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Feltrinelli, o aristocrata subversivo

03/12/2006

Giangiacomo Feltrinelli


Sai em português narrativa sobre a trajetória do editor que uniu sensibilidade literária, tino comercial e convicção ideológica

Paulo Roberto Pires

Com quanta ousadia se faz um grande editor? A resposta de Giangiacomo Feltrinelli certamente não caberia neste suplemento dominical. Mal cabe, aliás, nas 388 páginas da Feltrinelli - Editor, Aristocrata e Subversivo (Conrad, R$ 53) Personagem que parece saído de ficção, nasceu em 1926, como indica o título de sua biografia, num filme de Luchino Visconti, como herdeiro de uma das maiores fortunas da Itália no século passado. Morreu 46 anos depois como um trágico protagonista do cinema político de Marco Bellocchio, explodindo-se num atentado terrorista fracassado promovido pelos GAP (Gruppi di Azione Partigiana), dos quais foi membro e financiador. Entre o esplendor da aristocracia italiana e o soturno destino da luta armada, viveu como editor personagem que, como se sabe, não costuma dar filme ou romance. Mas que, neste caso, resultou num grande livro, que prende como romance, informa como reportagem e faz refletir como ensaio.

E uma das maiores qualidades desta biografia reside no que poderia ser seu maior defeito: o autor, Carlos Feltrinelli, é filho do protagonista. Hoje tem 44 anos e lidera o sólido império editorial que herdou; em 1972, quando a imprensa italiana abria manchetes para o destino trágico de um dos maiores editores do país, era um garoto e já se acostumara a ter notícias de Giangiacomo, caído na clandestinidade, através de bilhetes cifrados e encontros fugidios. É, portanto, uma discreta dor que pontua esta narrativa estranha, singularmente equilibrada quando relata os arroubos de genialidade e insanidade de uma personalidade que, definitivamente, não era para principiantes.

Para Feltrinelli, livro era a Revolução continuada por outros meios. Como o Joaquim Nabuco que, entre os escravos da família, descobre-se abolicionista, o filho do industrial Carlo Feltrinelli percebeu, na convivência com os empregados dos pais, que a condição de explorador e explorado não só não é destino como, teoricamente, pode ser modificada. Jovem e inflamado num país ressecado pela 2ª Guerra, passou à militância formal e ostensiva e, já aí, começou a transformar em papel sua esfuziante energia revolucionária, criando uma biblioteca que seria depositária, em livros e documentos, da história dos movimentos sociais de todo o mundo. Não bastava insurgir-se, pensava, era preciso identificar de onde vinha a revolta e que caminhos ela poderia apontar.

Entre 1949 e 1955, aprendeu tudo o que tinha de aprender do métier editando uma coleção de livros populares promovida por um jornal milanês. Desta experiência, partiu para vôo próprio. Iniciou a Feltrinelli com dois títulos: O Flagelo da Suástica, de Lord Russel de Liverpool, e a Autobiografia do líder político indiano Nehru. As escolhas não eram fortuitas: apontavam uma linha editorial precisa, a luta antifascista e a abertura do mundo para os países emergentes e as formas alternativas de luta política. Ao contrário do que poderia parecer, não incorria no erro fatal do jovem editor, o de confundir a estante de casa, formada única e exclusivamente por suas preferências, com o catálogo: as escolhas tinham eco no “ar do tempo” e, também, eram amparadas por sólido raciocínio comercial. Para aquela equipe pioneira da Feltrinelli, não havia chão firme: o patrão às vezes era “companheiro” e, muitas outras, o companheiro investia-se das prerrogativas de patrão.

Se já é raro unir tino comercial com convicção ideológica, imagine aliar a isso sensibilidade literária. Foi graças a esta mistura improvável que Feltrinelli decidiu publicar, contra a vontade dos dirigentes soviéticos - e, portanto, do partido a que pertencia - um certo Doutor Jivago. O mundo deve a ele este romance, cujos originais foram contrabandeados de Moscou por uma rede de amigos do Partido. Com Boris Pasternak manteve uma dupla correspondência: cartas em francês falavam da necessidade de publicar, urgentemente, o livro no Ocidente; outras, protocolares, davam aos censores que as leriam sinais de que era preciso obedecer ao Partido. Feltrinelli não apenas botou o livro no mundo como zelou para que seu autor recebesse por ele num país que abolira os direitos autorais.

