Um dos grandes escritores do Holocausto, Primo Levi sofreu resistência em Israel por não criar heróis MERON RAPOPORT
Por muito tempo as obras de Levi não encontraram editores em Jerusalém. Ele não foi nem sequer convidado para o julgamento de Eichmann. A descoberta do texto de Primo Levi que se lê aqui não é resultado de uma longa e penosa pesquisa. O "Depoimento do Dr. Primo Levi, morador de Turim, C. Vittorio, 67" estava esquecido havia 47 anos no arquivo de Yad Vashem, e no alto do documento se vê o carimbo em hebraico e em inglês "Central Archives for the Disaster and the Heroism" [Arquivos Centrais sobre o Desastre e o Heroísmo]. "Disaster" era uma desastrada tentativa de transpor para o inglês o intraduzível Shoah. E Yad Vashem é, precisamente, o mais importante centro de documentação do Shoah. Certo dia, uma estudiosa israelense, Margalit Shlain, ao preparar uma comunicação sobre "A Percepção da Obra de Primo Levi em Israel", teve a idéia de visitar o arquivo e assim encontrou o depoimento de Levi, lavrado em Roma no dia 14 de junho de 1960 e incorporado ao acervo de Yad Vashem no mesmo ano. Levi o teria confiado aos representantes da magistratura israelense que estavam trabalhando na instrução do processo contra Adolf Eichmann, idealizador da "solução final do problema judaico", capturado na Argentina por agentes do Mossad em 1960 (o primeiro-ministro David Ben Gurion fez o anúncio da captura à Knesset em 23 de maio daquele ano). Segundo Shlain, o testemunho de Levi e mais outros 50 depoimentos de judeus italianos foram repassados aos gabinetes da Procuradoria em Jerusalém, mas Levi não foi chamado a testemunhar diante do tribunal que condenou Eichmann à morte [o relato e a interpretação mais famosa do julgamento estão em "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt, lançado no Brasil pela Companhia das Letras]. O processo de Eichmann não foi um simples ato judiciário. Nos primeiros anos de existência do Estado de Israel, falava-se pouquíssimo da Shoah.
Desmaio O julgamento, transmitido ao vivo pelo rádio durante meses, era, para Ben Gurion, uma ótima ocasião para apresentar o Estado judaico como o herdeiro de um judaísmo ferido de morte, herdeiro que no entanto aprendeu a lição (nunca mais Auschwitz e nunca mais vida em diáspora), e para narrar o Shoah ao público israelense. Foi esse o motivo que fez o procurador-geral Gideon Hausner pensar em convocar como testemunhas indivíduos que fossem conhecidos do público. Um deles era Yehiel Dinur-Feiner, sobrevivente de Auschwitz que assinava com o pseudônimo Ka-Tzetnik seus livros um tanto escandalosos, com cenas muito cruas sobre os horrores dos campos de extermínio, alguém muito popular nos anos 1950 em Israel. O escritor desmaiou no banco das testemunhas após ter pronunciado palavras que ficariam impressas na memória dos israelenses: "Venho de outro planeta, do planeta das cinzas que se chama Auschwitz". Levi não estava em Jerusalém. Lá, ele era desconhecido e assim permaneceu quase até sua morte. Em 1968, fez uma visita a Israel com uma delegação de "partigiani" de Turim. O historiador Isaac Garti esteve com ele em Jerusalém. Garti havia lido "É Isto um Homem?" em italiano, ficara comovido e queria traduzi-lo. "Tinha contatado várias editoras, mas todas recusaram o livro. Diziam-lhe: "Mais um livro sobre o Shoah? Já temos muitos. Ninguém o comprará"." Levi, relembra Garti, sorria dizendo que entendia perfeitamente. Um eco desse encontro com a incompreensão de sua obra em Israel aparece no prefácio que escreveu para a tradução de "A Trégua", seu primeiro livro a sair em hebraico, em 1979. "Estou muito feliz e orgulhoso de que minha "Trégua" venha à luz em Israel, muitos anos depois de seu nascimento na Itália. Não é estranho que meu primeiro livro, "É Isto um Homem?", não tenha sido traduzido em hebraico. Ele é o diário de um campo de concentração, assunto já muito conhecido." Já "A Trégua", dizia, narrava uma história inédita, motivo pelo qual era razoável esperar por seu sucesso. A esperança foi frustrada. Em sua primeira edição em hebraico, "A Trégua" vendeu 500 exemplares. "É Isto um Homem?" foi publicado em Israel, na tradução de Garti, somente um ano após a