Em O Crocodilo, Nanni Moretti faz um
violento ataque ao ex-premiêBerlusconi– e à Itália que se deixou seduzir por ele
Isabela Boscov
Outrora produtor de filmes trash
como Maciste contra Freud, agora o cinqüentão Bruno Bonomo
(Silvio Orlando) é simplesmente um falido. Seu casamento está desabando,
e ele tenta esconder dos filhos pequenos a separação; o banco declara
que vai executar sua dívida, e ele inventa desculpas e projetos
mirabolantes para fingir que o inevitável não vai acontecer; há dez anos
sem lançar um filme, ele perde sua última tábua de salvação quando um
diretor se recusa a rodar a história de Cristóvão Colombo com uma
caravela de brinquedo ("Mas ninguém vai perceber", ele argumenta,
aflito). Bruno parece ser, enfim, o típico protagonista tragicômico
italiano, e habita o que se anuncia ser uma típica sátira do diretor
Nanni Moretti.
É um alienado – ainda que doce e
digno de simpatia. Tão alienado que, quando tudo mais falha, ele se
agarra ao roteiro de uma estreante, sobre um bilionário empresário de
televisão que embarca numa carreira política com ambições inconfessáveis
e dinheiro de origem nebulosa – e não percebe que se está falando de
Silvio Berlusconi, primeiro-ministro italiano entre 1994 e 1995 e,
depois, de junho de 2001 a maio de 2006. É Berlusconi, aliás, o
personagem designado no título O Crocodilo (Il Caimano,
Itália/França, 2006). E é a partir do entendimento que Bruno Bonomo
ganha sobre o que está fazendo que o filme de Moretti, desde sexta-feira
em cartaz no Rio de Janeiro, tira sua força considerável.
Como diz o único financiador que
topa entrar no projeto – um polonês –, a Itália às vezes se comporta
como uma "Italieta" (no sentido de "republiqueta"), dividida entre o
folclore e o horror. Moretti, então, primeiro joga para o espectador a
isca do folclore, que abrange das trapalhadas do pobre Bruno aos
discursos bufos de Berlusconi no Parlamento europeu (em imagens de
noticiário, já que esse é um daqueles casos em que a ficção não tem como
superar a realidade). Todos os amigos de Bruno lhe dizem que não vêem
sentido em fazer um filme sobre Berlusconi, já que o país inteiro sabe
de seus enroscos. O que poderia haver de novo a acrescentar?
Muito, defende Moretti, que aí dá
rédeas à sua outra veia – a de arauto do desespero. Bruno deixa de soar
engraçado para se revelar uma figura trágica. A Itália começa a parecer
menos cínica para se mostrar presa (de novo) de um pacto fascista, não
mais na versão triunfalista de Benito Mussolini, mas na encarnação
brega, colorida e barulhenta proposta por Berlusconi. E, deste, Moretti
tira a máscara do ridículo, com que o primeiro-ministro camuflou seus
atos e intenções ruinosos.
O que se tem aqui é um homem sobre
quem pesam suspeitas de ter usado o governo para malversar, manipular,
aliciar e corromper, como se esses fossem os pilares de uma "nova ordem"
– e que, quando denunciado, subverteu o papel das urnas, transformando a
conquista de um novo mandato em absolvição. (Não, leitor, não se mudou
aqui de assunto por engano. O tópico ainda é a Itália...) Moretti fecha
seu filme com a encenação de um julgamento, no qual ele pessoalmente
indicia ambas as partes – o absolvido e os que o absolveram – e oferece
uma sentença: quem enxerga ridículo onde o que está em jogo é o trágico
e o sinistro tem de se preparar para o horror.
O que falar de novo sobre Silvio Berlusconi? A pergunta é repetida em "O
Crocodilo". "Todo mundo" sabe tudo a respeito de sua trajetória nos
negócios e na política. Mesmo assim, boa parte dos eleitores tem votado
nele e em seu partido. Problema número 1.
