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Na Praça São Marcos, em
Veneza, turistas tomam sol com os pés
mergulhados nas águas dos canais da cidade,
que subiram 1,12 m em virtude de uma
combinação de mudanças meteorológicas e
invadiram áreas secas
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Curador da Bienal de Arquitetura de Veneza, focada em
16 megalópoles, diz que São Paulo pode aprender com cidades mais pobres
RAUL JUSTE LORES
da Folha de S. Paulo
O arquiteto inglês Richard Burdett é considerado um dos maiores
especialistas no mundo sobre urbanismo e grandes cidades. Diretor do
curso "Cities Program", da London School of Economics, ele criou a série
de conferências "Urban Age", que reúne prefeitos e arquitetos de todo
mundo para discutir o futuro das megalópoles. Por conta de seu trabalho,
ele foi convidado a ser o curador da Bienal de Arquitetura de Veneza,
que abriu há três semanas e fica aberta até meados de novembro.
Pela primeira vez, a Bienal deixou as maquetes dos arquitetos mais
famosos do mundo e colocou 16 metrópoles como o coração da exposição.
Seu objetivo é mostrar as transformações, acertos e erros de cidades
como Londres, Xangai, Nova York, Cidade do México, Barcelona, Mumbai,
Cairo e São Paulo, cidade que ele visitou em janeiro para coletar
informações e conhecer os problemas. "São Paulo pode aprender com
experiências de outras cidades que têm até menos dinheiro", afirma.
Assessor de urbanismo dos prefeitos de Londres e Barcelona, e
conselheiro de arquitetura da Fundação Tate e da BBC, Burdett fala, na
entrevista abaixo, sobre trânsito, habitação popular, bairros fechados,
transporte e espaços públicos, e porque ele é otimista com o futuro das
megacidades.
Folha -Por que o urbanismo desbancou a arquitetura e as maquetes de
prédios espetaculares nesta Bienal de Arquitetura?
Burdett -Pela primeira vez, mais de 50% da população mundial mora
em cidades. Estima-se que em 2050, serão 75%. Foi uma mudança em massa,
pois há cem anos, eram apenas 10%.
Nos próximos anos, a maior concentração de megacidades será na África e
na Ásia, onde hoje já se sofre com a falta de infra-estrutura, e os
problemas só devem crescer. Acho que é um grande desafio, onde há muito
potencial de trabalho para os arquitetos.
Folha -É hora de se dar mais atenção ao urbanismo?
Burdett - O urbanismo virou sexy. Antes, planejar cidades era
visto como algo para burocratas. Onde você coloca estacionamentos,
praças, ruas e avenidas, dependia apenas de resoluções técnicas. E que
fazer prédios era arquitetura. No pavilhão dinamarquês, por exemplo, um
país com grande tradição arquitetônica, eles dedicaram o pavilhão
inteiro à China.
O curador dinamarquês disse que já que 50% da construção do mundo está
na China, os arquitetos dinamarqueses tinham que saber quais são os
problemas.
Folha -De sua visita a São Paulo, o que mais chamou a sua atenção?
Burdett -Apesar da escala e dos problemas, há um sentido de
diversidade étnica muito rico. Não há uma experiência de cidade de
guetos, como em Johannesburgo. Vi pobres e engravatados caminhando no
centro da cidade, uma área muito vibrante. O lado ruim é o das enormes
desigualdades, da foto que colocamos lá na Bienal dos prédios com
piscinas no Morumbi cercado pelas favelas de Paraisópolis.
Que os ricos andem de helicóptero não acontece por acaso. Nenhum rico em
Londres anda de helicóptero, e Londres é razoavelmente rica.
É o calcanhar de Aquiles da cidade. Também não vi políticas de contenção
e de habitação, e há áreas próximas ao centro que poderiam ganhar mais
densidade.
Folha -São Paulo fala há 15 anos em revitalizar o centro, mas a
região ainda é suja, com vários prédios abandonados ou precariamente
ocupados. E o êxodo de grandes empresas e escritórios continua. No que a
cidade errou?
