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Veneziano ainda considera San Marco 'umbigo do mundo'

Luigi Costantini - 2003/Associated Press

Gôndolas participam de tradicional regata no Grande Canal, todos elementos descritos pela escritora inglesa Jan Morris em "Venice", um dos principais livros publicados sobre a cidade italiana
 

Para habitante local, artes e ciências saem dali em círculos que enfraquecem à medida que se distanciam

THIAGO MOMM
ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

Se a praça San Marco é o umbigo de Veneza, ela também já foi o umbigo do mundo. Isso porque Veneza, até que Vasco da Gama mudasse a rota do comércio para o Ocidente, em 1498, era uma república que mandava e desmandava em umbigos alheios.

Mas, para os nativos mais arraigados, continuou assim: "Os verdadeiros venezianos estão convencidos de que as habilidades, artes e ciências do mundo saem, em círculos que enfraquecem à medida que se afastam, da praça San Marco", escreveu a inglesa Jan Morris na década de 1960 em "Venice", livro revisado por ela três décadas depois e considerado pelo jornal "Sunday Times" o melhor já escrito sobre a cidade.

Verdadeira veneziana, uma atendente da livraria Sansovino (praça San Marco, 84; www.libreriasansovino.com) recomendou não apenas "Venice" como outros livros sobre a cidade italiana.

É bastante culpa dela a abordagem deste caderno. E culpa do repórter se a lista de livros sobre Veneza completada posteriormente e distribuída nesta edição omitiu algum grande título. Se não encontrar nenhuma falta grave, mostre a lista para um veneziano e ele fará isso por você. "Eles nunca resistem à oportunidade de dizer o quanto enganado você está", ensina Jan Morris.

Velha enrugada

Shakespeare (1564-1616) nunca viajou para lá. Escreveu a partir de relatos. Mesmo assim, "O Mercador de Veneza" e "Otelo, o Mouro de Veneza" (ambos R$ 10,50 pela ed. Martin Claret) estão entre os livros com que o leitor mais topará se fizer uma busca, nas livrarias, com o nome da cidade.

Também recorrente é "Morte em Veneza", de Thomas Mann (1875-1955), que no caso conheceu o cenário.

Giacomo Casanova nasceu naquela paragem e passou mais de 30 anos nela. É célebre a sua fuga da prisão do palácio Ducale, episódio que narrou na autobiografia. O filósofo francês Jean-Paul Sartre publicou dois ensaios, sobre a cidade e sobre o pintor local do século 16 Tintoretto, reunidos em "O Seqüestrado de Veneza".

O escritor inglês Milton Grundy recorreu a 116 livros para produzir "Veneza - O Guia de Antologias", que compila descrições de pessoas e livros famosos.

Inspirada em leituras como as de Grundy, a professora de literatura Tony Sepeda dá aulas na universidade local e conduz tours literários. E até aluga aos turistas uma casa com uma biblioteca especializada em história da arte e em... Veneza.

Estabelecida por aquelas bandas desde 1981, a norte-americana Donna Leon ambientou nelas, de 1992 para cá, nada menos que 16 romances policiais. "Com certeza não sou mais famosa do que Thomas Mann. Mas sim, suponho que sou famosa por escrever sobre Veneza", disse à Folha em entrevista em que explica seu gosto por espalhar cadáveres fictícios por vielas e canais.

Do que Leon não gosta é de turismo abundante. Lamenta os mais de 15 milhões que visitam suas imediações anualmente e inclui nos seus livros resmungos a respeito. Em "Morte no Teatro La Fenice", estampou: "Outrora capital das dissipações de um continente, Veneza se tornou uma cidadezinha provinciana que praticamente deixa de existir depois das nove ou dez da noite. Durante os meses de verão, ela pode lembrar seus dias de gala, enquanto os turistas pagam e o verão dura, mas no inverno torna-se uma velha enrugada e cansada, desejando apenas ir para cama bem cedo, deixando suas ruas desertas aos gatos e às lembranças do passado".

