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"Teatro é refúgio para o humano", diz Eugenio Barba

09/11/2006

O diretor italiano Eugenio Barba

Diretor esteve no Rio para participar de evento de imersão no trabalho do Odin Teatret, companhia que criou há 42 anos

A antropologia teatral, conceito disseminado por Barba, influenciou grupos brasileiros; companhia está em festival até o fim do mês


VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

O teatro carioca está em estado de graça, e não só pelas comédias. Durante quatro semanas, até 28/11, público e artistas têm chance de dialogar concretamente (até para desmitificá-lo, por que não?) com um dos mais antigos grupos em atividade na Europa, o Odin Teatret, nascido há 42 anos na Noruega, radicado dois anos depois na Dinamarca e desde sempre dirigido pelo italiano Eugenio Barba.

Esse ziguezague por nacionalidades expõe os vetores artísticos, culturais e políticos de Barba, 70, disseminador do conceito de "antropologia teatral", que define como o estudo do comportamento biológico e sociocultural do homem em registro de representação.

As técnicas que Barba e equipe conceberam para o treinamento de ator têm forte acolhida em países latino-americanos. No Brasil, as pontes mais emblemáticas são o Festival de Teatro de Londrina e o grupo Lume. Foi o co-fundador daquele grupo de Campinas, 21 anos atrás, Luis Otávio Burnier (1956-95), quem trouxe o diretor pela primeira vez ao Brasil, há quase duas décadas.

A seguir, trechos da entrevista com Barba, que foi embora ontem, deixando seus artistas no Festival Odin Teatret (cinco espetáculos, demonstrações, exibição de vídeos e workshop), uma iniciativa do CCBB-RJ.

FOLHA - Por que a antropologia teatral repercute mais na América Latina?
EUGENIO BARBA -
Na Europa, existe uma forte tradição clássica de teatro. Todos sabem o que é, o ator deve se formar nas velhas escolas. Na América Latina, não. Nos anos 70, por exemplo, surgiu todo um teatro que não tinha modelo, a não ser aquele comercial. A maioria dos artistas era experimental. Eles lutavam em níveis sociais e culturais sob influências de gerações anteriores, como as de Stanislavski, Brecht, Artaud e Grotowski. Souberam formular as aspirações de como tratar em nível individual uma arte que já estava estruturada de certa maneira na sociedade, de modo a subverter sua recepção.

FOLHA - Como a comunidade de Holstebro recebeu o grupo em 1966? [Antes, ele informa que foi naquela bucólica cidade da Dinamarca que o cineasta Carl Theodor Dreyer rodou "A Palavra", de 1954]
BARBA -
No início a comunidade nos rejeitou. Os camponeses até tinham ficado satisfeitos com a notícia de nossa chegada, em 1966. Mas depois se frustraram porque a gente não fazia teatro toda noite. A televisão local fez um reportagem mostrando nosso treinamento de voz, de corpo, e essa noção de teatro laboratório foi um choque para os camponeses. Vieram reações violentas. Os cidadãos fizeram uma assembléia, a única de que tenho notícias nesses 40 anos. Foi um encontro difícil, mas o prefeito convenceu a maioria a esperar por mais três anos para ver o resultado. Estamos lá até hoje.

FOLHA - Em seus escritos, o sr. lembra, citando o mímico francês Étienne Decroux (1898-1991), que o teatro não precisa de ter leis, mas seus artistas devem encontrar as suas...
BARBA -
Mais que leis, eu diria que são constatações óbvias, mas esquecidas por aqueles que pensam somente em termos de categorias da arte. O teatro é uma estranha convenção. As pessoas vêm para ver outras pessoas. Agora, o único animal que é capaz de ser observado por outro é o ser humano. Se uma vaca for observada por 500 pessoas, ela não reage, não liga. Mas, se você está comendo num restaurante e alguém da mesa vizinha começa a olhar, você se pergunta por quê. É da natureza humana reagir à mirada do outro. O teatro é isso: um humano sendo observado por outro. O desafio é transformar esse momento de embaraço em algo que também embarace quem olha.

FOLHA - Qual o futuro dessa arte?
BARBA -
Cada vez mais o teatro vai se constituir num refúgio. Um lugar e ao mesmo tempo uma prática em que o animal humano, que é social, pode refugiar-se para encontrar o outro. Um espaço para adoção de intimidade e, ao mesmo tempo, de separação. Um espaço em que se possa refletir sobre as tragédias da aldeia ou das que ameaçam a humanidade.

(© Folha de S. Paulo)


Livro relata aprendizado na Polônia

DA REPORTAGEM LOCAL

Em sua formação autodidata, Eugenio Barba qualifica como decisivos os três anos que conviveu diretamente com o polonês Jerzy Grotowski (1933-99), então à frente do grupo Teatro 13 Rzedów na cidade polonesa de Opole, entre 1962 e 1964.

A amizade entre o autor de "Em Busca de um Teatro Pobre" (1968) e do conceito-chave de teatro-laboratório (em que se pesquisa sem necessariamente trazer o resultado a público) e o co-fundador do Odin Teatret está retratada no livro "A Terra de Cinzas e Diamantes - Minha Aprendizagem na Polônia" (1998), que acaba de sair pela coleção Estudos, da editora Perspectiva.

Na primeira parte, Barba discorre sobre a mudança da Itália para a Polônia, onde foi estudar direção naqueles anos que se revelaram cruciais para o teatro. Fora atraído para a Polônia socialista pelo filme "Cinzas e Diamantes", de Andrzej Wajda, a que assistira em 1959.

"Foi um soco no estômago", escreve o autor. "Na tela, passavam as imagens de uma guerra civil, de uma paixão desesperada, do sentido da honra e do desprezo pela vida, de uma ternura pela loucura e pela fraqueza dos seres humanos humanos triturados pela ferocidade da história."

Barba traz à luz a história subterrânea dos artistas de teatro daquela época na mesma medida em que revê o seu próprio estreitamento com essa arte. Na segunda parte, o livro exibe 26 correspondências de Grotowski para Barba. (VS)

A TERRA DE CINZAS E DIAMANTES
Autor:
Eugenio Barba
Tradução: Patrícia Furtado de Mendonça
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 43 (201 págs.)

(© Folha de S. Paulo)

Saiba mais sobre o teatrólogo Eugenio Barba

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