Crítica/DVD/"O
Conformista" SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
O escritor Alberto Moravia (1907-1990) já era uma personalidade
na imprensa, na literatura e no cinema italianos em 1951, quando
publicou "O Conformista". Quase duas décadas depois, o prestígio
consolidado do autor não impediu que o cineasta Bernardo
Bertolucci, então com menos de 30 anos, adaptasse o romance com
liberdade em relação ao original, sobretudo no desfecho.
Enquanto o livro de Moravia usa um "herói contemporâneo" para
expressar um sentimento antifascista com a ferida ainda aberta,
o filme de Bertolucci se beneficia da distância no tempo para
uma reflexão mais conectada com a idéia de ação política no
final dos anos 60, que já havia fornecido matéria-prima para
"Partner" (1968).
Natural, portanto, que Bertolucci considere "O Conformista"
(1970) seu atestado de maturidade como diretor: além de se
apropriar de material alheio para lhe dar sentido próprio, seu
quarto longa para cinema demonstra a riqueza estética que o
caracterizaria desde então, graças também ao início de parcerias
duradouras com o fotógrafo Vittorio Storaro e o desenhista de
produção Ferdinando Scarfiotti. Storaro (Oscar por "Apocalypse
Now", "Reds" e "O Último Imperador") já havia trabalhado com
Bertolucci em uma produção para a TV, "A Estratégia da Aranha",
lançada no mesmo ano de "O Conformista" e também baseada em
leitura muito particular de obra literária, o conto "Tema do
Traidor e do Herói", do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).
A adaptação do romance de Moravia substitui a narrativa
linear original por uma estrutura em forma de flashback, o que
acentua o aspecto um tanto onírico da trajetória do protagonista
Marcello Clerici (o ator francês Jean-Louis Trintignant, que já
havia feito "Um Homem, uma Mulher" e "Z"). Servidor público que
se considera diferente dos outros devido a um episódio de
infância, ele quer apenas levar uma "vida normal".
Na Itália dos anos 30, o casamento com uma jovem de classe
média baixa (Stefania Sandrelli) e a militância como agente
fascista lhe parecem essenciais para construir a sua conformação
social. A lua-de-mel em Paris traz sua primeira missão,
aproximar-se de seu ex-professor antifascista, cuja mulher
(Dominique Sanda, que faz também duas pontas) o atrai, para
matá-lo. As idas e vindas no tempo exploram sua fragilidade,
seus dilemas morais e seu processo de tomada de consciência, que
o uso significativo de cores, sombras e espaços traduz em forma
de cinema.
O CONFORMISTA
Direção: Bernardo Bertolucci
Distribuidora: Lume
Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: ótimo
(©
Folha de S. Paulo)
RODAPÉ LITERÁRIO
Os intestinos da Camorra
"Gomorra",
livro de Saviano adaptado para o cinema, descreve o
Estado paralelo criado pela máfia napolitana
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"GOMORRA" -livro do italiano Roberto Saviano que será
lançado aqui pela editora Bertrand Brasil- começa com a
descrição de uma avalanche de corpos que se precipitam de um
contêiner alçado sobre o porto de Nápoles: esses troncos
parecendo manequins, com etiquetas de identificação
amarradas ao pescoço, são cadáveres de imigrantes chineses
que pagaram para, uma vez mortos, serem levados de volta ao
país natal.
À primeira vista, a cena tem pouca relação com
o tema central da obra -o império econômico da Camorra (a
máfia napolitana).
Mas a redução do corpo à mercadoria clandestina é um
intróito perfeito para esse livro-reportagem que foi
adaptado pelo diretor Matteo Garrone (o filme homônimo
exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo) e
obrigou Saviano a sair de Nápoles sob ameaças dos chefões do
crime.
Os chineses de Nápoles são parte da indústria de
contrafação e tráfico de drogas montada pelos camorristas.
Captar esse mecanismo, assimilando-o à estrutura romanesca,
é uma das virtudes de "Gomorra", cujo título explora a
paronímia entre o termo Camorra e o nome da cidade bíblica
destruída pelo fogo dos céus.
A reconstituição da cadeia produtiva mafiosa, que abarca
desde produtos vendidos por camelôs até artigos da
alta-costura (incluindo cocaína e heroína), é vazada numa
linguagem que extrai do circuito da mercadoria as metáforas
da deglutição e excreção que definem o fluxo do capital: a
baía napolitana é o "ânus do mar que se alarga com grande
dor dos esfíncteres", despejando os resíduos do abdômen
cronicamente infeccionado da Itália moderna.
A relação da Camorra com as grandes grifes (que não podem
prescindir da mão-de-obra ilegal e por isso toleram a
falsificação) é mesma que se dá entre o norte
industrializado e a economia informal das regiões
meridionais: o contrabando é "a Fiat do sul, o "welfare" dos
sem-Estado" -e isso abrange os resíduos industriais que vêm
de metrópoles como Milão para os aterros de Nápoles, negócio
tão rentável quanto o narcotráfico.
A descrição desse Estado paralelo, responsável pelos
maiores índices de violência da Europa, tem semelhanças com
"Cidade de Deus", de Paulo Lins, também no pacto ficcional
que estabelece com o leitor: o narrador de "Gomorra"
supostamente viu tudo aquilo que conta, mas imprime à
narrativa um andamento cinematográfico, com guerras entre
famílias, heroinômanos que servem de cobaia para testar
drogas e jovens que idolatram mafiosos hollywoodianos em
rituais de iniciação na violência -resultando num épico
sobre a dinâmica de desejo e excesso que rege a sociedade
contemporânea.
GOMORRA
Autor: Roberto Saviano
Editora: Mondadori
Quanto: 15,50 euros (334 págs.; pode ser encomendado
pelo site: www.ibs.it)
Avaliação: ótimo
(©
Folha de S. Paulo)
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