(© Folha de S. Paulo)

 


'Linda e quieta, a cidade é ideal para um crime violento'

Desde 1992, autora produziu mais de um romance policial por ano ambientado na cidade: foram 16 livros

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

Um sargento bóia morto, de bruços, nas águas de um canal às 5h30. Um travesti é largado sem vida em um terreno baldio. Um maestro que rege no teatro La Fenice morre no intervalo da ópera "La Traviata".

Solucionar esses crimes fará suar Guido Brunetti, comissário veneziano criado pela norte-americana Donna Leon (foto), que foi para a cidade em 1981 e desde 1992 espalha cadáveres fictícios por ela. Hábito estranho, que rendeu 16 romances policiais com Veneza como cenário e que ela justifica abaixo. (TM)  

FOLHA - Por que você se mudou para a cidade, em 1981?
DONNA LEON
- Vim porque, após dar aulas por um ano na Arábia Saudita, decidi parar de lecionar em diferentes países. Escolhi Veneza porque vinha para cá desde 1967, tinha bons amigos aqui e amava a cidade.

FOLHA - Você descreve uma Veneza bastante contemporânea. Fala, por exemplo, de senegaleses que vendem bolsas de luxo piratas...
LEON
- Escolhi falar dos vendedores de rua senegaleses porque há muitos deles e ninguém presta atenção neles.

FOLHA - Por que Veneza é um bom cenário de romances policiais?
LEON
- Acho que é porque é muito linda e quieta, então a idéia de um crime violento é um contraste muito maior do que seria em Roma ou Milão.

FOLHA - Que detetives famosos da literatura mais influenciaram a criação de Guido Brunetti?
LEON
- Não faço idéia. Li tantos romances policiais que é difícil saber onde começa e onde termina essa influência.

FOLHA - Em "Morte no Teatro La Fenice" você diz que Veneza é, no inverno, "uma velha que só quer ir para a cama". Não é muito pessimista?
LEON
- A única visão que alguém que mora aqui pode ter é pessimista. No último ano foram 16 milhões de turistas, e neste ano estima-se que serão 20 milhões. Ninguém pode ser otimista quanto à possibilidade de manter uma vida normal diante de números tão grandes.

FOLHA - Como moradora, que dica dá para quem for até aí?
LEON
- Dê uma grande caminhada e se perca. Não faça compras. Apenas olhe!

FOLHA - Com 16 romances sobre Veneza, você tem a fama de ser quem mais escreveu sobre a cidade?
LEON
- Com certeza não sou mais famosa do que Thomas Mann. Mas sim, eu suponho que sou famosa por escrever sobre Veneza.

(© Folha de S. Paulo)


Tour literário leva até a apartamento do policial fictício Guido Brunetti

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

Em tours de uma a duas horas, Tony Sepeda conduz turistas pela Veneza de Donna Leon. O passeio aborda cerca de metade dos 16 livros de Leon ambientados na cidade.

A caminhada começa no teatro La Fenice, onde o comissário Brunetti já investigou o assassinato de um maestro, segue por cafés, restaurantes e lojas que ele freqüenta e termina no "seu apartamento".

Brunetti, caracteriza sua autora, "odiava a maré alta com a paixão que todos os venezianos sentem por ela, com raiva antecipada dos turistas surpresos que se aglomerariam nas estruturas de madeira elevadas, rindo nervosamente, apontando, tirando fotografias e bloqueando as pessoas decentes que só queriam chegar ao trabalho ou fazer suas compras para ficar em lugares secos e se livrar do incômodo, da bagunça, da irritação constante que aquelas águas intermináveis traziam".

O passeio, que custa até 25 (R$ 66) por pessoa, acontece de quinta-feira a domingo. Mais informações pelo e-mail tosepeda@libero.it. (TM)

LIVROS DE DONNA LEON - "Morte em Terra Estrangeira"
Ed. Companhia das Letras, 360 págs., R$ 44

"Vestido para Morrer"
Ed. Companhia das Letras, 288 págs., R$ 39,50

"Morte no Teatro La Fenice"
Ed. Companhia das Letras, 336 págs., R$ 42

(© Folha de S. Paulo)


Professora promove passeio com bibliografia

Tony Sepeda, que organiza tours literários e com enfoque nas artes, recomenda pequena lista de leitura

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

Professora de literatura e história da arte na extensão da universidade norte-americana de Maryland em Veneza, Tony Sepeda faz com que o turista veja a cidade com muitos olhos.

