Diretor e ator vive um executivo que, após a morte repentina da
mulher, começa a agir de forma estranha
Alysson Oliveira, da Reuters
SÃO PAULO - Nos últimos anos, o diretor e ator italiano Nanni
Moretti criou uma marca registrada em seu cinema, combinando
cinismo, humor e reflexão. Embora ele não dirija Caos Calmo,
que estréia em São Paulo nesta sexta-feira, 3, é possível
encontrar a força do seu cinema nesse longa, até porque o filme
traz Moretti como protagonista e co-roteirista.
Caos Calmo é baseado no livro homônimo de Sandro
Veronesi e as comparações entre este filme e O Quarto do
Filho - um dos mais famosos de Moretti - são inevitáveis.
Mas as duas obras lidam com a perda de formas diferentes.
Aqui, Moretti é Pietro Paladini, um executivo cuja mulher
repentinamente morre no exato momento em que ele e o irmão Carlo
(Alessandro Gassman) salvam duas mulheres que se afogavam numa
praia. O protagonista fica preocupado com a filha pequena,
Claudia (Blu Yoshimi), que parece não reagir diante da tragédia.
Ele também tem uma reação estranha e não desabou em lágrimas.
Quando começam as aulas da menina, Pietro promete que não sairá
da frente da escola enquanto ela estiver lá. O que parece ser
uma promessa de brincadeira se torna real. O executivo não vai
trabalhar e fica postado num banco de um parque, observando as
pessoas - em especial as mães - enquanto a filha estuda. Um dia
se transforma em dois.
E assim começa uma nova rotina na vida de Pietro, que todos os
dias se posta à frente da escola. Familiares e amigos ficam
preocupados e tentam convencê-lo de que deve voltar ao trabalho
e deixar de lado esse comportamento surreal. Mas, aos poucos,
eles o procuram por outros motivos: Pietro se torna uma espécie
de conselheiro.
As pessoas querem lhe contar os seus problemas, querem sugestões
de como agir e se comportar diante do caos que se instalou em
suas vidas. Ele também começa a prestar atenção em uma bela
jovem que sempre passeia com seu cachorro pelos arredores.
O diretor Antonello Grimaldi poderia facilmente cair num
sentimentalismo barato e transformar Caos Calmo num
vale de lágrimas de tristeza ou redenção - mas ele evita todas
as armadilhas. Um menino, portador de Síndrome de Down, por
exemplo, com quem Pietro interage, se torna o catalisador para o
autoconhecimento do protagonista e sua relação com os outros.
Pela primeira vez desde Três Vidas e uma Só Morte
(1996), Moretti apenas atua e não dirige um filme. Aqui, ele é a
alma e o coração da história, unindo os pequenos dramas que lhe
são contados, e tentando lidar com seu próprio problema, sendo
pai e mãe da filha ao mesmo tempo.
Ganhador de três prêmios David Di Donatello (música, canção
original e ator coadjuvante para Gassman), Caos Calmo
causou certa polêmica na Itália, quando lançado no início do
ano, por conta de uma cena de sexo. Talvez a discussão nem seja
pela cena em si - que tem muito pouco de explícita - mas pela
figura de Moretti, que é visto como uma espécie de Woody Allen
italiano, cujos filmes falam muito sobre sexo, mas não mostram
nada. No entanto, no contexto do filme, o momento não é gratuito
e diz muito sobre os personagens.
(©
Estadão)
Filme italiano tem Nanni Moretti no papel principal, o de
um viúvo que passa a se ocupar inteiramente de sua filha
pequena
Crítica Luiz Zanin Oricchio
O título - Caos Calmo - evoca uma possível contradição. Como
pode um caos ser calmo? De que maneira estabelecer
serenidade em uma situação de desordem? O filme, baseado no
romance homônimo de Sandro Veronesi, tenta mostrar que não
existe tanta incompatibilidade assim entre esse substantivo
e esse adjetivo, e que uma estranha calma pode ser uma
reação possível a uma situação caótica.
