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Giangiacomo Feltrinelli |
Sai em português
narrativa sobre a trajetória do editor que uniu
sensibilidade literária, tino comercial e convicção ideológica
Paulo Roberto
Pires
Com quanta ousadia se faz
um grande editor? A resposta de Giangiacomo Feltrinelli certamente não
caberia neste suplemento dominical. Mal cabe, aliás, nas 388 páginas da
Feltrinelli - Editor, Aristocrata e Subversivo (Conrad, R$ 53)
Personagem que parece saído de ficção, nasceu em 1926, como indica o
título de sua biografia, num filme de Luchino Visconti, como herdeiro de
uma das maiores fortunas da Itália no século passado. Morreu 46 anos
depois como um trágico protagonista do cinema político de Marco
Bellocchio, explodindo-se num atentado terrorista fracassado promovido
pelos GAP (Gruppi di Azione Partigiana), dos quais foi membro e
financiador. Entre o esplendor da aristocracia italiana e o soturno
destino da luta armada, viveu como editor personagem que, como se sabe,
não costuma dar filme ou romance. Mas que, neste caso, resultou num
grande livro, que prende como romance, informa como reportagem e faz
refletir como ensaio.
E uma das maiores qualidades desta biografia reside no que poderia ser
seu maior defeito: o autor, Carlos Feltrinelli, é filho do protagonista.
Hoje tem 44 anos e lidera o sólido império editorial que herdou; em
1972, quando a imprensa italiana abria manchetes para o destino trágico
de um dos maiores editores do país, era um garoto e já se acostumara a
ter notícias de Giangiacomo, caído na clandestinidade, através de
bilhetes cifrados e encontros fugidios. É, portanto, uma discreta dor
que pontua esta narrativa estranha, singularmente equilibrada quando
relata os arroubos de genialidade e insanidade de uma personalidade que,
definitivamente, não era para principiantes.
Para Feltrinelli, livro era a Revolução continuada por outros meios.
Como o Joaquim Nabuco que, entre os escravos da família, descobre-se
abolicionista, o filho do industrial Carlo Feltrinelli percebeu, na
convivência com os empregados dos pais, que a condição de explorador e
explorado não só não é destino como, teoricamente, pode ser modificada.
Jovem e inflamado num país ressecado pela 2ª Guerra, passou à militância
formal e ostensiva e, já aí, começou a transformar em papel sua
esfuziante energia revolucionária, criando uma biblioteca que seria
depositária, em livros e documentos, da história dos movimentos sociais
de todo o mundo. Não bastava insurgir-se, pensava, era preciso
identificar de onde vinha a revolta e que caminhos ela poderia apontar.
Entre 1949 e 1955, aprendeu tudo o que tinha de aprender do métier
editando uma coleção de livros populares promovida por um jornal
milanês. Desta experiência, partiu para vôo próprio. Iniciou a
Feltrinelli com dois títulos: O Flagelo da Suástica, de Lord Russel de
Liverpool, e a Autobiografia do líder político indiano Nehru. As
escolhas não eram fortuitas: apontavam uma linha editorial precisa, a
luta antifascista e a abertura do mundo para os países emergentes e as
formas alternativas de luta política. Ao contrário do que poderia
parecer, não incorria no erro fatal do jovem editor, o de confundir a
estante de casa, formada única e exclusivamente por suas preferências,
com o catálogo: as escolhas tinham eco no “ar do tempo” e, também, eram
amparadas por sólido raciocínio comercial. Para aquela equipe pioneira
da Feltrinelli, não havia chão firme: o patrão às vezes era
“companheiro” e, muitas outras, o companheiro investia-se das
prerrogativas de patrão.
Se já é raro unir tino comercial com convicção ideológica, imagine aliar
a isso sensibilidade literária. Foi graças a esta mistura improvável que
Feltrinelli decidiu publicar, contra a vontade dos dirigentes soviéticos
- e, portanto, do partido a que pertencia - um certo Doutor Jivago. O
mundo deve a ele este romance, cujos originais foram contrabandeados de
Moscou por uma rede de amigos do Partido. Com Boris Pasternak manteve
uma dupla correspondência: cartas em francês falavam da necessidade de
publicar, urgentemente, o livro no Ocidente; outras, protocolares, davam
aos censores que as leriam sinais de que era preciso obedecer ao
Partido. Feltrinelli não apenas botou o livro no mundo como zelou para
que seu autor recebesse por ele num país que abolira os direitos
autorais.