Ela organiza tours literários e artísticos. E até aluga aos viajantes, no gueto judeu, uma casa de 400 anos com uma grande biblioteca de livros de arte ou que tratam de Veneza.

Sepeda guia os viajantes de várias formas. Uma é a partir do livro "Cidade dos Anjos Caindo" (Ed. Objetiva, 2006, 384 págs., R$ 49,90), do jornalista norte-americano John Berendt. O autor foi a Veneza para investigar as causas do incêndio que destrui o teatro La Fenice, em 1996, e a partir disso escreveu sobre a história local. O tour, que leva entre uma e duas horas, tem ênfase na área de Dorsoduro, por muito tempo um abrigo de artistas.

Há também caminhadas gerais ou que perseguem os passos do fictício comissário veneziano Brunetti.

Na universidade, Sepeda dá o curso "Artistas e Escritores Expatriados em Veneza", que fala da cidade retratada por autores como o poeta inglês Lord Byron (1788-1824), o romancista norte-americano Henry James (1843-1916) e o poeta e também norte-americano Ezra Pound (1885-1972).

Na abordagem artística, Sepeda leva pessoas ao museu da Accademia e a algumas igrejas. Nesse caso predomina um público de especialistas em arte e que já conhece Veneza.

Entre as leituras que recomenda estão "Venice", de Jan Morris, "As Pedras de Veneza", "Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica" (Ed. Martins Fontes, 710 págs., R$ 89,40), de Marcella Hazan, que se inspirou bastante na cidade, "Venice for Pleasure" ("Veneza para o Prazer", Ed. Trafalgar Square, 275 págs., R$ 72,33), um guia ilustrado, e "qualquer livro de Donna Leon, tão particulares sobre Veneza". (TM)

(© Folha de S. Paulo)


Se guia, Jan Morris seria jogada na água

Autora de um dos principais livros sobre a cidade, escritora inglesa sabe até hora em que ela foi fundada

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

Se fosse guia em Veneza, Jan Morris (foto) seria seguida por centenas de turistas. Ou jogada no Grande Canal, porque não pararia de falar. Jan Morris deve ser a única pessoa que sabe que Veneza foi fundada em 25 de março de 421 -ao meio-dia.

Inglesa historiadora e escritora de livros de viagem, ela nasceu homem (assinava James Morris) e trocou de sexo na década de 70 (hoje é uma velhinha de cabelos algodoados). Publicou mais de 30 títulos, sobre lugares como Hong Kong, Inglaterra e África do Sul.

Veneza é uma obsessão sua. "Venice", publicado em 1960 e revisado três vezes, é um dos livros mais caudalosos já escritos sobre a cidade italiana.

Sim, os turistas a seguiriam emocionados ou a jogariam para fora do vaporetto. "Veneza era um lugar de seda, esmeraldas, mármores, brocados, veludos, tecido de ouro, marfim, temperos, perfumes, macacos, ébano, anil, escravos, grandes galeões, judeus, mosaicos, domos brilhantes, rubis e todos os esplêndidos produtos da Arábia, da China e das Índias", diria, capitaneando as excursões, caso decorasse o que escreveu.

E os turistas, fotografando a cidade freneticamente (em Veneza, todo turista descobre um fotógrafo japonês interior), mal teriam assimilado as informações e já ficariam sabendo que "Veneza foi um Estado de grandes homens longevos: Tintoretto morreu aos 76, Guardi aos 81, Longhi e Vittoria aos 83, Longhena aos 84, Giovanni Be- llini aos 86, Titian e Da Ponte aos 88, Sansovino aos 91".

E que "duas facções da cidade, os Nicolotti e os Castellani, eram tão rivais que a antiga ponte do Rialto era levadiça, permitindo às autoridades separar as multidões. Já a igreja de San Trovaso tinha uma porta em cada lado, uma para o território dos Nicolotti, e a outra, para o dos Castellani".

