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Cena de
CABIRIA, de
Giovanni Pastrone |
Comentário/"Cabiria"
Elefantina, jorrando lava e lágrimas, "Cabiria" ainda
vive
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Não se passaram nem 15 minutos de filme, e já tivemos: 1) a erupção do
Etna; 2) a destruição da luxuosa "villa" do nobre romano Batto; 3) o
seqüestro de sua filha, a pequena Cabiria, por um bando de piratas
fenícios; 4) a venda de Cabiria num mercado de escravos em Cartago; 5) o
sacrifício de três ou quatro criancinhas nuas, esperneando, arremessadas
a uma fornalha ardente.
Na sala do Cinesesc, o pianista Stefano Maccagno, que acompanha o
épico de Giovanni Pastrone (1882-1959) já esfalfou os dedos numa
quantidade industrial de tremolos, ribombos e "roulades". Mas sua
resistência para enfrentar a partitura do compositor clássico Ildebrando
Pizzetti (1880-1968), ao longo de três horas de projeção, será
comparável à do escravo Maciste, que depois de inúmeros tormentos irá
finalmente liberar Cabiria dos bárbaros cartagineses.
A superprodução de Pastrone, datada de 1914 e restaurada agora pelo
brasileiro João Sócrates de Oliveira, parece quase tão antiga quanto os
eventos das guerras púnicas, roteirizados pelo poeta decadentista
Gabrielle d" Annunzio (1863-1938), que não se esquivou de inserir longos
hinos pagãos nos letreiros de "Cabiria".
Ainda que a história fique um bocado confusa na metade final -tantas
as batalhas, trocas de cenário, traições e cataclismas-, o épico de
Pastrone ainda pode ser visto com interesse. A cuidada composição visual
das cenas contrasta com o tumulto heróico da trama, e tudo se impregna
de um silencioso hausto operístico.
Influência
Mas se "Cabiria" merece ser visto, hoje em dia, é sobretudo pelas
influências que secretamente exerceu em nosso imaginário. Vendo agora o
filme, podemos notar a que tipo de estética -elefantes, camelos,
leopardos, escravos- Fellini se referia em muitos de seus filmes, como
"A Entrevista". O herói Maciste conheceria, depois desta sua primeira
aparição, muitas reencarnações nos épicos italianos até as décadas de 50
e 60. A careca, o perfil, o porte do ator-brutamontes Bartolomeo Pagano
já prefiguram, por outro lado, a aparência do ditador Benito Mussolini.
Toda uma fantasia de nobreza romana, com a África prosternada a seus
pés, e com abertos toques de anti-semitismo (na personagem do
estalajadeiro Bodastoret), funciona em "Cabiria" como "avant-première"
da sanguinolenta farsa fascista. Mas também o mundo de Nélson Rodrigues
se ilumina quando assistimos à morte estrebuchante, interminável, da
princesa Sophonisbe (Itália Almirante-Manzini, robusta e não-depilada,
mas ainda assim uma diva).
Elefantina, macarrônica, jorrando lava e lágrimas, "Cabiria" ainda
vive. De suas erupções arcaicas originou-se, sem dúvida, o solo do qual
brotariam os sonhos de muita gente: de Cecil B. de Mille a Fellini,
passando pelo telecatch e pelos desfiles de Carnaval.
CABIRIA
Direção: Giovanni Pastrone
Onde: hoje, às 17h40, e seg., às 17h20, no Cinesesc (com
acompanhamento musical ao vivo); qua., às 19h40, na Sala Cinemateca
(filme já sonorizado)
(©
Folha de S. Paulo) |