Em sua segunda edição, festival busca equilíbrio entre desfile de estrelas de Hollywood e cinema de autorFlávia Guerra, do Estadão
ROMA - "No ano passado, ouvi esta pergunta muitas vezes. Este ano ouvi só uma vez. Ano que vem, espero que não seja mais feita", disse Danis Tanovic, o cineasta bósnio presidente do júri do Festival de Cinema de Roma, ao anunciar os premiados da segunda edição do festival, que terminou neste sábado. A festa (festa sim, porque o evento não tem a pretensão de ser um festival no sentido estrito do termo) terminou em ritmo de allegro com o concerto regido pelo mestre Ennio Morricone antes da entrega dos troféus Marco Aurelio. O vencedor foi o jovem e arrojado Juno, de Jason Reitman (O mesmo de Obrigado por Fumar). O filme, que é contundente e cortante em seu argumento e mais ainda em seus diálogos, conta a história de uma garota que engravida aos 16 anos e decide levar avante a gravidez, mas, em vez de criar o filho, escolhe dá-lo a um casal.
Resultados são importantes, claro, mas, em se tratando de um festival que procura se afirmar e definir seu caráter diante do mundo cinematográfico, como os prêmios são escolhidos e porque um festival existe ainda são questões tao relevantes quanto. Será que, como acha Tanovic, ninguém mais vai se perguntar porque fazer um festival de cinema em Roma (já que a Itália já possui um festival de relevância como Veneza e outro não tao relevante, mas artisticamente mais ousado como Torino)?
Se depender de nomes como Hector Babenco e Ennio Morricone, não. "Em vez de perguntar por que ter um festival de cinema em Roma, deviam se perguntar por que não ter. Eu te digo porque. Por figuras como ele’, disse Babenco apontando para o imenso pôster do imortal Totò (um dos maiores, se não o maior, ator cômico da Itália). "Porque festivais pelo mundo estão cada vez mais engessados e medíocres. Porque é preciso arejar este cenário", completou o diretor, que fez a première européia de seu ultimo filme, O Passado, na principal sessão competitiva de Roma, a Cinema 2007.
Por que não?
Morricone já tinha sentenciado há dois dias: "Roma merece um festival de cinema. Foi aqui que nasceu o cinema." Como não concordar? Como não concluir que de fato é um tanto absurdo o fato de o mais célebre centro cinematográfico do mundo depois de Hollywood, berço de obras-primas de mestres como Federico Fellini, Roberto Rosselini e Pier Paolo Pasolini, não possuir até 2006 um grande festival de cinema? Difícil ceder aos mais resmungões, que acusam o festival, criação da Fondazione Cinema per Roma, presidida por Goffredo Bettini, de ser uma ação muito mais política que cultural.
As duas partes deste cenário tem lá suas razões. No entanto, não deixa de ser curioso ver um festival ser comandado por um político (Bettini é membro da Ulivo, um dos principais grupos de centro-esquerda italianos) e ser acusado de gastar milhões para atrair demasiado estrelas justamente de Hollywood. Além de ser uma plataforma da coalisão do prefeito Walter Veltroni para ganhar a admiração dos cidadãos italianos e, portanto, votos. "Veltroni quer virar primeiro ministro. É claro que a esquerda italiana está fazendo um belo trabalho social e cultural. Mas um festival ser regido por gente de política e não gente de cinema só podia acontecer na Itália. Isso é muito típico daqui", analisou um bravo profissional da área.
Depois do emocionante concerto regido neste sábado por Morricone, diante da Orquestra e do Coro da Accademia Nazionale de Santa Cecilia, torna-se tarefa para ser cumprida a longo prazo analisar a real relevância que a Festa de Roma vai ter para o mercado mundial de festivais. Uma consideração seja feita. Relevância de mercado Veltroni, Bettini e companhia já estão buscando. "Estou muito satisfeito. Esta edição contou com mais de 311 profissionais e empresas participando do Business Street (o evento paralelo de troca de informações, parcerias e venda de filmes do Festival) e os negócios fechados durante a Festa só tendem a aumentar nas próximas edições", declarou Bettini.