A essa altura os turistas estariam, eles mesmos, divididos em duas facções, os pró e os contra Jan Morris, e enquanto isso aprenderiam que "houve um gato que se tornou uma celebridade internacional no final do século 19. Chamava-se Nini, e vivia em uma cafeteria onde havia o livro de visitas a Nini, em que os clientes assinavam. Quando morreu, em 1894, poetas, músicos e artistas ofereceram exageradas condolências, e um escultor fez a figura do animal, que costumava ficar em uma parede ao lado da loja. "Nini!", disse um obituário, "uma jóia rara, a mais honesta das criaturas'".

E certamente atirariam Morris na água, mas de lá ainda escutariam que, dos 25 primeiros doges, os governadores, "3 foram assassinados, 1 executado por traição, 3 cegados pela Justiça, 4 depostos, 1 exilado, 1 morto em uma batalha com piratas..." (TM)

LIVRO - "Venice"
Jan Morris, ed. Faber and Faber UK, 336 págs., R$ 44,86

(© Folha de S. Paulo)


Livro une o melhor de outros 116

Embora se aproxime de guia de turismo comum em algumas partes, obra conversa mais com iniciados

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

Um trabalho sobre Veneza de esforço comparável ao da inglesa Jan Morris é o do também inglês Milton Grundy, que realmente parece ter lido, e com lupa, os 116 livros mencionados na bibliografia do seu "Venice -The Anthology Guide" (Veneza - O Guia de Antologias).

Mas Morris talvez ainda ganhe, porque o próprio Grundy não se cansa de recorrer a passagens dela em seu livro.

Publicado pela primeira vez em 1971, o guia acaba de ganhar sua sexta edição em inglês. Traz sete sugestões de caminhadas. Nesse sentido, aproxima-se de um guia de turismo comum.

Mas é apenas nesse sentido. De resto, é um livro de nível no mínimo intermediário, para turistas já habituados à cidade. Entre outros, Grundy leu os títulos mais consagrados sobre Veneza, a partir do que compilou os trechos que julgou mais representativos.

Assim, quem tiver esse guia em mãos pode ler as impressões do compositor alemão Richard Wagner (1813-1883) sobre a piazza San Marco, os comentários do escritor norte-americano Henry James (1843-1916) sobre a basílica ou as avaliações do crítico de arte inglês John Ruskin (1819-1900) sobre as pinturas locais.

Apenas sobre um quadro de Jackson Pollock no museu Guggenheim há meia página em letras minúsculas de citações. Para absorver todos os passeios sugeridos, um zeloso viajante precisaria no mínimo de um mês. (THIAGO MOMM)

LIVRO - "Venice - The Anthology Guide"
Milton Grundy; ed. Trafalgar Square, 248 p., R$ 92,05

(© Folha de S. Paulo)


Se deixassem, Tintoretto pintaria até os gondoleiros

Em ensaio da década de 1950, Sartre rasgou elogios ao artista orgulhosamente veneziano do século 16

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

O pintor Tintoretto é tão próprio de Veneza quanto o barco de transporte público vaporetto, tendo até o repórter ouvido uma turista dizer que para chegar à estação de trem iria navegar com o Tintoretto.

"Deixem-no à vontade, e ele cobrirá com suas pinturas todas as paredes da cidade, campo algum será vasto demais, batente algum, obscuro demais para que ele renuncie a iluminá-los; revestirá os tetos, os passantes andarão sobre suas belas imagens, seu pincel não poupará nem as fachadas dos palácios sobre o Grande Canal, nem as gôndolas, nem talvez os gondoleiros. Esse homem imagina que recebeu de nascença o privilégio de transformar sua cidade em si mesmo e, de certa maneira, pode se sustentar que ele tem razão."

Assim o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) emoldura o mercado de arte em Veneza na época de Tintoretto (1519-1594), de nascença Jacopo Robusti, um dos pintores que mais cobriram paredes da cidade com obras suas.