Burdett -Revitalização não é suficiente. Você pode jogar um monte
de dinheiro lá e ficar apenas com um monte de museus e centros
culturais. Ao menos que você tenha escolas, infra-estrutura, segurança e
políticas integradas, as famílias não irão morar lá.
É um grande desperdício de uma área maravilhosa no coração da cidade,
que já é densa, que tem belos prédios, boa arquitetura, muitos deles
abandonados e vazios. Onde há boa relação com espaço público, praças.
Folha - Cidades do Terceiro Mundo são as que mais crescem, e os
problemas que enfrentam vão se acumulando. O senhor não ficou pessimista
ao visitar essas megalópoles?
Burdett - Há motivos para se assustar, mas há exemplos muito
inspiradores. As cidades vivem ciclos econômicos. Há cem anos, Londres
era igualzinha a Mumbai hoje, em saneamento, nas condições de habitação
ou transporte. A média da população era menos de 20 anos de idade. E
Londres passou por um crescimento urbano exponencial. De 1 milhão passou
para 10 milhões em poucas décadas.
Barcelona era uma cidade pobre para os padrões europeus há vinte anos,
além de ter uma prefeitura endividada. E soube gastar muito bem o
dinheiro que ganhou com as Olimpíadas e se reinventar.
Folha - O trânsito se tornou um pesadelo em todas as megalópoles,
especialmente as do Terceiro Mundo, que não investem em transporte
público. Alguma solução à vista?
Burdett -São Paulo, Caracas ou Cairo têm problemas sérios nessa
área. Mumbai, mais ainda, pois tem um sistema projetado que foi
projetado para um número de passageiros que equivale a um quarto do que
é hoje. Em alguns anos, pode estourar.
Mas há exemplos bem-sucedidos. A Cidade do México fez 200 quilômetros de
metrô. Bogotá criou uma rede de corredores de ônibus que é um sucesso,
além de mais de 300 quilômetros de ciclovias.
Lazer, trabalho e pequenos percursos só são feitos de bicicleta. É uma
cidade de terceiro mundo, de 8 milhões de habitantes, com menos dinheiro
que São Paulo e que fez uma transformação radical com três prefeitos
talentosos. Pouco dinheiro, mas se reinventaram. E ainda criariam uma
rede de bibliotecas invejável. Dá uma enorme esperança e São Paulo pode
aprender com isso.
Folha - A China concentra mais de 50% da construção do planeta. E o
país está imitando o modelo das cidades americanas, com cidades
espalhadas em subúrbios e prioridade para o carro. É uma bomba-relógio?
Burdett -É uma questão séria porque lá o carro é símbolo de
liberdade. Transcende o assunto de mobilidade ou sustentabilidade, pois
gerações que nunca puderam se locomover por sua própria vontade estão
loucas por usá-lo. Mas já há boas novidades. Apesar de Xangai ter
investido milhões em viadutos, túneis, vias expressas, eles também estão
construindo 280 estações de metrô, um impressionante sistema.
Até os chineses estão percebendo os impactos negativos do excesso do uso
do carro no aquecimento global. Cerca de 75% das emissões de dióxido de
carbono saem das cidades. Se não houver mudança no uso do carro
particular, teremos efeitos dramáticos no meio ambiente.
Folha - O pedágio urbano, como o de Londres, é uma alternativa
viável?
Burdett - Há apenas cinco anos, Londres tinha problemas de
congestionamento em massa, era impossível as pessoas chegarem
pontualmente no centro de Londres.
Há quatro anos, foi criado o pedágio urbano na área mais congestionada,
centro da cidade. De lá para cá, outras dez cidades já implementaram
esse pedágio. O trânsito diminuiu muito no centro e as pessoas começaram
a mudar trajetos, horários, a usar o transporte público.
O mais importante não é o pedágio. É que esse dinheiro é investido por
lei no transporte público. O uso de ônibus em Londres duplicou em quatro
anos. Minha esposa, até 5 dias atrás, costumava dirigir para todos os
lugares. Ontem, ela decidiu usar ônibus. Até na minha casa houve
mudanças.