Os dirigentes do Partido espumavam de ódio na mesma proporção em que o
livro virava febre - nos três primeiros anos depois do lançamento, em
1957, o livro ultrapassava os 150 mil exemplares, enormidade num mundo
que nem sonhava com best sellers globalizados como O Código Da Vinci ou
Harry Potter. Muito aborrecimento ainda estava por vir para o Partido: o
indisciplinado editor também decidiu, contra o bom senso
“revolucionário”, publicar em 1958 o único livro de um autor recém-morto
recusado pela tradicional editora Mondadori e desprezado por Elio
Vittorini. Explica-se: o escritor neo-realista realmente veria pouca
graça, por contrária a seu credo estético e ideológico, na meditação de
um certo Tomasi de Lampedusa sobre os intestinos da aristocracia
italiana. Anotem aí: também devemos O Leopardo a Giangiacomo.
Difícil, dificílima, essa a luta contra obscuridade num tempo em que,
como anota ironicamente Carlo Feltrinelli, “os livros ainda eram
livros”. Em 1962, imprimiu em italiano e estocou fora da Itália o
Trópico de Câncer, de Henry Miller. Fez constar no livro uma
advertência: “Edição exclusivamente destinada ao mercado externo”, tudo
para burlar a pudicícia da censura. Sua própria equipe “contrabandeava”
os livros para o país e cuidava para que fossem vendidos fora da cadeia
de livrarias que também possuía. Um guarda de fronteira, ao ver o
porta-malas de um carro abarrotado, viu ali mau agouro: “Quantos livros
sobre câncer!”
O catálogo da Feltrinelli nos anos 1960 estava para a Itália como os que
Jorge Zahar e Ênio Silveira montaram por aqui, na mesma época, na Zahar
e na Civilização Brasileira: o melhor do pensamento político, do ensaio
e da literatura, enfim, do que era necessário para informar, pensar a
urgência do presente e, também, a permanência da reflexão. Idealismo,
não esqueçamos, sempre acompanhado de eficiência comercial. Pois
Feltrinelli também inovava na forma de vender livros: happennings nas
livrarias e a venda, ao lado de sérios volumes, de gadgets - igualzinho
se faz hoje no mundo todo.
Em 1964, mobiliza mais uma vez a convicção ideológica e o olho
editorial: embarca para Cuba levando na mala US$ 25 mil de adiantamento
(igualmente irrisórios para os padrões atuais) para um novo autor, Fidel
Castro Ruiz, e, também, os originais do livro “prontos”. Como se
tornaria praxe, a celebridade em questão ajeita aqui e ali, matiza e
retoca originais preparados por ghost writers. Os dois se entendem
maravilhosamente bem - há um foto, curiosíssima, em que jogam basquete
juntos -, conversam animadamente em várias sessões, mas entre idas e
vindas, o livro jamais fica pronto. Mais um volume para aquele catálogo
de projetos abortados que todo editor mantém, às vezes nem tão
secretamente.
Num texto citado generosamente por Carlo Feltrinelli, e que vale
reproduzir aqui mais longamente, nosso personagem define-se com
perfeição: “Mesmo desejando a fortuna econômica de minha editora, não
posso deixar de lembrar que ela nasceu especialmente de uma miragem, de
uma intenção (...) persigo uma ‘Fortuna’ no segundo sentido. (...) Um
editor pode modificar o mundo? Dificilmente: um editor não pode nem
mudar de editor. Pode modificar o mundo dos livros? Pode publicar alguns
livros que farão parte do mundo dos livros e que o mudam com a própria
presença. Essa afirmação pode parecer formal e não corresponde
plenamente àquilo que penso: minha miragem, aquilo que considero o maior
fator da tal ‘Fortuna’ que mencionei é o livro que mexe com as pessoas,
o livro que salta no ar, o livro que ‘faz’ alguma coisa às pessoas que o
lêem, o livro que tem o ‘ouvido receptivo’ e colhe e transmite mensagens
talvez misteriosas, mas sacrossantas, o livro que na embrulhada da
história cotidiana escuta a última nota, aquela que perdura depois que
cessam os ruídos não-essenciais...”
Carlo Feltrinelli vive num mundo de livros mais próximo do descrito por
André Schiffrin em O Negócio dos Livros, também lançado por aqui:
grandes corporações multinacionais, concentração, pragmatismo
acachapante, fenômenos globais de vendas e marketing. Nada disso trava
as memórias que tem do pai, pois o aristocrata e subversivo não por um
acaso entraria para a história como editor - e isso pela percepção que
teve de sua atividade, desde sempre uma síntese improvável de sonho e
realidade dura, utopia e pragmatismo. Bertolt Brecht, que não é citado
no livro, escreveu sobre a necessidade de conciliar os contrários.
Feltrinelli certamente o leu: “Duas almas moram no teu peito humano,/
nas entranhas tuas./ Evita o insano/ esforço da escolha:/ precisa das
duas.” (Paulo Roberto
Pires é gerente editorial da Ediouro/Agir)
(©
Agência Estado)
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