Contemporâneos dele, Ticiano (1490-1576) e Veronese (1528-1588) viveram a maior parte de suas vidas em Veneza e morreram lá, mas não eram venezianos de nascença.

Na época dos três, "os pintores ficavam com os quadros na praça. Os compradores chegavam, examinavam todos e os levavam para sua igreja, sua escola, seu palácio. Era preciso oferecer e aceitar qualquer trabalho, na esperança de mostrar talento. Tudo era fixado por contrato: o tema, o número, a qualidade, às vezes até mesmo a atitude dos personagens, as dimensões da tela. Os clientes tinham, ai de mim, inspirações súbitas", retrata Sartre.

O filósofo critica o desdém que Tintoretto sofreu por parte dos seus conterrâneos -seria muito pretensioso para um filho de tintureiro- e de Ticiano -seria competente além do permitido: uma piada repetida livros afora diz que, após abrigá-lo dez dias no seu ateliê, Ticiano percebeu que o novato era um gênio e o expulsou.

O jeito foi, no começo da carreira, oferecer "genéricos" de obras dos concorrentes: "Farei um Veronese para os senhores. E mais barato", prometia o artista aos seus clientes.

Também se destacou porque, "para pintar um bom quadro, basta-lhe o tempo que os outros levam para fazer maus esboços", entusiasma-se Sartre.
(THIAGO MOMM)

LIVRO - "O Seqüestrado de Veneza"
Jean-Paul Sartre; ed. Cosacnaify, 102 págs., R$ 39

(© Folha de S. Paulo)


ONDE VER AS OBRAS


Accademia (de seg. a sex., das 9h às 19h, e aos dom. e feriados, das 9h às 14h)

Palácio Ducale (no verão, das 8h30 às 19h; no inverno, das 9h às 16h)

Scuola Grande de San Rocco (no verão, das 9h às 17h30; no inverno, das 10h às 17h)

Livraria Sansovino (de seg. a sáb., das 9h às 13h)

Igreja de San Giorgio Maggiore (no verão, das 9h30 às 12h30 e das 14h30 às 18h)

Igreja Santa Maria della Salute (das 9h às 12h e das 15h às 16h30)

Igreja de San Zaccaria (das 10h às 12h e das 16h às 18h)

Igreja de Santo Stefano (de seg. a sex., das 8h às 12h e das 18h às 20h, e dom., das 7h30 às 12h30 e das 18h às 20h)

Igreja de San Cassiano (das 7h30 às 12h e das 18h às 19h)

(© Folha de S. Paulo)


Adolescente faz alemão deixar o mau cheiro da laguna para lá

DO ENVIADO ESPECIAL

De tamanho desproporcional à sua fama, "Morte em Veneza" só tem 114 páginas. Elas contam as férias do consagrado escritor Aschenbadt, que, cansado de sua rotina de trabalho em Munique, vai parar no Lido, a praia de Veneza, no verão.

Suas férias são instáveis: o cheiro da laguna e o ar carregado do siroco (o vento quente que sopra no Mediterrâneo, vindo do norte da África) o deixam mal, mas sua súbita paixão por Tadzio (um adolescente de quem não se revela a idade) o faz deixar o mau cheiro para lá.

Dividido entre sua vida produtiva em Munique e sua vida mais intuitiva em Veneza, entre seguir o intelecto ou despachá-lo de volta para a Alemanha, Aschenbadt reflete: "A suprema ventura do escritor é o pensamento capaz de tornar-se por inteiro sentimento, e o sentimento capaz de tornar-se por inteiro pensamento".

Além do Lido, o livro tem cenas na piazza San Marco, no Grande Canal e nas embarcações -gôndolas incluídas, claro: o protagonista até discute com um gondoleiro ilegal. (TM)

LIVRO - "Morte em Veneza"
Thomas Mann (foto); ed. Relógio D'Água, 114 págs., R$ 30,50

(© Folha de S. Paulo)


Casanova e amigos barbarizavam as noites venezianas

Famoso por mulheres, conquistador também tocava sino e saía correndo e soltava gôndolas pelos canais

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

Casanova era um moleque. Principalmente no Carnaval. Se festasse no Pelourinho hoje, e não na piazza San Marco há 260 anos, acumularia mais mulheres e apavoraria mais as ruas do que qualquer folião daqui.