Folha -De Moscou a São Paulo, das cidades indianas às chineses, há o
fenômeno dos bairros fechados, de elites que abandonam as cidades e se
trancam. Esse fenômeno é irreversível?
Burdett - De tudo que eu vi pelo mundo, esse é o fenômeno mais
chocante. Johannesburgo é uma cidade completamente segregada. As casas
tinham muros de 2 metros, depois ganharam mais um, depois arame farpado.
O pior em inscrever diferenças de classes em pedras e muros é que quando
as sociedades mudam de classe, essas diferenças continuarão. Bairros
mudam sem parar, em Nova York, Londres, Barcelona.
Folha -Como assim?
Burdett -Há um bom exemplo em Londres, que é Notting Hill. Foi
classe média no século 19, residência de estudantes pobres nos anos 50.
Nos anos 70, recebeu imigrantes jamaicanos, foi área de tráfico de
drogas, e hoje é a área mais trendy da cidade, caríssima. Você não
consegue viver lá ao menos que você seja o Hugh Grant.
Mas a forma das ruas, dos prédios, a continuidade delas continuam as
mesmas. É a exata antítese de um bairro fechado. Uma vez que você
construiu as diferenças de classes nas formas, mesmo que derrube os
muros, o formato da rua cria senso de diferença. Não conseguirá se
reintegrar à cidade
Caminhando por Higienópolis, em São Paulo, percebi que nos mesmos
quarteirões, e até em prédios iguais, há desde banqueiros a aposentados,
de universitários em prédios antigos sem garagem a artistas. É uma forma
de cidade que sabe acomodar diferenças e mudar.
Folha - Em São Paulo, os conjuntos habitacionais para os mais pobres
são construídos a dezenas de quilômetros do centro, sobrecarregando o
transporte público. Como permitir que o trabalhador não more tão longe
assim do trabalho?
Burdett - O coração dessa questão fala de densidade. Cidades que
permitem que seus trabalhadores vão e voltem para casa rapidamente são
geralmente cidades densas. Não como Los Angeles. E a rede de transporte
público é bem difundida.
Folha - Isso é possível em cidades gigantescas?
Burdett - Tóquio tem 35 milhões de habitantes na região
metropolitana. É bem espalhada. Ainda assim, em um hora eles chegam em
casa, apesar das distâncias enormes, graças ao sistema de transporte
público. Se todos andassem de carro, demorariam horas. O futuro de
Londres está sendo planejado para reduzir cidades-dormitório.
Folha -Como?
Burdett -Em Londres, atualmente, 50% do apartamentos em novos
empreendimentos imobiliários têm que ser financiados a preços
"populares". Está no regulamento.
Boa parte deles têm que ser reservados aos chamados key workers.
Policiais, bombeiros, enfermeiras, professoras, têm prioridade para
morar perto do trabalho. Para construir, precisa se adequar a essa lei.
Parece uma visão estalinista, mas funciona incrivelmente muito bem. Como
a economia em Londres continua crescendo e os valores do metro quadrado
estão muito altos, é preciso mais densidade e regulamento para não
expulsar os trabalhadores das áreas caras.
Folha -Várias cidades européias vivem um boom de prefeitos muito
populares e com grandes idéias, como Paris, Londres ou Berlim. Uma
grande liderança é fundamental para as transformações?
Burdett -Sim. Prefeitos iluminados, com muita liderança, boa
governança e que saibam dar regras claras marcam a mudança. A iniciativa
privada está pronta para seguir novas regras desde que haja segurança,
certeza, aí vão atrás. Quando há incerteza, não há firmeza, as pessoas
não seguem.
Folha -Na Bienal, há exemplos de como a arquitetura também pode
melhorar a qualidade de vida em uma metrópole?
Burdett -Há algumas escolas de São Paulo, feitas após concurso de
arquitetura, que são ótimas e que evidentemente influem na qualidade de
vida dos habitantes vizinhos, não só dos alunos. Elas são usadas nos
finais de semana.