O segundo nome mais repetido no filme é o do ator Gian Maria Volontè
(1933-1994), ícone do cinema político italiano. Um personagem lembra que
"ele fez o Aldo Moro" ("O Caso Aldo Moro"), "aquele sujeito do petróleo"
("O Caso Mattei") e "Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer
Suspeita", e que "precisamos voltar a isso". Problema número 2.
Como resolver simultaneamente os dois problemas -falar de Berlusconi com
a antiga contundência dos filmes italianos- é o desafio que "O
Crocodilo" lança ao quase falido produtor de cinema Bruno Bonomo (Silvio
Orlando), que desenvolve projeto sobre o ex-primeiro-ministro. Não é um
bom momento para Bruno, que fez algum dinheiro com produções populares
(assistimos a um trecho da aventura "Cataratas", ouvimos falar de
"Maciste Versus Freud") e que procura retornar à ativa com o épico "O
Retorno de Colombo", a ser dirigido por um ancião (não por acaso,
interpretado por Giuliano Montaldo, o cineasta de "Sacco e Vanzetti" e
"Giordano Bruno").
Os credores estão no seu encalço. Além disso, Bruno está se separando da
mulher (Margherita Buy), antiga estrela de seus filmes, e se
distanciando dos filhos. No meio do vendaval, uma jovem curta-metragista
(Jasmine Trinca) lhe oferece o roteiro de um longa chamado "O
Crocodilo".
Alter ego
Na vereda aberta por filmes-dentro-de-filmes como "Contrastes
Humanos" (1942), de Preston Sturges, e "Oito e Meio" (1963), de Federico
Fellini, o dilema de Bruno se confunde com o do diretor e co-roteirista
Nanni Moretti -que evita, no entanto, o procedimento habitual de
projeção do "alter ego" no personagem. Os dois "Crocodilos" -o de Bruno
e o de Moretti- é que conversam, intensamente.
Há uma seqüência admirável, semelhante a uma cena-chave de "O Quarto do
Filho" (2001), o longa anterior de Moretti: enquanto um dos filhos de
Bruno se irrita porque não consegue encontrar a peça de Lego que falta
para completar seu brinquedo, o pai tem um ataque de nervos durante um
concerto. As coisas não se encaixam, sobretudo para Bruno, assim como
parece faltar algo para entender a Itália sob Berlusconi.
"A lei é igual para todos", diz o letreiro na parede de um tribunal,
"mas este cidadão é um pouco mais igual do que os outros", argumenta um
dos diversos Berlusconi de "O Crocodilo". Esse, o derradeiro, é também o
mais perturbador -o recurso de Moretti para evocar a contundência de
Volontè, Montaldo e a rapaziada dos anos 70.
O CROCODILO Direção: Nanni Moretti Produção: Itália/França, 2006 Com: Silvio Orlando, Jasmine Trinca Quando: em cartaz nos cines Morumbi, Espaço Unibanco e Bombril
Em entrevista ao jornal "Le Monde" em maio passado, pouco antes da
exibição de "O Crocodilo" no Festival de Cannes, Nanni Moretti disse que
"não tinha qualquer intenção" de dedicar todo o filme ao
ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi. Ele apontou o produtor
Bruno como o real protagonista.
"Mas é verdade que acho inacreditável que nenhum diretor italiano tenha
tentado fazer uma ficção sobre esse personagem."
O fato de Berlusconi ter se firmado na cena política italiana inspirou
no cineasta "profunda incredulidade". "Como se pode acreditar que, em
uma democracia, permita-se a uma pessoa comandar a maior parte da mídia
do país?" Em tom de galhofa, ele próprio respondeu: "É justamente porque
eles [os italianos] sabem quem ele é que votam nele". Moretti disse que
tinha como intuito surpreender o público e "conscientizá-lo da gravidade
das propostas e da ideologia de Berlusconi, que não causam mais
indignação na Itália".