É bom que se diga, de entrada, que o filme, dirigido por
Antonio Luigi Grimaldi, segura-se muito na interpretação de
Nanni Moretti - aqui num papel dramático, mas sempre,
segundo sua tendência, com algumas linhas de humor na
costura final. Ele faz Pietro, executivo que, um dia, salva
uma mulher que estava se afogando numa praia (Isabella
Ferrari). Acontece que, enquanto Pietro praticava a sua boa
ação, longe dali, a sua própria esposa morria, diante da
filha, de um mal súbito. Quando volta à casa de veraneio
onde a família passava férias, Pietro a encontra caída no
chão, a filha inconsolável. Como resultado, Pietro deve
administrar um luto bastante imprevisto em casal
relativamente jovem e tem de assumir a responsabilidade
paterna junto à filha em tempo integral.
Essa é a maior situação de estranheza, e que dá força à
história. Pietro deseja tornar-se tão próximo da filha que
praticamente abandona o trabalho, passa a levá-la à escola e
fica à sua espera sentado num banco em frente do colégio.
Boa parte do filme se desenrola nesse ambiente - na pracinha
defronte à escola, onde Nanni trava conhecimento com o
vendedor de jornais, com a garota bonita que passeia com o
cachorro, com o dono do restaurante onde faz as refeições,
etc. Cria-se uma microssociedade. É lá também onde vão
encontrá-lo as pessoas que têm assuntos a tratar com ele -
sua cunhada (Valeria Golino), com quem teve um caso no
passado, colegas da multinacional onde trabalha, e até o
poderoso chefão da empresa, uma ponta de Roman Polanski.
Não se pode negar que o filme tenha qualidades. Consegue
certa intensidade emocional nesse singular trabalho de luto
a que se submete o personagem. Pois é bem disso que se
trata, afinal. Pietro está traumatizado pela morte da esposa
e sua vida entra em colapso; ao mesmo tempo, procura
controlar-se, não demonstrar sentimentos, na esperança de
que assim livre a filha de sofrimento. Em meio a essa salada
de sentimentos, procura dar uma ordenação à vida. Na
verdade, busca uma ordem total, na forma de dedicação
integral à criança. Controla-se para que ela não sofra com a
perda da mãe. Sem perceber que, sem o sofrimento, também o
trabalho de luto, de que falava Freud, não pode ser
realizado.
O luto comporta uma certa expiação, mesmo uma determinada
culpa, por irracional que ela seja. Por exemplo, a garota
Claudia (Blu di Martino) reprova o pai porque ele não estava
em casa no momento em que a mãe passa mal, e termina
morrendo. Ora, Pietro estava na praia, ali perto, em
companhia do irmão (Alessandro Gassman) e, inclusive,
salvava uma vida. Era algo assim: uma vida pela outra. Só
que Pietro resgatava a vida de uma estranha e não de sua
mulher e mãe de sua filha. Tudo isso é irracional, mas as
culpas desse tipo também não são racionais. Quem for buscar
a "lógica" da história terá de levar esses fatos em
consideração. Não somos seres racionais. Pelo menos não
inteiramente. Pietro é um exemplo disso. E tenta administrar
a subversão interna que experimenta com um máximo de
controle. Tenta conter o caos e manter-se calmo.
É pena que essa proposta inteligente sirva-se, muitas vezes,
de situações próximas ao melodrama para, supostamente,
tornar-se mais intensa ou emotiva. O filme poderia
dispensar-se desses recursos. E orientar-se pela intuição de
Nanni Moretti para esse tipo de coisa, mesclando mais humor
e discrição aos tons pesados do enredo. Acontece que, nesse
caso, Nanni era o ator e não o diretor.
Serviço
Caos Calmo (Itália/ 2008, 112 min.) - Drama. Direção
Antonello Grimaldi. 12 anos.
Cotação: Bom
(©
Estadão) |