Há ginásios esportivos na favela do Petare, em Caracas, que cumprem o
mesmo objetivo.
E as belas bibliotecas construídas em Bogotá. Quase 7 milhões de pessoas
por ano usam a rede de bibliotecas da cidade, é o maior índice na
América Latina e acredito que algo teve a ver com qualidade dos
edifícios, dos móveis, do design. Mas eu diria que os espaços públicos
são ainda mais importantes que os prédios.
Folha -Como em Barcelona?
Burdett -É um exemplo bastante famoso, mas ainda me impressiona a
revolução que eles conseguiram com a criação de espaços públicos de alta
qualidade para todos. Praças boas, jardins, calçadas, esculturas em
espaços públicos, viraram lugares onde jovens e velhos, imigrantes e
habitantes tradicionais, crianças sentam, passeiam, brincam, usam. Ruas
não são apenas caminhos para os carros ou para fazer compras.
Folha -Falando em compras, em São Paulo e em muitas outras cidades
brasileiras e norte-americanas, a proliferação de shopping centers matou
o comércio de rua e as lojas nos centros das cidades. Os shoppings
também foram para os subúrbios.
Burdett - No Reino Unido tínhamos exatamente o mesmo problema há
10 anos. O último governo conservador, de John Major, proibiu as grandes
superfícies, shoppings ou hipermercados fora das cidades, não se deu
mais permissão.
Então as grandes redes de supermercados tiveram que se reinventar. Tanto
à direita quanto à esquerda, a poucos quadras da minha casa, tem um
mercado Tesco, a maior rede de supermercados do Reino Unido e que está
fora nos shoppings. Só na região onde moro há 50 Tescos, onde compro
leite, queijo, tudo. Uma determinação que criou um efeito muito positivo
na economia local.
Folha -Arquitetura e regras duras podem dar um jeito nas grandes
cidades?
Burdett -Por séculos, arquitetos foram particularmente capazes de
lidar com aspectos práticos de como reunir casas, prédios e transformar
espaços em lugares maravilhosos. Tanto os abertos, democráticos, como os
que dividem e fazem as diferenças nas sociedades ainda mais aparentes. O
desafio dessa Bienal é mostrar como lidar com todos esses assuntos.
(©
Folha Online)
Parte de Veneza debaixo d'água na primeira "aqua
alta" do ano
ROMA (AFP) - Uma parte do centro
histórico de Veneza estava coberta pela água nesta terça-feira, depois
da passagem de uma "perturbação de origem atlântica" combinada com um
fenômeno natural de maré que aumentou o nível da água em 112 cm.
"É a primeira vez no ano que as águas alcançam altura semelhante",
segundo um comunicado do Centro Veneziano de Vigilância e Previsões das
Marés, que registrava "um pico de 112 cm" ao meio-dia, o qual afetava
cerca de "15% do centro histórico".
Numerosos turistas caminhavam descalços e com os calças levantadas na
tarde desta sexta-feira nos arredores da Praça San Marco, onde a água
cobria seus tornozelos.
O centro de vigilância explica este fenômeno devido "à passagem pelo
norte da Itália de uma perturbação de origem atlântica que causou ventos
no Mar Adriático e uma baixa da pressão atmosférica", combinados com o
fenômeno natural de maré.
Além das tradicionais passarelas instaladas para os pedestres nas zonas
mais inundadas, a utilização de sirenes e de anúncios sonoros, o Centro
de Vigilância também testou pela primeira vez um sistema de alerta por
mensagens telefônicas de texto (SMS).
Cerca de 50.000 pessoas que se inscreveram neste novo serviço receberam
em seus telefones celulares várias mensagens que os mantinham informados
da evolução da subida das águas.
Espera-se que as águas baixem progressivamente nas próximas horas,
estimou o Centro.
A cidade de Veneza sofreu sua pior "aqua alta" em 4 de novembro de 1966.
Na ocasião, esteve submersa por 194 cm de água, enquanto ocorriam
inundações catastróficas em todo o território italiano.
(©
UOL Últimas Notícias)
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