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Drama ressalta riqueza estética de Bertolucci

02/11/2008

Foto: Divulgação

 

Crítica/DVD/"O Conformista"

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

O escritor Alberto Moravia (1907-1990) já era uma personalidade na imprensa, na literatura e no cinema italianos em 1951, quando publicou "O Conformista". Quase duas décadas depois, o prestígio consolidado do autor não impediu que o cineasta Bernardo Bertolucci, então com menos de 30 anos, adaptasse o romance com liberdade em relação ao original, sobretudo no desfecho.

Enquanto o livro de Moravia usa um "herói contemporâneo" para expressar um sentimento antifascista com a ferida ainda aberta, o filme de Bertolucci se beneficia da distância no tempo para uma reflexão mais conectada com a idéia de ação política no final dos anos 60, que já havia fornecido matéria-prima para "Partner" (1968).

Natural, portanto, que Bertolucci considere "O Conformista" (1970) seu atestado de maturidade como diretor: além de se apropriar de material alheio para lhe dar sentido próprio, seu quarto longa para cinema demonstra a riqueza estética que o caracterizaria desde então, graças também ao início de parcerias duradouras com o fotógrafo Vittorio Storaro e o desenhista de produção Ferdinando Scarfiotti. Storaro (Oscar por "Apocalypse Now", "Reds" e "O Último Imperador") já havia trabalhado com Bertolucci em uma produção para a TV, "A Estratégia da Aranha", lançada no mesmo ano de "O Conformista" e também baseada em leitura muito particular de obra literária, o conto "Tema do Traidor e do Herói", do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).

A adaptação do romance de Moravia substitui a narrativa linear original por uma estrutura em forma de flashback, o que acentua o aspecto um tanto onírico da trajetória do protagonista Marcello Clerici (o ator francês Jean-Louis Trintignant, que já havia feito "Um Homem, uma Mulher" e "Z"). Servidor público que se considera diferente dos outros devido a um episódio de infância, ele quer apenas levar uma "vida normal".

Na Itália dos anos 30, o casamento com uma jovem de classe média baixa (Stefania Sandrelli) e a militância como agente fascista lhe parecem essenciais para construir a sua conformação social. A lua-de-mel em Paris traz sua primeira missão, aproximar-se de seu ex-professor antifascista, cuja mulher (Dominique Sanda, que faz também duas pontas) o atrai, para matá-lo. As idas e vindas no tempo exploram sua fragilidade, seus dilemas morais e seu processo de tomada de consciência, que o uso significativo de cores, sombras e espaços traduz em forma de cinema.

O CONFORMISTA
Direção: Bernardo Bertolucci
Distribuidora: Lume
Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: ótimo

(© Folha de S. Paulo) 

 


RODAPÉ LITERÁRIO

Os intestinos da Camorra


"Gomorra", livro de Saviano adaptado para o cinema, descreve o Estado paralelo criado pela máfia napolitana

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"GOMORRA" -livro do italiano Roberto Saviano que será lançado aqui pela editora Bertrand Brasil- começa com a descrição de uma avalanche de corpos que se precipitam de um contêiner alçado sobre o porto de Nápoles: esses troncos parecendo manequins, com etiquetas de identificação amarradas ao pescoço, são cadáveres de imigrantes chineses que pagaram para, uma vez mortos, serem levados de volta ao país natal.

À primeira vista, a cena tem pouca relação com o tema central da obra -o império econômico da Camorra (a máfia napolitana).

Mas a redução do corpo à mercadoria clandestina é um intróito perfeito para esse livro-reportagem que foi adaptado pelo diretor Matteo Garrone (o filme homônimo exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo) e obrigou Saviano a sair de Nápoles sob ameaças dos chefões do crime.

Os chineses de Nápoles são parte da indústria de contrafação e tráfico de drogas montada pelos camorristas. Captar esse mecanismo, assimilando-o à estrutura romanesca, é uma das virtudes de "Gomorra", cujo título explora a paronímia entre o termo Camorra e o nome da cidade bíblica destruída pelo fogo dos céus.

A reconstituição da cadeia produtiva mafiosa, que abarca desde produtos vendidos por camelôs até artigos da alta-costura (incluindo cocaína e heroína), é vazada numa linguagem que extrai do circuito da mercadoria as metáforas da deglutição e excreção que definem o fluxo do capital: a baía napolitana é o "ânus do mar que se alarga com grande dor dos esfíncteres", despejando os resíduos do abdômen cronicamente infeccionado da Itália moderna.

A relação da Camorra com as grandes grifes (que não podem prescindir da mão-de-obra ilegal e por isso toleram a falsificação) é mesma que se dá entre o norte industrializado e a economia informal das regiões meridionais: o contrabando é "a Fiat do sul, o "welfare" dos sem-Estado" -e isso abrange os resíduos industriais que vêm de metrópoles como Milão para os aterros de Nápoles, negócio tão rentável quanto o narcotráfico.

A descrição desse Estado paralelo, responsável pelos maiores índices de violência da Europa, tem semelhanças com "Cidade de Deus", de Paulo Lins, também no pacto ficcional que estabelece com o leitor: o narrador de "Gomorra" supostamente viu tudo aquilo que conta, mas imprime à narrativa um andamento cinematográfico, com guerras entre famílias, heroinômanos que servem de cobaia para testar drogas e jovens que idolatram mafiosos hollywoodianos em rituais de iniciação na violência -resultando num épico sobre a dinâmica de desejo e excesso que rege a sociedade contemporânea.

GOMORRA
Autor: Roberto Saviano
Editora: Mondadori
Quanto: 15,50 euros (334 págs.; pode ser encomendado pelo site: www.ibs.it)
Avaliação: ótimo

(© Folha de S. Paulo) 

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