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O
ator baiano João Miguel, protagonista de
Estômago |
Filme do paranaense Marcos Jorge sobre
gastronomia marca iniciativa inédita de co-produção entre os dois países
Flávia Guerra
No presídio do Ahú, em
Curitiba, o diretor Marcos Jorge roda uma cena crucial de seu novo
longa-metragem, cujas filmagens terminaram anteontem. A cena, agitada,
exige concentração extra da equipe, pois envolve objetos que têm de ser
retirados rapidamente de cena, um plano-seqüência que percorre toda a
cozinha da prisão, desativada há poucos meses e que ainda funciona como
local de triagem. Não se trata de nenhuma rebelião. No lugar de armas,
comida e bebida. As únicas facas usadas são para cortar um leitão
assado. Aliás, a troca de objetos envolve um ‘leitão cenográfico’, que
entra em quadro inteiro e sai, já um leitão real, esfacelado. Não por
acaso, Estômago é o nome deste que é o segundo longa que Jorge dirige em
menos de um ano (no início do ano, filmou seu primeiro, e ainda inédito
longa, Corpos Celestes).
Apesar de boa parte da história se passar em um presídio, o longa não é
um filme-denúncia. “É sobre quem é preso, mas pelo estômago. Fala da
relação humana com a comida”, diz o diretor, que sempre foi fascinado
pelo tema. Estômago dessacraliza a gastronomia ao levá-la para os
subterrâneos da cadeia alimentar. O filme conta a história de Raimundo
Nonato (João Miguel, de Cinema, Aspirinas e Urubus), um retirante
nordestino que deixa sua terra natal, o Piauí, para tentar a vida no já
desbotado ‘sul maravilha’. No meio do caminho de Nonato, tinha um
restaurante italiano, onde ele conhece Giovanni (Carlo Briani), que
ensina a ele os segredos da culinária milenar. No meio do caminho também
tinha um crime, que ele comete e o leva para a cadeia. Na cadeia tem uma
cozinha, onde Nonato passa a exercer seu dom e ganha poder.
Mais que no roteiro, a Itália tem lugar de honra em Estômago. Em uma
iniciativa inédita, a produção do filme marca finalmente a utilização de
um acordo de co-produção Brasil-Itália que existe desde 1974, mas que
nunca havia sido utilizado. “Ninguém sabia como usar. Tivemos de abrir
precedentes, literalmente inventar documentação para colocar o projeto
em prática”, conta a produtora-executiva Cláudia da Natividade, que
levou um ano para elaborar e formalizar o contrato entre a brasileira
Zencrane Filmes e a italiana Indiana Filmes.
A co-produção inédita de Estômago sinaliza um caminho cada vez mais
perseguido por cineastas brasileiros, que buscam alternativas tanto de
produção quanto de exibição, distribuição e vendas além do mercado
nacional. Em um ano em que a chamada ocupação do cinema brasileiro nas
telas é apontada como insatisfatória, não deixa de ser irônico e, ao
mesmo tempo natural, que o cinema nacional vá buscar no exterior o
público que não encontra no próprio país, já devidamente ocupado em
grande parte pelo cinema americano. “Não dá para contar só com o público
do Brasil. Para Estômago, a distribuição no Brasil fica por nossa conta.
Na Europa, os italianos cuidam. Isso aumenta nossas chances, pois eles
já têm o caminho das pedras. A Indiana vai brigar pelo filme em
festivais e no mercado exibidor”, comenta Jorge, que estudou cinema e
trabalhou por 12 anos na Itália.
Ainda no quesito produção, a parceria deu a Estômago a chance de passar
de um projeto de Baixo Orçamento (foi vencedor do edital de B.Os. do
Ministério da Cultura) para um filme de porte médio. “Se fosse só
brasileiro, teríamos apenas R$ 1 milhão para fazê-lo, pois depois de
ganhar o edital não se pode buscar outras fontes de incentivo federal.
Seríamos obrigados a gastar tudo nas filmagens e corríamos o risco de
nunca finalizar o filme”, explica a produtora-executiva. “Podíamos
também tentar buscar verba de incentivo estadual ou municipal. Mas no
Paraná isso seria quase impossível, pois o governo do Estado está
começando a investir no cinema e não tem política para finalização. Lei
municipal seria impossível. Com a entrada de um produtor europeu, o
valor dobrou. Nós bancamos a primeira parte e os italianos se
encarregarão do restante, investindo cerca de 300 mil euros na montagem
e na pós-produção”, conta Cláudia, feliz por conseguir “um parceiro de
verdade” e não precisar contar com a “ajudinha” que os fundos
internacionais costumam destinar a filmes produzidos pelo terceiro
mundo. “Foi algo que sempre evitamos. Há grandes fundos na Europa, como
o Huberts Bals Fund, da Holanda, e o FundSud francês, mas eles colocam
quantias mínimas e ganham um destaque imenso na publicidade.”
Mais que ser apenas uma ajuda de custo, a parceria entre a Zencrane e a
Indiana divide igualitariamente os investimentos e também os lucros.
“Somos responsáveis pelo lançamento no Brasil, onde temos 70% e eles,
30%. Na Itália, o esquema é o inverso. Nos outros países, a distribuição
continua sendo feita pela Indiana, mas a renda fica a 50% para cada
produtor”, esclarece Cláudia, que enfatiza a diferença entre o projeto
de Estômago e filmes que recebem a ajuda dos fundos internacionais.
“Além do valor quase nunca passar de 100 mil euros, esses órgãos sempre
têm o discurso ‘vejam como estamos ajudando os menos favorecidos’. E
sempre interferem muito no roteiro. Há uma patrulha ideológica mesmo”,
declara Cláudia, que também morou na Itália, onde, assim como Jorge, fez
os contatos que levaram a esta parceria.
No caso de Estômago, cuja história é inspirada no conto Presos pelo
Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, de Lusa Silvestre,
também houve intervenção no roteiro. “Mas o Fabrizio (Donvito, produtor
italiano) ‘italianizou’ a história, tornando o filme mais internacional
sem perder a brasilidade”, explica Jorge, que contou também com
italianos na equipe. “A técnica de som direto é a italiana, por exemplo.
A trilha ficará a cargo da CAM, uma das maiores produtoras musicais da
Itália”, conta Cláudia. “Estômago pode não virar sucesso, mas só o fato
de termos produzido, já é milagre. Agora é partir para a segunda etapa”,
aposta Jorge.
(©
Agência Estado) |