Era um patusco. Uma vez, pegou "emprestada" uma esposa por uma noite. Estava com sete amigos. Entraram em um bar, todos mascarados, e disseram para três homens ao lado de uma mulher que, por ordem do Conselho dos Dez (o conselho que mandava e desmandava, torturava ou aliviava na República de Veneza), eles deveriam sair dali. Os três foram levados até a ilha de San Giorgio Maggiore, e depois a mulher, Casanova e os amigos passaram a noite bebendo e flertando.

Era um fanfarrão. Também avacalhava a ordem pública em outras épocas. De madrugada, soltava gôndolas vazias pelo Grande Canal para complicar a vida dos gondoleiros pela manhã ou anunciava falsos partos para obrigar médicos e parteiras a acordar subitamente. Na falta dos ainda não inventados interfones para tocar e sair correndo, badalava os sinos das casas. E saía correndo.

Apesar dessas molecagens, o que levou o substantivo "casanova" aos dicionários foi o mulherio: "Indivíduo mulherengo", resume o Aurélio; "indivíduo que se dedica com grande empenho a conquistas amorosas; mulherengo", define o Houaiss; "indivíduo sedutor, que faz sucesso com as mulheres", diz a definição italiana original, compreensivelmente mais orgulhosa. Don Juan não teve tanta sorte: para o Houaiss, significa "libertino sedutor e sem escrúpulos".

Mas não que Casanova tivesse esses tais de escrúpulos. Saiu até com a própria filha. Também questionável era o fato de Bettina, Lucia, Teresa, Giulietta, Nanetta, Marta, Lucrécia, Cecília, Henriette e outras que compuseram seu vasto portfólio serem casadas, virgens, irmã uma da outra...

E não que Casanova escondesse sua amoralidade. Até a ostentava. Conta que, certa vez em Orsara, na Itália, um médico o convidou para almoçar. Por quê? Para agradecer, porque havia ficado muito tempo sem pacientes mas, depois de uma antiga passagem de Casanova pelo município, uma doença venérea se espalhara, lotando o seu consultório.

Em um conto, o italiano Italo Calvino (1923-1985) debocha do currículo do compatriota - imagina um Casanova neurótico com tantas conquistas: "Certas expressões que com Cate eram moeda corrente, com Ilda soavam falsas (...). Meu espírito tornara-se o campo de batalha das duas mulheres", diz o fictício Casanova, que afirma já não saber quem "verdadeiramente" é. O portfólio tornara-se um peso. Casanova era um devasso. E Calvino, um invejoso.
(THIAGO MOMM)

LIVRO - "History of my Life"
Giacomo Casanova; ed. Penguin, 576 págs., R$ 35,88

(© Folha de S. Paulo)


Biografia foi toda marcada por exageros

DO ENVIADO ESPECIAL

A incontável penca de mulheres de Casanova ofuscou o resto dos seus feitos, mas outros campos da sua vida também foram extraordinários. Além de casanova, Casanova foi religioso, violinista, soldado, bibliotecário, tradutor, espião, filósofo e alquimista.

Filho de artistas nascido em Veneza, ele conheceu Berlim, Paris, Praga, Londres, Madri, Moscou, Viena e outros destinos europeus em uma época (viveu de 1725 a 1789) em que cruzar o continente não era nada corriqueiro.

Conheceu muitas personalidades daquele tempo: o rei francês Luís 15 (1710-1774), o rei da Prússia Frederico, o Grande (1712-1786), a czarina russa Catarina, a Grande (1729-1796), os papas Benedito 14 (1675-1758) e Clemente 13 (1693-1769) e os pensadores Voltaire (1694-1778) e Rousseau (1712-1778), entre outras.

