aproxima a cidade bíblica dos
pecadores da Camorra italiana - deve ser feita preferencialmente com um
balão de oxigênio por perto. O ar é fétido, irrespirável, desde o
primeiro parágrafo, em que Saviano descreve uma cena apocalíptica. Nela,
um contêiner balança no porto de Nápoles enquanto a grua se desloca para
o navio. De seu interior desabam corpos congelados de chineses, cujos
documentos devem ter passado às mãos de compatriotas, igualmente
explorados pela Máfia chinesa, que, segundo Saviano, trabalha em
sociedade com a Camorra. E apresenta dados de tirar o fôlego: 20% das
importações têxteis da China passam pelo porto de Nápoles, onde 60% das
mercadorias escapam do controle aduaneiro. É também em Nápoles, segundo
ele, que opera o maior armador do Estado chinês, que administra o maior
terminal de contêineres napolitano em sociedade com empresários suíços,
donos da segunda maior frota de navios do mundo.
Bastaria essa denúncia para Saviano ser ameaçado pela Camorra. Apesar do
apoio público que recebeu de escritores como o anglo-indiano Salman
Rushdie e do ganhador do Nobel Orhan Pamuk, o destino de Saviano parece
mesmo selado desde o dia em que se infiltrou entre os camorristas para
descobrir como funcionava a máfia napolitana. Ele descobriu uma
organização envolvida tanto no tráfico de drogas como no despejo
clandestino de resíduos químicos, além dos rotineiros crimes de vingança
que envolvem famílias camorristas e seus dissidentes. No ramo
"empresarial", a Camorra comandaria ainda a construção civil na Itália,
a fabricação de leite adulterado, a importação de fuzis Kalashnikov e
até o tráfico de moldes das grifes européias para a China dos
falsificadores. Nada mais globalizado que o crime organizado.
Esqueça os gângsteres de terno de ''O Poderoso Chefão''. Em ''Gomorra'',
o crime organizado é sujo, violento e veste sunga
André Nigri
No início dos anos 70, um jovem e pouco conhecido diretor chamado Francis
Ford Coppola topou o desafio de reerguer um gênero em decadência havia pelo
menos duas décadas em Hollywood: o filme de gângster. Obras como Scarface —
A Vergonha de uma Nação (1932), de Howard Hawks, e Os Assassinos (1946), de
Robert Siodmak, fizeram grande sucesso quando lançadas, mas o público
parecia cansado e queria novidades. O estúdio Paramount procurava novos
talentos e resolveu bancar a idéia de Coppola: verter para as telas o
romance O Poderoso Chefão, de Mario Puzo, que se tornara um best-seller nos
Estados Unidos. Em 1972, quando a saga da família Corleone estreou nas
telas, não só o gênero saiu do coma como O Poderoso Chefão passou a figurar
nas listas das obras-primas do cinema. Em seguida ao sucesso, vários
diretores descobriram na máfia um novo filão. Vieram Capone — O Gângster
(1975), de Steve Carver, Scarface (1983), de Brian De Palma, e, quatro anos
depois, Os Intocáveis, do mesmo diretor. Martin Scorsese renovou o gênero
contando histórias do baixo clero mafioso em Caminhos Perigosos (1973) e
mais tarde faria Os Bons Companheiros (1990). O diretor Sam Mendes foi quem
mais diretamente dialogou com a obra de Coppola, quando filmou Estrada para
Perdição (2002). Todos esses filmes são filhos do Chefão. Todos os seus
diretores, com exceção do inglês Sam Mendes, são americanos. Neste mês,
entra em cartaz no Brasil o perturbador e excelente Gomorra, do italiano
Matteo Garrone, que, como O Poderoso Chefão, parece destinado a romper ou a
renovar o filme de máfia.