morte de Levi. Por que tanto atraso? Ariel Rathaus, professor de literatura italiana na Universidade de Jerusalém, diz que Israel segue os EUA. Quando lá se começou a falar de Levi (em meados dos anos 1980), Israel também se deu conta de sua existência. Nem todos estão de acordo. Dan Miron, respeitado crítico literário, escreveu que o establishment israelense não podia aceitar Levi porque seu modo de conceber o Shoah era contrário à maneira como Israel queria ver aquele período. A Auschwitz de Levi, diz Miron, não era "um outro planeta", mas "a continuação e a manifestação da normal conduta humana". Israel, ao contrário, queria tratar o Shoah como um acontecimento único, razão pela qual "o melhor escritor da Shoah" era ignorado pelos estudantes israelenses. Também para Margalit Shlain, Levi não foi ignorado por acaso. Israel buscava heróis, e Levi não era um herói. A literatura israelense sobre o Shoah pendia ao patético, e Levi observava Auschwitz com um olhar quase calmo. Para completar, não era sionista. Hoje as coisas mudaram: nos colégios os relatos de Levi são estudados, nas universidades se escrevem teses sobre sua obra. Até o premiê Olmert citou Levi em um discurso. No entanto o congresso para o qual Shlain escreveu sua comunicação sobre as obras de Levi ocorreu na Bélgica, e não em Israel, e mesmo lá o texto que pode ser lido aqui só foi mencionado, e não citado na íntegra. Para Primo Levi, a estrada em Israel ainda é longa. A íntegra deste texto saiu no "La Repubblica".
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Folha de S. Paulo)
Da prisão com membros da Resistência italiana ao embarque para a Alemanha em vagões de gado e o trabalho forçado em Auschwitz, o autor de "É Isto um Homem?" descreve com sangue frio a vida de um judeu durante a Segunda Guerra PRIMO LEVI
Em 9 de setembro de 1943, me refugiei com alguns amigos no Vale d'Aosta, mais precisamente em Brusson, sobre Saint-Vincent, a 54 km da capital da região. Fazíamos parte de um grupo de "partigiani" [que se opunham ao fascismo] constituído de muitos judeus, entre os quais recordo Guido Bachi, atualmente representante da Olivetti em Paris, Cesare Vita, Luciana Nissim, depois casada com Momigliano e atualmente domiciliada em Milão, autora do livro "Donne contro il Mostro" [Mulheres contra o Monstro], e Wanda Maestro, deportada e morta num campo de extermínio. Juntou-se a nós um sujeito que se apresentava como Meoli e que, sendo um espião, não demorou a nos denunciar. Com a exceção de Cesare Vita, que conseguiu escapar, fomos detidos em 13 de setembro de 1943 e transferidos para o quartel da Milícia Fascista de Aosta. Ali encontramos o comandante Ferro, que, ao tomar conhecimento de que todos éramos diplomados, tratou-nos com benevolência; mais tarde, ele foi morto por "partigiani" em 1945. Devo confessar que, como "partigiani", nós éramos bastante inexperientes; mas não menos inexperientes nos pareceram os milicianos fascistas que iniciaram uma espécie de processo contra nós. Havia entre eles um italiano do Alto Adige que falava perfeitamente alemão, um tal de Cagni, que já havia denunciado um outro grupo de "partigiani"; e havia também o "nosso" Meoli. Eles queriam obter de nós os nomes de outros "partigiani", sobretudo os dos chefes. Embora estivéssemos com documentos falsos, declaramo-nos imediatamente judeus, o que nos foi vantajoso, já que a busca feita em nossos alojamentos foi tão superficial que, no meu, não encontraram nem sequer os papéis clandestinos e o revólver que eu escondera ali. Ao saber que nós éramos judeus, e não "verdadeiros partigiani", o comandante nos disse: "Não acontecerá nenhum mal a vocês; todos serão transferidos ao campo de Fossoli, perto de Modena". Recebíamos regularmente o passadio destinado aos soldados e, no final de janeiro de 1944, nos levaram a Fossoli num trem de passageiros. Naquele campo ainda estávamos bastante bem. Não se falava de massacres, e a atmosfera era suficientemente serena. Permitiram que mantivéssemos o dinheiro que havíamos trazido conosco e que recebêssemos adicionais de fora. Trabalhamos na cozinha, em turnos, e assumimos outros serviços no campo; organizou-se até um refeitório, na verdade muito escasso!
