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Itália fisga o Brasil pelo estômago

09/11/2006

O ator baiano João Miguel, protagonista de Estômago

Filme do paranaense Marcos Jorge sobre gastronomia marca iniciativa inédita de co-produção entre os dois países

Flávia Guerra

No presídio do Ahú, em Curitiba, o diretor Marcos Jorge roda uma cena crucial de seu novo longa-metragem, cujas filmagens terminaram anteontem. A cena, agitada, exige concentração extra da equipe, pois envolve objetos que têm de ser retirados rapidamente de cena, um plano-seqüência que percorre toda a cozinha da prisão, desativada há poucos meses e que ainda funciona como local de triagem. Não se trata de nenhuma rebelião. No lugar de armas, comida e bebida. As únicas facas usadas são para cortar um leitão assado. Aliás, a troca de objetos envolve um ‘leitão cenográfico’, que entra em quadro inteiro e sai, já um leitão real, esfacelado. Não por acaso, Estômago é o nome deste que é o segundo longa que Jorge dirige em menos de um ano (no início do ano, filmou seu primeiro, e ainda inédito longa, Corpos Celestes).

Apesar de boa parte da história se passar em um presídio, o longa não é um filme-denúncia. “É sobre quem é preso, mas pelo estômago. Fala da relação humana com a comida”, diz o diretor, que sempre foi fascinado pelo tema. Estômago dessacraliza a gastronomia ao levá-la para os subterrâneos da cadeia alimentar. O filme conta a história de Raimundo Nonato (João Miguel, de Cinema, Aspirinas e Urubus), um retirante nordestino que deixa sua terra natal, o Piauí, para tentar a vida no já desbotado ‘sul maravilha’. No meio do caminho de Nonato, tinha um restaurante italiano, onde ele conhece Giovanni (Carlo Briani), que ensina a ele os segredos da culinária milenar. No meio do caminho também tinha um crime, que ele comete e o leva para a cadeia. Na cadeia tem uma cozinha, onde Nonato passa a exercer seu dom e ganha poder.

Mais que no roteiro, a Itália tem lugar de honra em Estômago. Em uma iniciativa inédita, a produção do filme marca finalmente a utilização de um acordo de co-produção Brasil-Itália que existe desde 1974, mas que nunca havia sido utilizado. “Ninguém sabia como usar. Tivemos de abrir precedentes, literalmente inventar documentação para colocar o projeto em prática”, conta a produtora-executiva Cláudia da Natividade, que levou um ano para elaborar e formalizar o contrato entre a brasileira Zencrane Filmes e a italiana Indiana Filmes.

A co-produção inédita de Estômago sinaliza um caminho cada vez mais perseguido por cineastas brasileiros, que buscam alternativas tanto de produção quanto de exibição, distribuição e vendas além do mercado nacional. Em um ano em que a chamada ocupação do cinema brasileiro nas telas é apontada como insatisfatória, não deixa de ser irônico e, ao mesmo tempo natural, que o cinema nacional vá buscar no exterior o público que não encontra no próprio país, já devidamente ocupado em grande parte pelo cinema americano. “Não dá para contar só com o público do Brasil. Para Estômago, a distribuição no Brasil fica por nossa conta. Na Europa, os italianos cuidam. Isso aumenta nossas chances, pois eles já têm o caminho das pedras. A Indiana vai brigar pelo filme em festivais e no mercado exibidor”, comenta Jorge, que estudou cinema e trabalhou por 12 anos na Itália.

Ainda no quesito produção, a parceria deu a Estômago a chance de passar de um projeto de Baixo Orçamento (foi vencedor do edital de B.Os. do Ministério da Cultura) para um filme de porte médio. “Se fosse só brasileiro, teríamos apenas R$ 1 milhão para fazê-lo, pois depois de ganhar o edital não se pode buscar outras fontes de incentivo federal. Seríamos obrigados a gastar tudo nas filmagens e corríamos o risco de nunca finalizar o filme”, explica a produtora-executiva. “Podíamos também tentar buscar verba de incentivo estadual ou municipal. Mas no Paraná isso seria quase impossível, pois o governo do Estado está começando a investir no cinema e não tem política para finalização. Lei municipal seria impossível. Com a entrada de um produtor europeu, o valor dobrou. Nós bancamos a primeira parte e os italianos se encarregarão do restante, investindo cerca de 300 mil euros na montagem e na pós-produção”, conta Cláudia, feliz por conseguir “um parceiro de verdade” e não precisar contar com a “ajudinha” que os fundos internacionais costumam destinar a filmes produzidos pelo terceiro mundo. “Foi algo que sempre evitamos. Há grandes fundos na Europa, como o Huberts Bals Fund, da Holanda, e o FundSud francês, mas eles colocam quantias mínimas e ganham um destaque imenso na publicidade.”

Mais que ser apenas uma ajuda de custo, a parceria entre a Zencrane e a Indiana divide igualitariamente os investimentos e também os lucros. “Somos responsáveis pelo lançamento no Brasil, onde temos 70% e eles, 30%. Na Itália, o esquema é o inverso. Nos outros países, a distribuição continua sendo feita pela Indiana, mas a renda fica a 50% para cada produtor”, esclarece Cláudia, que enfatiza a diferença entre o projeto de Estômago e filmes que recebem a ajuda dos fundos internacionais. “Além do valor quase nunca passar de 100 mil euros, esses órgãos sempre têm o discurso ‘vejam como estamos ajudando os menos favorecidos’. E sempre interferem muito no roteiro. Há uma patrulha ideológica mesmo”, declara Cláudia, que também morou na Itália, onde, assim como Jorge, fez os contatos que levaram a esta parceria.

No caso de Estômago, cuja história é inspirada no conto Presos pelo Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, de Lusa Silvestre, também houve intervenção no roteiro. “Mas o Fabrizio (Donvito, produtor italiano) ‘italianizou’ a história, tornando o filme mais internacional sem perder a brasilidade”, explica Jorge, que contou também com italianos na equipe. “A técnica de som direto é a italiana, por exemplo. A trilha ficará a cargo da CAM, uma das maiores produtoras musicais da Itália”, conta Cláudia. “Estômago pode não virar sucesso, mas só o fato de termos produzido, já é milagre. Agora é partir para a segunda etapa”, aposta Jorge.

(© Agência Estado)

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