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Nova HQ de Manara explora decadência do Império Romano

Cena da HQ inspirada em Asno de Ouro, do filósofo romano Lucius Apuleio


Baseada na obra Asno de Ouro, do filósofo Lucius Apuleio, HQ erótica do italiano A Metamorfose de Lucius mostra que a exuberância pode ser sinal de ruína

Adriano Marangoni, especial para o Estado

SÃO PAULO - A exuberância pode ser o sinal mais claro da decadência. É o que o mostra A Metamorfose de Lucius, HQ erótica de Milo Manara lançada nesta semana pela Pixel. Baseada na obra Asno de Ouro, do filósofo romano Lucius Apuleio, a obra traz à tona o cotidiano (e a degradação) de um império embriagado com sua própria riqueza.

A HQ de Manara mostra as desventuras de Lucius, um cidadão romano do século 2 d.C. em viagem à Grécia. Por sua curiosidade excessiva se vê transformado em asno quando banhado no óleo de uma feiticeira. Na pele do animal, Lucius é testemunha e protagonista das mais variadas situações, por vezes aberrantes. Todas elas, no entanto, são marcas de uma sociedade obtusa em sua opulência. Banquetes, assaltos, traições, orgias, assassinatos em público nas arenas de gladiadores. Episódios de que Lucius participa num cenário descrito e desenhado com precisão por Manara.

A edição brasileira tem duplo atrativo para os leitores: o prefácio, escrito por Gonçalo Jr, jornalista e autor de livros sobre quadrinhos, e uma entrevista com o próprio autor, Milo Manara. Gonçalo faz uma breve biografia do artista italiano, desde a obra que o colocou em evidência, Clic, de 1982, passando pela divertidíssima Gullivera (1996), baseada na obra de Jonathan Swift, até seus últimos projetos, alguns dos quais foram lançados no Brasil recentemente.

Manara diz que não faz ´pornografia´

Já a entrevista realizada por Rodrigo Fonseca é um deleite à parte. Ali, Manara, com seus 61 anos, não esconde suas opiniões. Surpreendentemente sugerem mais sensatez do que a extravagância de um pornógrafo. Pornografia, aliás, é algo que ele diz não fazer. “Eu busco o escândalo sem a vulgaridade. Não preciso desenhar uma cópula em tempo real, com todos os seus membros, para traduzir uma relação sexual. Eu só preciso identificar a beleza e persegui-la”, diz.

A mulher, para o autor, não é algo vulgarizado, algo constante nas campanhas publicitárias. Afirma que “a mulher é a representação da beleza universal”. “Sempre que desenho uma mulher, estou desenhando um arquétipo, (...) um arquétipo do belo, do perverso, do pleno.”

Quando Manara adaptou a obra de Apuleio, foi fiel à obra original: erotismo e sexualidade servem a um propósito amplo em A Metamorfose. Ao invés de uma exclusiva exploração do sexo, Apuleio (e Manara) vai de encontro às lacunas de uma sociedade que se deseja ideal. Esse tipo de sátira, em que os personagens são transformados em animais, era um artifício manjado no período final do Império Romano. Segundo a mitologia, o asno como figura do ridículo, na verdade tem atribuição reveladora. Suas longas orelhas simbolizam uma sensibilidade com o mundo natural de que o ser humano não se dá conta. Mais ainda, o asno representava o estágio inicial de uma nova metamorfose, mais espiritual, mais próxima dos deuses, o que justamente ocorre ao longo da HQ.

Lúcios Apuleio

O filósofo e escritor Lucius Apuleio viveu entre 125 e 184 d.C. Tido como o autor mais interessante do século 2, produziu variadas obras além de Asno de Ouro. Nascido na Numídia (atual Argélia), teve contato com diversos cultos religiosos do norte da África e Ásia. Além disso, foi influenciado pela retórica grega e por correntes filosóficas que já faziam críticas ao estado do Império Romano daquele tempo.

Segundo Yone de Carvalho, professora de historiografia Antiga e Medieval da PUC-SP, o período que vai de meados do século 2 ao início do século 3 é marcado por um avanço da sensação de crise no Império Romano. “O Império Romano nessa altura do século 2, enquanto forma política, está consolidado. No século 2 há também um contexto geral de exuberância do império. Essa exuberância não quer dizer que o império não tivesse suas contradições.” Na virada do século 2 para o 3, parte do período vivenciado por Apuleio, a noção de crise fica acentuada. “Isso fica muito mais claro com as guerras entre os generais, com a dificuldade da obtenção de escravos porque param completamente as conquistas. A crise surge nesse sentido, de manifestação de dificuldade de gestão do império.”

Duas tendências filosóficas do final do Império Romano, o hedonismo e o estoicismo, já elaboravam a idéia de que o mundo é o lugar dos prazeres. “O mundo, porque o lugar do efêmero, é o lugar da busca de uma coisa além deste mundo”, diz Yone de Carvalho. A expressão carpe diem, portanto, não é fruto do acaso. É a expressão natural de um tipo de sociedade que, às vésperas de uma crise palpável, opta por regozijar-se de seus benefícios antes que eles de fato desapareçam.

Sintonia com nossos dias

Para o ouvinte atento, extravagância e degradação soam mais constantes nos dias de hoje do que para se referir ao longínquo Império Romano. Deliberadamente ou não, Manara escolheu contar uma história que tem estranha familiaridade com os eventos mais recentes. Outra obra sua, que narra as chantagens e mazelas políticas de Rodrigo Bórgia (o papa Alexandre VI, do século 16) vai por um viés político mais claro. Manara vê a Guerra do Iraque sob um matiz semelhante: “Os conflitos em que os Bórgias se envolveram foram conflitos movidos pela manutenção das aparências, como um jogo de sombras. Bush, com seu cinismo maquiavélico, age do mesmo jeito em relação ao Iraque”. Mesmo assim, Manara parece respeitar mais a prática política renascentista que a atual. “Com Bush nada é claro. O conflito moderno é com as aparências.”

Sob a sombra de um mundo em transformação e declínio, sem qualquer possibilidade de controle sobre seu destino, era compreensível que os patrícios romanos se refestelassem em banquetes e orgias. Mas talvez não justificável. Tudo acontecia sob a opressão de milhares de escravos espalhados pelo império. Isso era o que Lucius Apuleio tentava mostrar em seu Asno de Ouro e sem ser pudico ao negar que a sexualidade é parte do cotidiano. Não é exagero dizer que Manara tenta fazer o mesmo: o que está em questão não é o sexo, mas a crise de dois impérios que esvaziam seu sentido.

(© Agência Estado)

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