Também incomum foi a quantidade de páginas que manuscreveu para a sua autobiografia, "A História da Minha Vida": 3.600, e quando morreu ainda não havia terminado. Para tornar a leitura viável, a editora Penguin fez a peneira das peneiras e chegou a uma versão com 532 páginas, ainda não traduzida para o português.

A autobiografia descreve bem a atmosfera da Veneza do século 18. Mas, para quem seguir cenários descritos, não é o livro ideal: primeiro porque Casanova muitas vezes não especifica os lugares por onde passa, e depois porque viveu muitos anos distante da sua cidade. (TM)

(© Folha de S. Paulo)


Guggenheim serve de respiro contemporâneo nessas ruelas classudas

DO ENVIADO ESPECIAL

"Este é "O Poeta", quadro de Picasso", disse a professora veneziana, e perguntou aos alunos de cinco, seis anos o que eles distinguiam na pintura estilhaçada. "Os óculos do poeta", pensei, satisfeito com a minha percepção. "O braço de uma cadeira", respondeu uma criança italiana superdotada.

"Bravíssimo!", parabenizou a tia. Na sala seguinte, diante de outro quadro, um outro aluno explicou que as luzes incidindo na montanha eram avermelhadas para representar um final de tarde. Um novo parabéns.

Quase interrompi a aula para contar que li "Pé de Pilão", de Mário Quintana, quando era pequeno, e quem sabe ganhar um "bravíssimo".
Mas era um feito bem menos prodigioso, então segui sozinho meu tour pelo museu Peggy Guggenheim.

Além de obras de Picasso (1881-1973), estão no museu pinturas dos alemães Max Ernst (1891-1976) e Paul Klee (1879-1940), do norte-americano Jackson Pollock (1912-1956) e outros. O acervo permanente não é extenso -pode ser bem percorrido em menos de duas horas- e é uma ótima amostra de arte contemporânea, recomendável para quem não gostar de Tintoretto, Ticiano e outros classudos onipresentes pela cidade.

Endinheirada a partir de uma boa herança, a norte-americana Peggy Guggenheim (1898-1979, foto) decidiu comprar um quadro por dia e os expôs em Londres e Nova York antes de ir morar em Veneza, em 1947. Lá, teve a última gôndola particular da cidade e está enterrada, com 14 cachorros de estimação seus, no quintal do palácio onde fica o museu. O nome de cada cão e a data em que viveram estão listados abaixo da inscrição "my babies", próxima da lápide. (TM)

GUGGENHEIM VENEZA
Dorsoduro, 704; de qua. a seg., das 10h às 16h; ingresso: 10 (R$ 26); tel.: 00/xx/39/041/ 240-5411
www.guggenheim-venice.it

(© Folha de S. Paulo)


VEJA MAIS LIVROS SOBRE A CIDADE

"Guia Top 10 Veneza"
Ed. Publifolha, 160 págs., R$ 39,90
Mais de 500 passeios, listados por temas como museus, palácios e escritores. Tem mapa de ruas.

"As Pedras de Veneza"
John Ruskin; ed. Martins Fontes, 210 págs., R$ 56,80
Crítico de arte, Ruskin (1819-1900) descreve a herança arquitetônica.

"Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores"
Ernest Hemingway; ed. Bertrand Brasil, 334 págs., R$ 39
A história do coronel Cantwell, apaixonado por uma jovem condessa italiana, se passa no Harry's Bar.

"Viagem à Itália - 1786-1788"
J.W. Goethe; ed. Companhia das Letras, 440 págs., R$ 74,50
Goethe viu o mar pela primeira vez do alto do campanário. Relata experiências como essa no diário de viagem, com desenhos feitos por ele.

"O Mercador de Veneza" e "Otelo, o Mouro de Veneza"
William Shakespeare; ed. Martin Claret, R$ 10,50
Shakespeare nunca foi à cidade, mas, a partir de relatos, usou-a como cenário desses dois livros

"Ao Deus Dará"
Ian McEwan; ed. Rocco, 132 págs., esgotado
Casal inglês passa um feriado em Veneza para pôr em ordem a relação. Um dia, um estranho os convida para acompanhá-lo.

