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O marco zero do ousado Bertolucci

07/11/2006

Raimundo Valentim/AE

O cineasta italiano Bernardo Bertolucci

Sai em DVD o primeiro longa do diretor, La Commare Secca, argumento de Pasolini sobre a morte de uma prostituta

Antonio Gonçalves Filho

Ao atingir a maioridade, o cineasta italiano Bernardo Bertolucci ganhou a chance de dirigir seu primeiro longa-metragem com roteiro do mentor Pier Paolo Pasolini (1922-1975), amigo de seu pai, o grande poeta Atillio Bertolucci (1911-2000). A Morte (La Commare Secca,1962), que está sendo lançado pela Versátil Home Vídeo, é uma estréia desconcertante. Bertolucci, assistente de direção de Pasolini em Desajuste Social (Accatone, 1961), também lançado no Brasil pela Versátil, aproveitou bem essa experiência e retratou o submundo romano segundo o espírito pasoliniano, embora com um discurso surpreendentemente maduro para um garoto de 21 anos.

O argumento original de Pasolini elege a história da investigação do assassinato de uma prostituta num parque romano. Os suspeitos são cinco párias presentes na noite do crime: um cafetão, dois garotos prontos a extorquir dinheiro de um homossexual, um pequeno ladrão que surpreende casais em pleno ato sexual e um soldado sulista e provinciano flanando pela cidade grande. Desnecessário dizer que nenhum deles assume ter visto o crime, embora sejam todos potenciais criminosos. Essa é justamente a tese de Pasolini: não existem inocentes numa cidade que empurra seus deserdados para as margens. No centro, um corpo sem vida. Na periferia, apenas almas mortas.

O fascínio que exerciam sobre Pasolini os “ragazzi di vita”, ou seja, os vadios de Roma, não é dividido por Bertolucci, a despeito de sua compaixão pelos desajustados. Bertolucci, filho pródigo de grandes proprietários de terra na província, aponta o dedo para esses cinco suspeitos e não livra nenhum da culpa. Mesmo que o rufião Bustelli (Alfredo Leggi) não tenha cometido o crime, é um perverso delinqüente que explora miseráveis locatários de sua amante mais velha, igualmente usada. Vagabundo por vocação, Bustelli não difere muito do larápio que rouba casais ou dos dois meninos que seguem o homossexual atrás de dinheiro. O pequeno ladrão de Bertolucci, aliás, é parente não muito distante do marginal de Mamma Roma, que Pasolini rodava simultaneamente ao filme de seu pupilo.

Bertolucci, um cinéfilo desde os 15 anos, certamente conhecia o projeto do mestre, embora insista em afirmar até hoje que ignorava o clássico filme de Kurosawa, Rashomon (1950), ao iniciar as filmagens de La Commare Secca. Sua obra de estréia guarda impressionante semelhança com o filme japonês, sobre um estupro e um assassinato relatados segundo quatro diferentes pontos de vista. Não que isso diminua a importância e o impacto de La Commare Secca. Ao contrário. Uma comparação entre os dois explica como o Oriente se distancia do Ocidente em questões éticas. Se Kurosawa fala de uma verdade subjetiva impossível de virar objetiva, Bertolucci, ainda marcado pelo ímpeto juvenil, deixa-se seduzir ocasionalmente pelo cinismo de seus jovens marginais e sucumbe a uma solução legal provisória, ao localizar o autor do crime.

Evidentemente, trata-se de uma solução fácil, uma concessão, talvez sugerida pelo produtor Antonio Cervi, que teria preferido Pasolini na direção. Isso não compromete o resultado final de La Commare Secca, econômico na compacta montagem de Nino Baragli e na interpretação neo-realista de atores anônimos. Bem diferente do filme seguinte de Bertolucci, A Estratégia da Aranha - este mais próximo de uma alegoria política godardiana (ou glaube-rochiana)-, seu primeiro filme anuncia um esteta que valoriza cenas intimistas, aparentemente fora do contexto da história. A dança entre as duas adolescentes ante a recusa dos tímidos pretendentes é apenas um exemplo, repetido anos mais tarde numa seqüência antológica de O Conformista, em que Stefania Sandrelli dança com a bela Dominique Sanda.

Muitos anos antes de a Itália se curvar ao ideal da comunidade européia e ficar com vergonha de seus dialetos, abraçando um cosmopolitismo falso, Bertolucci já falava desses acanhados e inocentes provincianos, jovens moldados pela cultura de seus pais, aparentemente impermeáveis a modismos alienígenas. Eles parecem imunes a ideologias, mas, em verdade, são as primeiras vítimas da opressão econômica que se rendem a forças políticas reacionárias como o fascismo, quando obrigados a resistir às tensões do sistema.

O testemunho verbal dos suspeitos, repleto de mentiras, contrapõe-se ao flashback em que Bertolucci refaz o itinerário verdadeiro dos cinco investigados . Sua câmera passeia pelo escuro parque romano como se seguisse os passos de mortos sociais condenados ao Hades. Logo no prólogo, o corpo da prostituta assassinada (Wanda Rocci) justifica os sonetos blasfemos e obscenos escritos em dialeto romano por Giuseppe Giocchino Belli, poeta do século 19. Parece um corpo destituído de alma, como se a alienação do físico da prostituta acontecesse também numa dimensão espiritual.

Até o título original, La Commare Secca, diz respeito a essa personificação da morte como uma entidade viva de fundamental influência sobre a evolução humana. Se a Morte é uma figura simbólica no clássico filme de Bergman, O Sétimo Selo, jogando com um cavaleiro já condenado antes do primeiro lance, ela assume, no filme de Bertolucci, o papel de guardiã das chaves do inferno, como no clássico poema de Milton, O Paraíso Perdido. Ela não é a libertadora, mas o espectro que ronda a periferia romana. É ela que prevalece na imagem final da ‘comare secca’ gravada para sempre na pedra, lembrando que a figura imaginada na Idade Média como representação da morte (um esqueleto com robe) pode ser mais assustadora que o anjo caído criado pelo Senhor no primeiro dia.

Bertolucci já realizou outros 22 filmes desde La Commare Secca. Conheceu o sucesso com O Último Tango em Paris (1972), ganhou nove Oscars com O Último Imperador (1987) e tentou voltar à velha forma com Os Sonhadores (1983), seu balanço da geração 68. Mas jamais teve tanta liberdade como em La Commare Secca. É outro bom motivo para revisitar seu marco zero.

(© Agência Estado)

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