SÃO PAULO -
A exuberância pode ser o sinal mais claro da decadência. É o que o
mostra A Metamorfose de Lucius, HQ erótica de Milo Manara
lançada nesta semana pela Pixel. Baseada na obra Asno de Ouro,
do filósofo romano Lucius Apuleio, a obra traz à tona o cotidiano (e
a degradação) de um império embriagado com sua própria riqueza.
A HQ de Manara mostra as
desventuras de Lucius, um cidadão romano do século 2 d.C. em viagem
à Grécia. Por sua curiosidade excessiva se vê transformado em asno
quando banhado no óleo de uma feiticeira. Na pele do animal, Lucius
é testemunha e protagonista das mais variadas situações, por vezes
aberrantes. Todas elas, no entanto, são marcas de uma sociedade
obtusa em sua opulência. Banquetes, assaltos, traições, orgias,
assassinatos em público nas arenas de gladiadores. Episódios de que
Lucius participa num cenário descrito e desenhado com precisão por
Manara.
A edição brasileira tem duplo
atrativo para os leitores: o prefácio, escrito por Gonçalo Jr,
jornalista e autor de livros sobre quadrinhos, e uma entrevista com
o próprio autor, Milo Manara. Gonçalo faz uma breve biografia do
artista italiano, desde a obra que o colocou em evidência, Clic,
de 1982, passando pela divertidíssima Gullivera (1996),
baseada na obra de Jonathan Swift, até seus últimos projetos, alguns
dos quais foram lançados no Brasil recentemente.
Manara diz que não faz
´pornografia´
Já a entrevista realizada por
Rodrigo Fonseca é um deleite à parte. Ali, Manara, com seus 61 anos,
não esconde suas opiniões. Surpreendentemente sugerem mais sensatez
do que a extravagância de um pornógrafo. Pornografia, aliás, é algo
que ele diz não fazer. “Eu busco o escândalo sem a vulgaridade. Não
preciso desenhar uma cópula em tempo real, com todos os seus
membros, para traduzir uma relação sexual. Eu só preciso identificar
a beleza e persegui-la”, diz.
A mulher, para o autor, não é algo
vulgarizado, algo constante nas campanhas publicitárias. Afirma que
“a mulher é a representação da beleza universal”. “Sempre que
desenho uma mulher, estou desenhando um arquétipo, (...) um
arquétipo do belo, do perverso, do pleno.”
Quando Manara adaptou a obra de
Apuleio, foi fiel à obra original: erotismo e sexualidade servem a
um propósito amplo em A Metamorfose. Ao invés de uma
exclusiva exploração do sexo, Apuleio (e Manara) vai de encontro às
lacunas de uma sociedade que se deseja ideal. Esse tipo de sátira,
em que os personagens são transformados em animais, era um artifício
manjado no período final do Império Romano. Segundo a mitologia, o
asno como figura do ridículo, na verdade tem atribuição reveladora.
Suas longas orelhas simbolizam uma sensibilidade com o mundo natural
de que o ser humano não se dá conta. Mais ainda, o asno representava
o estágio inicial de uma nova metamorfose, mais espiritual, mais
próxima dos deuses, o que justamente ocorre ao longo da HQ.
Lúcios Apuleio
O filósofo e escritor Lucius
Apuleio viveu entre 125 e 184 d.C. Tido como o autor mais
interessante do século 2, produziu variadas obras além de Asno de
Ouro. Nascido na Numídia (atual Argélia), teve contato com diversos
cultos religiosos do norte da África e Ásia. Além disso, foi
influenciado pela retórica grega e por correntes filosóficas que já
faziam críticas ao estado do Império Romano daquele tempo.
Segundo Yone de Carvalho,
professora de historiografia Antiga e Medieval da PUC-SP, o período
que vai de meados do século 2 ao início do século 3 é marcado por um
avanço da sensação de crise no Império Romano. “O Império Romano
nessa altura do século 2, enquanto forma política, está consolidado.
No século 2 há também um contexto geral de exuberância do império.
Essa exuberância não quer dizer que o império não tivesse suas
contradições.” Na virada do século 2 para o 3, parte do período
vivenciado por Apuleio, a noção de crise fica acentuada. “Isso fica
muito mais claro com as guerras entre os generais, com a dificuldade
da obtenção de escravos porque param completamente as conquistas. A
crise surge nesse sentido, de manifestação de dificuldade de gestão
do império.”
Duas tendências filosóficas do
final do Império Romano, o hedonismo e o estoicismo, já elaboravam a
idéia de que o mundo é o lugar dos prazeres. “O mundo, porque o
lugar do efêmero, é o lugar da busca de uma coisa além deste mundo”,
diz Yone de Carvalho. A expressão carpe diem, portanto, não é fruto
do acaso. É a expressão natural de um tipo de sociedade que, às
vésperas de uma crise palpável, opta por regozijar-se de seus
benefícios antes que eles de fato desapareçam.
Sintonia com nossos dias
Para o ouvinte atento,
extravagância e degradação soam mais constantes nos dias de hoje do
que para se referir ao longínquo Império Romano. Deliberadamente ou
não, Manara escolheu contar uma história que tem estranha
familiaridade com os eventos mais recentes. Outra obra sua, que
narra as chantagens e mazelas políticas de Rodrigo Bórgia (o papa
Alexandre VI, do século 16) vai por um viés político mais claro.
Manara vê a Guerra do Iraque sob um matiz semelhante: “Os conflitos
em que os Bórgias se envolveram foram conflitos movidos pela
manutenção das aparências, como um jogo de sombras. Bush, com seu
cinismo maquiavélico, age do mesmo jeito em relação ao Iraque”.
Mesmo assim, Manara parece respeitar mais a prática política
renascentista que a atual. “Com Bush nada é claro. O conflito
moderno é com as aparências.”
Sob a sombra de um mundo em
transformação e declínio, sem qualquer possibilidade de controle
sobre seu destino, era compreensível que os patrícios romanos se
refestelassem em banquetes e orgias. Mas talvez não justificável.
Tudo acontecia sob a opressão de milhares de escravos espalhados
pelo império. Isso era o que Lucius Apuleio tentava mostrar em seu
Asno de Ouro e sem ser pudico ao negar que a sexualidade é parte do
cotidiano. Não é exagero dizer que Manara tenta fazer o mesmo: o que
está em questão não é o sexo, mas a crise de dois impérios que
esvaziam seu sentido.