Porque sim
Cinema é, sim, indústria. Ou deveria ser. Em um país em que a TV domina o imaginário coletivo e que há décadas vê desbotar o brilho adquirido com a fase de ouro do NeoRealismo, estabelecer um novo mercado em seu próprio território é tarefa dura para todo cineasta. Qualquer semelhança com o mercado brasileiro, infelizmente, não é mera coincidência. A legislação e a falta de espaço para o cinema italiano no circuito comercial é tao dura quanto em qualquer outro país do chamado "terceiro mundo". A classe italiana não se rende. Ao contrário. Antes da premiação, uma ‘vídeo-carta’ do movimento 100 Autori (100 Autores - http://www.100autori.it/) foi exibida. Nela, nomes de peso do cinema italiano, como Cristina Comencini, Riccardo Scamarcio, Paolo Virzì e outros, pedem que o cinema do país seja mais respeitado e ganhe leis que o apóiem. "Chega da supremacia da TV. O nosso pais deve ser contado também por meio do cinema, que emprega milhares de pessoas. Cinema é indústria e como tal deve ser tratado e considerado", dizia o manifesto.
Como indústria, precisa do público para se sustentar. Este tem sido, aliás, o principal diferencial destas duas primeiras edições da Festa de Roma. "Este não é um festival para cinéfilos nem para especialistas. É um festival para o público. Queremos formar platéia para o bom cinema, seja ele italiano, americano, brasileiro, francês. Os números são extraordinários. 100 mil ingressos foram vendidos (o dobro do ano passado", exemplificou Bettini.
Júri com 'pessoas comuns'
A organização do evento tem sido coerente. Tanto que o júri, em vez de cineastas e críticos, é formado por ‘pessoas comuns’ escolhidas na Itália e em vários países europeus. O presidente, Tanovic, tinha apenas a função de orientar os responsáveis por decidir quem levaria o troféu Marco Aurelio. "Isso è raro e especial. Nunca vi um festival assim. Me tornei amigo destas pessoas nestes dez dias de trabalho", disse Tanovic. Vale lembrar que a Mostra de Cinema de São Paulo faz o caminho inverso. É o publico que seleciona os dez filmes prediletos. E o júri, profissional, escolhe o vencedor entre estes.
Mas, enfim, aos vencedores, os Marco Aurelio. O Brasil, que concorria somente com O Passado, de Babenco, acabou levando um prêmio ‘de viés’. O corrosivo e ousado documentário Manda Bala, dirigido pelo americano Jason Kohn (filho de mãe brasileira e pai argentino) e totalmente filmado no Brasil com equipe brasileira, levou Menção Especial no prêmio Cult (concedido pelo conglomerado de mídia Sky TV, uma das maiores TVs a cabo da Itália). Entre outros prêmios paralelos, vale mencionar o ótimo La giusta distanza, de Carlo Mazzacurati, que deu ao ator Giuseppe Battiston Premio Lara (dos agentes de cinema). é torcer para algum distribuidor brasileiro exibir o filme no País. Na badalada sessão Première, a responsável por trazer a Roma as estrelas como Halle Berry, Francis Ford Coppola, Tom Cruise, Robert Redford entre outros, quem levou a melhor foi o ótimo Into the wild, de Sean Penn.
Viagem de última hora
Na Mostra Competitiva, que, verdade seja dita, acaba um tanto ofuscada pela constelação Hollywoodiana, o grande vencedor foi, como já dito, Juno di Jason Reitman. "O filme emocionou a todos do júri. O personagem de Juno è impecavelmente interpretado por Ellen Page que representa uma história forte, mas com muito humor", afirmou o presidente do júri, que fez questão de cumprimentar o jovem diretor vencedor. "Vocês não imaginam como me sinto. Eu não vinha para este festival, pois coincidia com o primeiro aniversário da minha filha. Ontem à noite, ligaram para mim e disseram: você tem de vir porque você ganhou. Imagine! Peguei o primeiro vôo dos Estados Unidos para cá. Vou aproveitar agora para dar uma passeada no Foro Romano’, declarou Reitman.
O jovem diretor canadense fez bonito em seu primeiro filme, Obrigado por Fumar. E continuou com sua verve sarcástica e inteligente neste segundo. Juno tem tudo que o jovem público de cinema quer. É ágil, flerta com a linguagem e os diálogos dos quadrinhos, tem diálogos cortantes. Mas não deixa de ter uma visão inteligente e crítica diante do niilismo cultural, de valores e social que vivem as novas gerações de todo o mundo. Muito por isso, tem potencial para fazer bonito não só nos EUA ou em Roma. É bom ficar de olho em Reitman. Ele só tem 30 anos e pode chegar mais longe ainda. A Roma, os caminhos de seu cinema já o trouxeram.
A lista completa dos vencedores:
MELHOR FILME - JUNO di Jason Reitman
PREMIO ESPECAL DO JURI - HAFEZ de Abolfazl Jalili
MELHOR ATRIZ - JANG WENLI por And the Spring Comes, de Chang Wei Gu
MELHOR ATOR - RADE SERBEDZIJA por Fugitive Pieces , de Jeremy Podes