Philippe Ridet
Em Latina (Itália)
Todos eles concordam com o seguinte ponto: "Há dez anos ainda, a
nossa iniciativa teria sido impossível". Na sexta-feira, 26 de
setembro, em Latina (na região do Lácio, no centro do país), um
grupo de quinze prefeitos e de adjuntos para assuntos culturais está
reunido numa pequena sala da sede da província. Eles vieram de
Alghero, Aprilia, Pontinia, Sabaudia, Foggia... O que os motiva a
participarem deste encontro incomum? Um protocolo de acordo que eles
se preparam para assinar, por meio do qual cada um deles se
compromete a "trabalhar em prol da valorização do patrimônio
arquitetônico e ambiental das cidades italianas de fundação".
O termo "cidades de fundação" designa na Itália um projeto urbano
que foi implantado num território virgem, ou quase. Algumas cidades
tais como Pienza (Toscana) ou Sabbioneta (Lombardia), por exemplo,
surgiram durante o Renascimento. Mas aquelas que são objetos do
protocolo de Latina foram fundadas ou reestruturadas por Benito
Mussolini (1883-1945) durante o período do "Ventenio" fascista, ou
seja, aquela vintena de anos (1922-1943) durante a qual o "Duce"
reinou sobre a Itália.
Essas cidades são ao mesmo tempo o orgulho e o calvário desses
eleitos, sejam eles de direita ou de esquerda. No total, existem 143
delas, segundo um levantamento realizado pelo escritor Giovanni
Pennachi que lhes dedicou um livro - "Viaggio per le città del Duce"
(Viagem pelas cidades do Duce), editora Laterza -. Todas elas
carregam como um grande peso morto a idéia de serem a representação
arquitetônica da "ordem" fascista, com as suas largas avenidas que
conduzem até a sede da prefeitura, a igreja, o quartel e até uma
"casa del fascio" (uma das sedes políticas do fascismo).
Contudo, as "città di fondazione" do período fascista também
constituem exemplos de uma arquitetura moderna, ambiciosa e, sob
muitos aspectos, utópica. Nelas, os seus planejadores tentaram
construir uma ponte entre a Roma antiga e as contribuições do
Bauhaus, buscando evitar as influências do Renascimento e do
Barroco, períodos estes que o Duce considerava como decadentes. Para
tanto, eles lançaram mão da simplificação das linhas e da gramática
arquitetônica da Antiguidade, e buscaram racionalizar os
deslocamentos: "A arquitetura racionalista" também foi motivada por
bons sentimentos.
Implantadas, em sua maior parte, em terras que foram conquistadas
sobre pântanos, os quais foram então drenados (num processo que foi
chamado de "bonificação"), ou ainda, confiscadas dos latifundiários,
essas cidades foram colonizadas pelos mais pobres dos habitantes da
Península, muitos dos quais eram oriundos da região do Vêneto. Por
meio de uma simples sobreposição do mapa das áreas que foram
atingidas pela epidemia de malária durante os anos 1920 com aquele
da implantação dessas cidades, é possível compreender porque as
"città di fondazione" também constituíram uma resposta para um
problema de saúde pública, além de uma tentativa para tirar a Itália
do subdesenvolvimento.
O que fazer então com este patrimônio dotado de conotações ambíguas?
Abandoná-lo aos nostálgicos das camisas pretas (usadas pelos
militantes fascistas)? Enterrá-lo nos mais profundos rincões da sua
má-consciência? Na opinião de Augusto di Lorenzo, um adjunto para
assuntos culturais da prefeitura de Aprilia, uma cidade situada e
cerca de sessenta quilômetros ao sul de Roma, trata-se de "oferecer
raízes para aqueles habitantes que estejam em busca de uma
identidade". O contexto, contudo, é bastante peculiar. Isso porque
um vento revisionista, instigado por uma parte da população que
ainda vê com bons olhos certos aspectos do fascismo, está soprando
sobre a Itália. Liderado por Gianni Alemanno, o atual prefeito de
Roma, ou ainda por Ignazio La Russa, o ministro da Defesa - ambos os
quais são membros do partido Aliança Nacional -, este movimento visa
a reabilitar o fascismo, tentando absolvê-lo das suas realizações
mais condenáveis (as leis raciais, por exemplo).
Fica difícil, nessas condições, para os promotores desta iniciativa,
tentar fugir da pergunta colocada pelo historiador de arte Giorgio
Pellegrini no prefácio do catálogo de uma exposição que foi
realizada em Latina, em 2005: "Será ainda possível ler a arquitetura
das cidades de fundação a partir de um ponto de vista renovado, sem
sentir o peso das tragédias que se desenrolaram atrás das fachadas
de cada um desses edifícios?", indagava o autor, para então convidar
os interessados a superarem os preconceitos "contra essas cidades,
hoje consideradas como novas, onde aquela síndrome ideológica já
pode ser dada como extinta".
Os dois principais redatores da Carta de Latina (que em momento
algum menciona o nome de Benito Mussolini), o adjunto para questões
de urbanismo de Predappio (de esquerda), e o assessor para assuntos
culturais da província de Latina (de direita), não oferecem as
mesmas respostas para esses questionamentos. Na opinião do primeiro,
Giorgio Frassineti, "a história condenou o fascismo. No momento
atual, trata-se de promover um patrimônio arquitetônico importante,
e nada mais do que disso".
Mostrando-se mais ambíguo, o segundo, Fabio Bianchi, explica que
daqui para frente "a nossa maneira de enxergar o fascismo mudou, e
as condições de serenidade já estão reunidas para julgar. Este
regime não vivenciou apenas momentos negros". Por enquanto, os
eleitos que integram esse movimento decidiram se unir em torna desta
causa comum e já estão vislumbrando as multidões de turistas
desembarcando dos ônibus para visitarem as artérias das suas
cidades, e partindo à descoberta deste patrimônio um tanto
constrangedor.
No que vem a ser um sinal dos tempos, nenhuma polêmica veio
perturbar esta iniciativa. Bem que o diário "La Stampa" tentou
promover um debate em torno da questão, abrindo suas colunas para o
especialista Antonio Pennacchi, para quem "os projetos do fascismo
eram melhores que aqueles de Massimiliano Fuksas", um arquiteto
famoso na Itália atual. Mas a tentativa não deu em nada. Ninguém
reagiu à provocação. Entrevistado pela reportagem do "Le Monde",
Fuksas recusou-se a alimentar qualquer polêmica: "Não existe nenhum
estilo fascista específico, mas sim, apenas uma arquitetura moderna.
Muitos chegaram a confundir o arquiteto com o fascista. Esta mistura
de historicismo e de Bauhaus era praticada por pessoas cultas".
Tradução: Jean-Yves de Neufville
(©
UOL Mídia Global/Le
Monde)
|