Retornar ao índice ItaliaOggi

 

Notizie d'Italia

 

Entre o folclore e o horror

08/12/2006

Cena do filme O Crocodilo

Em O Crocodilo, Nanni Moretti faz um violento ataque ao ex-premiê Berlusconi – e à Itália que se deixou seduzir por ele

Isabela Boscov

Outrora produtor de filmes trash como Maciste contra Freud, agora o cinqüentão Bruno Bonomo (Silvio Orlando) é simplesmente um falido. Seu casamento está desabando, e ele tenta esconder dos filhos pequenos a separação; o banco declara que vai executar sua dívida, e ele inventa desculpas e projetos mirabolantes para fingir que o inevitável não vai acontecer; há dez anos sem lançar um filme, ele perde sua última tábua de salvação quando um diretor se recusa a rodar a história de Cristóvão Colombo com uma caravela de brinquedo ("Mas ninguém vai perceber", ele argumenta, aflito). Bruno parece ser, enfim, o típico protagonista tragicômico italiano, e habita o que se anuncia ser uma típica sátira do diretor Nanni Moretti.

É um alienado – ainda que doce e digno de simpatia. Tão alienado que, quando tudo mais falha, ele se agarra ao roteiro de uma estreante, sobre um bilionário empresário de televisão que embarca numa carreira política com ambições inconfessáveis e dinheiro de origem nebulosa – e não percebe que se está falando de Silvio Berlusconi, primeiro-ministro italiano entre 1994 e 1995 e, depois, de junho de 2001 a maio de 2006. É Berlusconi, aliás, o personagem designado no título O Crocodilo (Il Caimano, Itália/França, 2006). E é a partir do entendimento que Bruno Bonomo ganha sobre o que está fazendo que o filme de Moretti, desde sexta-feira em cartaz no Rio de Janeiro, tira sua força considerável.

Como diz o único financiador que topa entrar no projeto – um polonês –, a Itália às vezes se comporta como uma "Italieta" (no sentido de "republiqueta"), dividida entre o folclore e o horror. Moretti, então, primeiro joga para o espectador a isca do folclore, que abrange das trapalhadas do pobre Bruno aos discursos bufos de Berlusconi no Parlamento europeu (em imagens de noticiário, já que esse é um daqueles casos em que a ficção não tem como superar a realidade). Todos os amigos de Bruno lhe dizem que não vêem sentido em fazer um filme sobre Berlusconi, já que o país inteiro sabe de seus enroscos. O que poderia haver de novo a acrescentar?

Muito, defende Moretti, que aí dá rédeas à sua outra veia – a de arauto do desespero. Bruno deixa de soar engraçado para se revelar uma figura trágica. A Itália começa a parecer menos cínica para se mostrar presa (de novo) de um pacto fascista, não mais na versão triunfalista de Benito Mussolini, mas na encarnação brega, colorida e barulhenta proposta por Berlusconi. E, deste, Moretti tira a máscara do ridículo, com que o primeiro-ministro camuflou seus atos e intenções ruinosos.

O que se tem aqui é um homem sobre quem pesam suspeitas de ter usado o governo para malversar, manipular, aliciar e corromper, como se esses fossem os pilares de uma "nova ordem" – e que, quando denunciado, subverteu o papel das urnas, transformando a conquista de um novo mandato em absolvição. (Não, leitor, não se mudou aqui de assunto por engano. O tópico ainda é a Itália...) Moretti fecha seu filme com a encenação de um julgamento, no qual ele pessoalmente indicia ambas as partes – o absolvido e os que o absolveram – e oferece uma sentença: quem enxerga ridículo onde o que está em jogo é o trágico e o sinistro tem de se preparar para o horror.

(© Veja)


Crítica/"O Crocodilo"

Moretti evoca olhar político dos 70

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

O que falar de novo sobre Silvio Berlusconi? A pergunta é repetida em "O Crocodilo". "Todo mundo" sabe tudo a respeito de sua trajetória nos negócios e na política. Mesmo assim, boa parte dos eleitores tem votado nele e em seu partido. Problema número 1.