Os dirigentes do Partido espumavam de ódio na mesma proporção em que o livro virava febre - nos três primeiros anos depois do lançamento, em 1957, o livro ultrapassava os 150 mil exemplares, enormidade num mundo que nem sonhava com best sellers globalizados como O Código Da Vinci ou Harry Potter. Muito aborrecimento ainda estava por vir para o Partido: o indisciplinado editor também decidiu, contra o bom senso “revolucionário”, publicar em 1958 o único livro de um autor recém-morto recusado pela tradicional editora Mondadori e desprezado por Elio Vittorini. Explica-se: o escritor neo-realista realmente veria pouca graça, por contrária a seu credo estético e ideológico, na meditação de um certo Tomasi de Lampedusa sobre os intestinos da aristocracia italiana. Anotem aí: também devemos O Leopardo a Giangiacomo.

Difícil, dificílima, essa a luta contra obscuridade num tempo em que, como anota ironicamente Carlo Feltrinelli, “os livros ainda eram livros”. Em 1962, imprimiu em italiano e estocou fora da Itália o Trópico de Câncer, de Henry Miller. Fez constar no livro uma advertência: “Edição exclusivamente destinada ao mercado externo”, tudo para burlar a pudicícia da censura. Sua própria equipe “contrabandeava” os livros para o país e cuidava para que fossem vendidos fora da cadeia de livrarias que também possuía. Um guarda de fronteira, ao ver o porta-malas de um carro abarrotado, viu ali mau agouro: “Quantos livros sobre câncer!”

O catálogo da Feltrinelli nos anos 1960 estava para a Itália como os que Jorge Zahar e Ênio Silveira montaram por aqui, na mesma época, na Zahar e na Civilização Brasileira: o melhor do pensamento político, do ensaio e da literatura, enfim, do que era necessário para informar, pensar a urgência do presente e, também, a permanência da reflexão. Idealismo, não esqueçamos, sempre acompanhado de eficiência comercial. Pois Feltrinelli também inovava na forma de vender livros: happennings nas livrarias e a venda, ao lado de sérios volumes, de gadgets - igualzinho se faz hoje no mundo todo.

Em 1964, mobiliza mais uma vez a convicção ideológica e o olho editorial: embarca para Cuba levando na mala US$ 25 mil de adiantamento (igualmente irrisórios para os padrões atuais) para um novo autor, Fidel Castro Ruiz, e, também, os originais do livro “prontos”. Como se tornaria praxe, a celebridade em questão ajeita aqui e ali, matiza e retoca originais preparados por ghost writers. Os dois se entendem maravilhosamente bem - há um foto, curiosíssima, em que jogam basquete juntos -, conversam animadamente em várias sessões, mas entre idas e vindas, o livro jamais fica pronto. Mais um volume para aquele catálogo de projetos abortados que todo editor mantém, às vezes nem tão secretamente.

Num texto citado generosamente por Carlo Feltrinelli, e que vale reproduzir aqui mais longamente, nosso personagem define-se com perfeição: “Mesmo desejando a fortuna econômica de minha editora, não posso deixar de lembrar que ela nasceu especialmente de uma miragem, de uma intenção (...) persigo uma ‘Fortuna’ no segundo sentido. (...) Um editor pode modificar o mundo? Dificilmente: um editor não pode nem mudar de editor. Pode modificar o mundo dos livros? Pode publicar alguns livros que farão parte do mundo dos livros e que o mudam com a própria presença. Essa afirmação pode parecer formal e não corresponde plenamente àquilo que penso: minha miragem, aquilo que considero o maior fator da tal ‘Fortuna’ que mencionei é o livro que mexe com as pessoas, o livro que salta no ar, o livro que ‘faz’ alguma coisa às pessoas que o lêem, o livro que tem o ‘ouvido receptivo’ e colhe e transmite mensagens talvez misteriosas, mas sacrossantas, o livro que na embrulhada da história cotidiana escuta a última nota, aquela que perdura depois que cessam os ruídos não-essenciais...”

Carlo Feltrinelli vive num mundo de livros mais próximo do descrito por André Schiffrin em O Negócio dos Livros, também lançado por aqui: grandes corporações multinacionais, concentração, pragmatismo acachapante, fenômenos globais de vendas e marketing. Nada disso trava as memórias que tem do pai, pois o aristocrata e subversivo não por um acaso entraria para a história como editor - e isso pela percepção que teve de sua atividade, desde sempre uma síntese improvável de sonho e realidade dura, utopia e pragmatismo. Bertolt Brecht, que não é citado no livro, escreveu sobre a necessidade de conciliar os contrários. Feltrinelli certamente o leu: “Duas almas moram no teu peito humano,/ nas entranhas tuas./ Evita o insano/ esforço da escolha:/ precisa das duas.” (Paulo Roberto Pires é gerente editorial da Ediouro/Agir)

(© Agência Estado)

 

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