"O Enigma Vivaldi"
Peter Harris; ed. Relume-Dumara, 336 págs., R$ 39,90
Nessa ficção, Vivaldi acha documentos que ameaçam a civilização, mas não os divulga. Dois jovens descobrem o segredo 250 anos depois.

INFANTIL

"Gaspar em Veneza"
Georg Hallenslebem e Anne Gutman; ed. Cosacnaify, 28 págs., R$ 34
Cinco cães andam de caiaque pela cidade para mostrá-la às crianças.

"Mistério em Veneza
Thomas Brezina; ed. Ática, 88 págs., R$ 21,90
Três amigos topam com um barqueiro mascarado, que os persegue.

(© Folha de S. Paulo)


Caipirinha a R$ 42 reflete supremacia de turistas

Mapa labiríntico e especulação de como seria excepcional morar na cidade deixa turista mais lerdo

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

O jornalista norte-americano Ambrose Bierce (1842-?) riu dos que se locomoviam sonhando "resolver na cidade "b" os problemas que têm na "a'". Mas pode ser justamente essa a primeira impressão do turista que chega a Veneza: achar que, uma vez estabelecido por lá, problemas nunca mais.

Após esperar inutilmente pelo vaporetto em duas estações (depois do entardecer, o barco tem o intervalo mudado em alguns pontos e deixa de passar em outros), o repórter caminhou da piazza San Marco até o terminal de ônibus, no extremo oposto da cidade, na sua conexão terrestre com o mundo.

Em linha reta ou quase, tomaria meia hora; em Veneza, toma mais de uma hora. Não só porque o mapa é um labirinto, com ruelas terminando em paredes, mas porque aquela cisma deixa o turista mais lerdo.

Como disse o arquiteto franco-suíco Le Corbusier (1887-1965), lá o pedestre é dono do território. Moto, carro, caminhão, nada disso existe.
Nem bicicletas ou patins são vistos. Nem mesmo, como em Morro de São Paulo (BA), carrinhos de mão servindo como táxi para transportar malas ou crianças.

Sim, mas...

Então junto as trouxas, hipoteco as coisas, mudo para lá e jogo os problemas na laguna?

O garçom de um restaurante próximo da piazza San Marco acaba de fazer o contrário: pagava 900 (R$ 2.379) para alugar uma peça única, e agora paga, em Mestre, cidade próxima dali, 600 (R$ 1.584) por um apartamento de dois quartos.

Incomodam os venezianos a "acqua alta", a maré alta que faz soar alarmes e causa prejuízos; os pombos, que já são cerca de 40 mil no centro histórico, um dos poucos locais onde ainda é permitido dar comida a eles; os 18 vendedores de comida aos pombos ali na piazza San Marco, que alimentam essa diversão clichê dos turistas.

Turistas. Turismo em massa. Eis o que não incomoda, e sim enerva os venezianos. Na falta de carros, o morador local é atropelado por uma horda que, como protesta a escritora Donna Leon, admira mais as vitrines que expõem bugigangas turísticas do que a cidade em si.

Enervam os venezianos os efeitos desse turismo em massa, como caipirinhas a 16 (R$ 42) no Caffé Florian (www.caffeflorian.com), o primeiro café europeu, de 1720. Ainda mais famoso, o Harry's Bar, próximo dali, não cobra menos.

Por isso, o garçom não está sozinho na sua debandada: desde a década de 1960, a população da cidade caiu quase pela metade, de 121 mil para 62 mil habitantes. Colaborou para isso a inundação de 1966, que atingiu quase dois metros de altura e destruiu 16 mil casas, mas também a inundação cada vez maior de visitantes (na alta temporada, são 500 mil por dia), que, ao encarecer a vida local, estimula a fuga de mais de mil moradores por ano.

Por tudo isso a Veneza que o repórter encontrou às 20h, de nativos reunidos em uma praça silenciosa conversando sobre nada e jogando bola enquanto o sol sumia, é apenas parte da realidade. É a que ilude o viajante e o torna alvo da piada de Ambrose Bierce. (TM)

(© Folha de S. Paulo)

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