O segundo nome mais repetido no filme é o do ator Gian Maria Volontè (1933-1994), ícone do cinema político italiano. Um personagem lembra que "ele fez o Aldo Moro" ("O Caso Aldo Moro"), "aquele sujeito do petróleo" ("O Caso Mattei") e "Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita", e que "precisamos voltar a isso". Problema número 2.

Como resolver simultaneamente os dois problemas -falar de Berlusconi com a antiga contundência dos filmes italianos- é o desafio que "O Crocodilo" lança ao quase falido produtor de cinema Bruno Bonomo (Silvio Orlando), que desenvolve projeto sobre o ex-primeiro-ministro. Não é um bom momento para Bruno, que fez algum dinheiro com produções populares (assistimos a um trecho da aventura "Cataratas", ouvimos falar de "Maciste Versus Freud") e que procura retornar à ativa com o épico "O Retorno de Colombo", a ser dirigido por um ancião (não por acaso, interpretado por Giuliano Montaldo, o cineasta de "Sacco e Vanzetti" e "Giordano Bruno").

Os credores estão no seu encalço. Além disso, Bruno está se separando da mulher (Margherita Buy), antiga estrela de seus filmes, e se distanciando dos filhos. No meio do vendaval, uma jovem curta-metragista (Jasmine Trinca) lhe oferece o roteiro de um longa chamado "O Crocodilo".

Alter ego

Na vereda aberta por filmes-dentro-de-filmes como "Contrastes Humanos" (1942), de Preston Sturges, e "Oito e Meio" (1963), de Federico Fellini, o dilema de Bruno se confunde com o do diretor e co-roteirista Nanni Moretti -que evita, no entanto, o procedimento habitual de projeção do "alter ego" no personagem. Os dois "Crocodilos" -o de Bruno e o de Moretti- é que conversam, intensamente.

Há uma seqüência admirável, semelhante a uma cena-chave de "O Quarto do Filho" (2001), o longa anterior de Moretti: enquanto um dos filhos de Bruno se irrita porque não consegue encontrar a peça de Lego que falta para completar seu brinquedo, o pai tem um ataque de nervos durante um concerto. As coisas não se encaixam, sobretudo para Bruno, assim como parece faltar algo para entender a Itália sob Berlusconi.

"A lei é igual para todos", diz o letreiro na parede de um tribunal, "mas este cidadão é um pouco mais igual do que os outros", argumenta um dos diversos Berlusconi de "O Crocodilo". Esse, o derradeiro, é também o mais perturbador -o recurso de Moretti para evocar a contundência de Volontè, Montaldo e a rapaziada dos anos 70.

O CROCODILO     
Direção: Nanni Moretti
Produção: Itália/França, 2006
Com: Silvio Orlando, Jasmine Trinca
Quando: em cartaz nos cines Morumbi, Espaço Unibanco e Bombril

(© Folha de S. Paulo)


Para diretor, Berlusconi não é protagonista

DA REPORTAGEM LOCAL

Em entrevista ao jornal "Le Monde" em maio passado, pouco antes da exibição de "O Crocodilo" no Festival de Cannes, Nanni Moretti disse que "não tinha qualquer intenção" de dedicar todo o filme ao ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi. Ele apontou o produtor Bruno como o real protagonista.

"Mas é verdade que acho inacreditável que nenhum diretor italiano tenha tentado fazer uma ficção sobre esse personagem."

O fato de Berlusconi ter se firmado na cena política italiana inspirou no cineasta "profunda incredulidade". "Como se pode acreditar que, em uma democracia, permita-se a uma pessoa comandar a maior parte da mídia do país?" Em tom de galhofa, ele próprio respondeu: "É justamente porque eles [os italianos] sabem quem ele é que votam nele". Moretti disse que tinha como intuito surpreender o público e "conscientizá-lo da gravidade das propostas e da ideologia de Berlusconi, que não causam mais indignação na Itália".

(© Folha de S. Paulo)

 


VÍDEO:

Veja o trailer do filme:

Publicidade

Pesquise no Site ou Web

Google
Web ItaliaOggi

Notizie d'Italia | Gastronomia | Migrazioni | Cidadania | Home ItaliaOggi