Gomorra é uma adaptação do romance homônimo do jornalista napolitano Roberto
Saviano, que, publicado há dois anos na Itália, chega ao Brasil com o filme,
em lançamento da editora Bertrand Brasil. O livro vendeu 1 milhão de cópias
em seu país e já foi traduzido para mais de 40 línguas. Saviano conta em
detalhes as entranhas da organização criminosa mais perigosa e carniceira do
mundo: a Camorra napolitana, conhecida por assassinar uma pessoa a cada três
dias, em média. A publicação custou caro ao autor. Saviano vive em lugar
desconhecido, com proteção policial 24 horas por dia. Os chefões do vespeiro
em que ele mexeu juraram-no de morte até o Natal. O filme adaptado do livro
é um marco no cinema italiano, combalido nos últimos anos com produções
medianas e sem fibra. Ganhou o Prêmio do Júri no último Festival de Cannes e
chega como um dos favoritos ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
Em quase tudo, Gomorra — paronímia entre Camorra e o nome da cidade bíblica
destruída pelo fogo dos céus — é o oposto de O Poderoso Chefão. A começar
pela glamorização. Coppola recriou a Nova York do imediato pós-guerra como
um fino ourives. O filme todo foi rodado em locações artesanalmente
construídas, não em cenários. A fotografia de Gordon Willis é meio dourada e
com iluminação de cima para baixo. A villa onde a família Corleone e seus
aparentados vivem é sofisticada, ligada por alamedas imponentes. Em Gomorra,
o cenário, real, é um horrível conjunto habitacional da periferia imunda de
Nápoles, um lugar chamado Scampia, ninho da Camorra. A luz é natural. As
casas são sujas e com mobília velha. Desde que a Justiça italiana colocou em
prática a chamada Operação Mãos Limpas, nos anos 80 e 90, vários chefões da
máfia tiveram que abandonar seus palacetes e viver clandestinos em lugares
sórdidos. E é nesses cenários sem nenhum glamour que as famílias decidem a
vida dos milhares de habitantes e diversos negócios da Camorra.
Os negócios da Camorra também se diferenciam radicalmente dos tocados pelo
clã dos Corleone. Em uma famosa cena de O Poderoso Chefão, Don Corleone
(Marlon Brando — em papel que lhe valeu o Oscar de melhor ator) diz que sua
família não iria entrar nos negócios de entorpecentes. As atividades da
família eram o controle dos sindicatos, a corrupção política e o jogo. Em
Gomorra, isso parece brincadeira de criança. A máfia napolitana controla o
porto de Nápoles, por onde entram e de onde saem mercadorias
contrabandeadas, inclusive drogas como cocaína e heroína. Mas não é só. Um
dos chefes camorristas é dono de vários aterros clandestinos e ilegais nos
arredores de Nápoles. Ele negocia diretamente com indústrias do norte rico
da Itália, como Milão, os locais onde o lixo tóxico é depositado por preços
muito abaixo do mercado. O resultado, ao longo dos anos, é um índice
alarmante de contaminação do solo e um número igualmente elevado de pessoas
com câncer.
Se O Poderoso Chefão geralmente é comparado a uma ópera na qual os
personagens sofrem com as reviravoltas da vida, Gomorra pode ser visto como
um grande afresco. Cinco histórias se sobrepõem no filme de Matteo Garrone
e, juntas, formam um painel do mundo do crime em Nápoles. Há o já citado
chefe do clã dos aterros de lixo tóxico. Há, também, a história de Pasquale,
um talentoso estilista obrigado a costurar vestidos de grife falsificados.
Ele é um frustrado, pois seu sustento depende de encomendas da Camorra, à
qual ele e todos os personagens do filme estão condenados. Suas roupas
acabam sendo vendidas, sem crédito, em sofisticadíssimas lojas européias e
são comumente vistas sobre a pele de celebridades do cinema.
Se em O Poderoso Chefão a hierarquia prevalece — cada um sabe seu lugar e o
chefe é um só, Don Vito —, em Gomorra impera certa anarquia, bem traduzida
na história dos personagens Marco e Ciro. Eles roubam armas de camorristas e
acreditam poder sair atirando e matando a esmo. Não é difícil prever o
destino dos dois. Um dos focos do filme é mostrar o fascínio exercido pela
Camorra sobre os jovens da periferia de Nápoles. Nisso, ele se assemelha
mais a Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, mas é muito mais seco e árido.
Não há concessões. Todos os habitantes vivem da máfia ou aterrorizados por
ela. O Poderoso Chefão é uma obra-prima que marcou época e mudou a história
do gênero. Gomorra, um excelente filme, não chega a ser uma obra-prima, mas,
como O Poderoso Chefão, atualiza a visão do cinema sobre o mundo do crime
organizado.
O filme Gomorra (2008), de Matteo Garrone. Com Toni Servillo e Gianfelice
Imparato. Estréia neste mês.
Veja também O Poderoso Chefão (1972). De Francis Ford Coppola. Com Marlon
Brando e Al Pacino. Um retrato fantástico da máfia italiana na Nova York do
imediato pós-guerra. Disponível em DVD, em cópia restaurada.