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Raimundo Valentim/AE
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O cineasta
italiano Bernardo Bertolucci |
Sai em DVD o primeiro longa do diretor, La
Commare Secca, argumento de Pasolini sobre a morte de uma prostituta
Antonio
Gonçalves Filho
Ao atingir a maioridade, o
cineasta italiano Bernardo Bertolucci ganhou a chance de dirigir seu
primeiro longa-metragem com roteiro do mentor Pier Paolo Pasolini
(1922-1975), amigo de seu pai, o grande poeta Atillio Bertolucci
(1911-2000). A Morte (La Commare Secca,1962), que está sendo lançado
pela Versátil Home Vídeo, é uma estréia desconcertante. Bertolucci,
assistente de direção de Pasolini em Desajuste Social (Accatone, 1961),
também lançado no Brasil pela Versátil, aproveitou bem essa experiência
e retratou o submundo romano segundo o espírito pasoliniano, embora com
um discurso surpreendentemente maduro para um garoto de 21 anos.
O argumento original de Pasolini elege a história da investigação do
assassinato de uma prostituta num parque romano. Os suspeitos são cinco
párias presentes na noite do crime: um cafetão, dois garotos prontos a
extorquir dinheiro de um homossexual, um pequeno ladrão que surpreende
casais em pleno ato sexual e um soldado sulista e provinciano flanando
pela cidade grande. Desnecessário dizer que nenhum deles assume ter
visto o crime, embora sejam todos potenciais criminosos. Essa é
justamente a tese de Pasolini: não existem inocentes numa cidade que
empurra seus deserdados para as margens. No centro, um corpo sem vida.
Na periferia, apenas almas mortas.
O fascínio que exerciam sobre Pasolini os “ragazzi di vita”, ou seja, os
vadios de Roma, não é dividido por Bertolucci, a despeito de sua
compaixão pelos desajustados. Bertolucci, filho pródigo de grandes
proprietários de terra na província, aponta o dedo para esses cinco
suspeitos e não livra nenhum da culpa. Mesmo que o rufião Bustelli
(Alfredo Leggi) não tenha cometido o crime, é um perverso delinqüente
que explora miseráveis locatários de sua amante mais velha, igualmente
usada. Vagabundo por vocação, Bustelli não difere muito do larápio que
rouba casais ou dos dois meninos que seguem o homossexual atrás de
dinheiro. O pequeno ladrão de Bertolucci, aliás, é parente não muito
distante do marginal de Mamma Roma, que Pasolini rodava simultaneamente
ao filme de seu pupilo.
Bertolucci, um cinéfilo desde os 15 anos, certamente conhecia o projeto
do mestre, embora insista em afirmar até hoje que ignorava o clássico
filme de Kurosawa, Rashomon (1950), ao iniciar as filmagens de La
Commare Secca. Sua obra de estréia guarda impressionante semelhança com
o filme japonês, sobre um estupro e um assassinato relatados segundo
quatro diferentes pontos de vista. Não que isso diminua a importância e
o impacto de La Commare Secca. Ao contrário. Uma comparação entre os
dois explica como o Oriente se distancia do Ocidente em questões éticas.
Se Kurosawa fala de uma verdade subjetiva impossível de virar objetiva,
Bertolucci, ainda marcado pelo ímpeto juvenil, deixa-se seduzir
ocasionalmente pelo cinismo de seus jovens marginais e sucumbe a uma
solução legal provisória, ao localizar o autor do crime.
Evidentemente, trata-se de uma solução fácil, uma concessão, talvez
sugerida pelo produtor Antonio Cervi, que teria preferido Pasolini na
direção. Isso não compromete o resultado final de La Commare Secca,
econômico na compacta montagem de Nino Baragli e na interpretação
neo-realista de atores anônimos. Bem diferente do filme seguinte de
Bertolucci, A Estratégia da Aranha - este mais próximo de uma alegoria
política godardiana (ou glaube-rochiana)-, seu primeiro filme anuncia um
esteta que valoriza cenas intimistas, aparentemente fora do contexto da
história. A dança entre as duas adolescentes ante a recusa dos tímidos
pretendentes é apenas um exemplo, repetido anos mais tarde numa
seqüência antológica de O Conformista, em que Stefania Sandrelli dança
com a bela Dominique Sanda.
Muitos anos antes de a Itália se curvar ao ideal da comunidade européia
e ficar com vergonha de seus dialetos, abraçando um cosmopolitismo
falso, Bertolucci já falava desses acanhados e inocentes provincianos,
jovens moldados pela cultura de seus pais, aparentemente impermeáveis a
modismos alienígenas. Eles parecem imunes a ideologias, mas, em verdade,
são as primeiras vítimas da opressão econômica que se rendem a forças
políticas reacionárias como o fascismo, quando obrigados a resistir às
tensões do sistema.
O testemunho verbal dos suspeitos, repleto de mentiras, contrapõe-se ao
flashback em que Bertolucci refaz o itinerário verdadeiro dos cinco
investigados . Sua câmera passeia pelo escuro parque romano como se
seguisse os passos de mortos sociais condenados ao Hades. Logo no
prólogo, o corpo da prostituta assassinada (Wanda Rocci) justifica os
sonetos blasfemos e obscenos escritos em dialeto romano por Giuseppe
Giocchino Belli, poeta do século 19. Parece um corpo destituído de alma,
como se a alienação do físico da prostituta acontecesse também numa
dimensão espiritual.
Até o título original, La Commare Secca, diz respeito a essa
personificação da morte como uma entidade viva de fundamental influência
sobre a evolução humana. Se a Morte é uma figura simbólica no clássico
filme de Bergman, O Sétimo Selo, jogando com um cavaleiro já condenado
antes do primeiro lance, ela assume, no filme de Bertolucci, o papel de
guardiã das chaves do inferno, como no clássico poema de Milton, O
Paraíso Perdido. Ela não é a libertadora, mas o espectro que ronda a
periferia romana. É ela que prevalece na imagem final da ‘comare secca’
gravada para sempre na pedra, lembrando que a figura imaginada na Idade
Média como representação da morte (um esqueleto com robe) pode ser mais
assustadora que o anjo caído criado pelo Senhor no primeiro dia.
Bertolucci já realizou outros 22 filmes desde La Commare Secca. Conheceu
o sucesso com O Último Tango em Paris (1972), ganhou nove Oscars com O
Último Imperador (1987) e tentou voltar à velha forma com Os Sonhadores
(1983), seu balanço da geração 68. Mas jamais teve tanta liberdade como
em La Commare Secca. É outro bom motivo para revisitar seu marco zero.
(©
Agência Estado) |