Câmaras de gás Em Fossoli encontrei Arturo Foà, de Turim, que olhávamos com certa desconfiança, pois conhecíamos suas simpatias pelo fascismo; e também todos os mendicantes do gueto de Veneza e os velhos daquele asilo. Lembro-me de uma tal Scaramella e de uma Usigli. Havia ainda de 200 a 300 iugoslavos e alguns súditos da coroa inglesa. Quando soubemos que, em 18 de fevereiro, a SS alemã tinha entrado no país, ficamos todos alarmados; de fato, no dia seguinte, avisaram-nos de que seríamos deportados em 24 horas. Ninguém tentou fugir. Carregaram-nos em vagões de gado nos quais se lia: "Auschwitz" -nome que, naquele momento, não nos dizia absolutamente nada... A viagem durou três dias e meio; tínhamos preparado uma provisão coletiva de alimentos que fomos autorizados a levar conosco. Éramos 650 judeus... Durante a viagem, a escolta da SS se mostrou dura e desumana; muitos foram espancados até correr sangue. Quando chegamos a Auschwitz, nos perguntaram quem era capaz de trabalhar. De nós 96 respondemos afirmativamente, e em seguida nos conduziram a 7 km do campo até Buna Monowitz. Vinte e seis mulheres capazes de trabalhar foram transferidas ao campo de trabalho de Birkenau; todos os outros foram levados para as câmaras de gás! Em nosso campo de trabalho havia alguns médicos judeus. Lembro-me do dr. Coenka, de Atenas, do dr. Weiss, de Estrasburgo, do dr. Orensztejn, polonês, que se comportaram muito bem; não posso dizer o mesmo do dr. Samuelidis, de Salônica, que não escutava os pacientes que se dirigiam a ele em busca de tratamento e denunciava os enfermos à SS alemã! Vários médicos franceses de nome Levy, ao contrário, se mostraram bastante humanos! O nosso chefe de seção era o judeu holandês Josef Lessing, músico de orquestra profissional. Teve sob suas ordens de 20 a 60 homens e, na condição de responsável pela 98ª seção, demonstrou-se não apenas severo mas também cruel.
Retorno à pátria Entre os trabalhadores daquele campo, me lembro de um tal Di Porto, romano, de um certo Pavoncello, ou melhor, Lello Perugia, também de Roma, de Eugenio Ravenna, comerciante, e de Giorgio Cohen, de Ferrara, além de um tal Venezia, um meio grego de Trieste. Dos trabalhadores daquele campo, 95% eram judeus! A direção da fábrica na qual prestei os meus serviços não quis reconhecer os emolumentos devidos a nós por lei, e assim se deu que, ao voltar para o meu país, depois de vários anos, em seguida a uma ação legal comum movida pelos sobreviventes contra aquela fábrica, reconheceram e me pagaram 800 mil liras italianas como ressarcimento que me era devido nos termos da lei! Após a chegada das tropas soviéticas, fomos novamente transferidos ao campo de Auschwitz, à espera de podermos ser repatriados. A odisséia da volta foi bastante longa; os russos nos disseram que só poderiam fazer nossa repatriação por mar, embarcando-nos nada menos que em Odessa! Primeiramente nos transferiram para Katowice, depois para Minsk, depois para Sluck e, quando Deus quis, retornamos finalmente à Itália. Este texto saiu no "La Repubblica". Tradução de Maurício Santana Dias.
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Ofício de químico salvou Levi da câmara de gás DA REDAÇÃO Primo Levi (1919-87) estudou química na Universidade de Turim, ofício que lhe permitiu trabalhar -e sobreviver- por meses nos campos nazistas de concentração e extermínio da região de Auschwitz. De origem judaica, começou a escrever "É Isto um Homem?" (no Brasil, pela Rocco) em 1945, logo após sua libertação. Nesse romance autobiográfico, ele conta o que viu como prisioneiro dos nazistas. O relato de estréia foi editado em 1947 com dificuldade. Levi continuou a escrever e publicou contos, romances e poemas em combinação com a carreira de químico industrial. No Brasil estão disponíveis "A Trégua", "Se Não Agora, Quando?" e "71 Contos de Primo Levi" (Cia. das Letras), "O Último Natal de Guerra" (Berlendis & Vertecchia) e "Os Afogados e os Sobreviventes" (Paz e Terra). Matou-se em Turim, onde nascera.
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