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Festival de Roma cancela eventos após colisão de trens

Elenco de La Sconosciuta, de Tornatore


A direção do Festival Internacional de Cinema de Roma decidiu suspender todas as manifestações ou eventos que não sejam a projeção e a conferência de imprensa dos filmes

ANSA

ROMA - A direção do Festival Internacional de Cinema de Roma decidiu suspender todas as manifestações ou eventos que não sejam a projeção e a conferência de imprensa dos filmes, que serão precedidos por um minuto de silêncio em sinal de participação com a dor da cidade pela tragédia da colisão de trens no metrô de Roma ocorrida ontem.

O anúncio foi feito em um comunicado oficial da organização, instantes após a confirmação da tragédia.

"A notícia do acidente em Roma foi como um raio neste momento feliz, nesta festa popular criativa e cheia de eventos extraordinários. Decidimos abolir por hoje tudo o que não for apresentação dos filmes, nada de tapetes vermelhos ou eventos culturais. Cancelamos também a festa de encerramento que deveria ocorrer sábado na Cinecittà", declarou o presidente do Festival, Goffredo Bettina, em uma entrevista coletiva improvisada.

Na primeira atividade do dia, a conferência de imprensa do filme "Le Concile de Pierre", a protagonista Monica Bellucci se mostrou desconfortável diante do acidente que envolveu a cidade.

"Nos sentimos um pouco estúpidos em falar de cinema agora, mas respeitamos nosso trabalho e seguiremos com a entrevista coletiva, ainda que nosso ânimo não seja dos melhores", afirmou a atriz italiana no início da sua apresentação.

(© Agência Estado)


Pontecorvo: restituir e nunca esquecer

No cinema e na vida, Pontecorvo foi um lutador anti-fascista, daqueles que podem restituir o século XX do sangue e da barbárie a povoar alguns dos falsos fantasmas atuais. Sobretudo porque a luta antifascista ainda é uma das poucas chamas acesas a restituir do século XX algum sentido. Ainda mais porque aquilo que nos atormentou parece ganhar uma tenebrosa força, hoje.

Pontecorvo nos deixou ontem, dia 12 de outubro de 2006, com 86 anos. Era um gigante do cinema, que fez o maior filme político da história. Quem assiste A Batalha de Argel (1966) pode saber sem esforço de compreensão algum, que se trata do maior e mais importante filme político da história do cinema. E que Pontecorvo pode ser lembrado como um gigante apenas por ter feito este filme, cinematográfica, dramática e moralmente eterno. Ao ver só a Batalha de Argel porém, é impossível não se perguntar quem fez esse filme, quem dirigiu, quem nos deu – humanidade – essa chance de olhar-nos e vermo-nos e reconhecermo-nos, de maneira tão intransigente e bela.

Essa pergunta vem junto a outra: o que pode ser a decisão pela verdade, através da lente de uma câmera (que no caso de Pontecorvo é fotográfica e cinematográfica, como uma só)?

Esse gigante é um homem que cometeu a mais grave e honrada das decisões. Cometeu essa decisão e nunca mais abriu mão de suas exigências. Certamente pagou variados preços por isso. Pode-se assistir ao A Ditadura da Verdade, um documentário sobre sua vida, para tirar as próprias conclusões a respeito do que decidiu o nosso gigante. O que esse documentário nos possibilita, pela voz do próprio cineasta, numa entrevista dos anos 70, é a autenticação de algo que A Batalha de Argel nos apresenta de modo lapidar: Pontecorvo decidiu buscar a verdade. Nada menos.

Isso custa caro e sempre custou. Nem sempre o preço compensa, do ponto de vista do sistema de medidas dos que optam pela mentira, e assim dominam o mundo cheio de misérias e enganações – pensando bem, tudo mesmo tem seu preço, talvez. O preço do gigante italiano foi ter produzido pouco, de ter deixado inúmeros projetos inconclusos, de ter abandonado o que viria a ser filme, algumas vezes, já na fase de pré-produção. Quem não decidiu pela verdade jamais pode entender esse tipo de atitude. E Pontecorvo não parece ser o tipo de gente que se incomoda com a mesquinhez que recusa a percepção do que está diante dos próprios olhos.

Quanto a isto, a lição de Pontecorvo é nítida como um girassol em preto e branco, sobretudo na Batalha de Argel: ele fez um filme-fotografia, cujos silêncios são – como numa operação de sinestesia deliberada – transfigurados em olhares mudos e irados, altivos, dos lutadores pela independência da Argélia. E a lição é esta: a ação como verdade; como verdade, é necessário dizer, a olhos vistos.

Só quem decidiu pela verdade pode entender isso. A autoridade, para quem tem a verdade em mente, não tem por hábito depender de nenhuma negociação. Sim, mas que ninguém se engane a respeito do humanismo dessa decisão.

Gillo Pontecorvo é de uma das histórias que ainda podem restituir o século XX à dignidade que lhe pertence. E não só o século XX. Ele é exemplar de uma cepa de homens e mulheres a quem a humanidade deve dobrar-se em respeito, louvor e gratidão. Uma cepa que hoje parece a dos gigantes e, quanto mais os dias avançam, mais parece que o nosso louvor e a nossa gratidão exigem o caráter de necessidade.

Ele é um gigante anti-fascista, dos que podem restituir o século XX do sangue e da barbárie a povoar alguns dos falsos fantasmas atuais. Sobretudo porque a luta antifascista ainda é uma das poucas chamas acesas a restituir do século XX algum sentido. Ainda mais porque aquilo que nos atormentou parece ganhar uma tenebrosa força, hoje.

Quantos jovens se dispõem a mudar a vida radicalmente? A subverter a conversa fiada das superioridades de nascença, ou a dominação, disfarçada de desistência, a dizer que a Política não merece atenção? Há quem diga – nem sempre por ignorância ou com boa fé – que o tempo em que Pontecorvo decidiu pela verdade "eram tempos muito diferentes" destes que atravessamos. Que era um momento nem tão penoso, nem tão alienado, como o atual, em que até o oxigênio do ar corre o risco de se tornar commoditie. Quem faz isso denega o fascismo, atitude jamais insuspeita, é bom que se diga.

Pois Pontecorvo tornou-se comunista e resistiu – inclusive com armas – ao fascismo na Itália. Depois, abandonou o stalinismo quando da grande noite que se abateu sobre a Hungria, em 1956. Foi um dos primeiros a dizer no cinema dos campos de concentração, ao fazer Kapo (1960) e se tornou eterno quando decidiu seguir o testemunho de um ex-prisioneiro e militante da Frente de Libertação Nacional argelina, Saadi Yacef e inscrever uma batalha no norte da África, contra a França, na história do cinema. Com rigor, compromisso e lirismo estonteantes.

A Batalha de Argel, vencedor do Leão de Ouro, em Veneza, tornou-se conhecida por seu realismo. É uma obra prima realista, cujo sentido de eternidade só pode ser devidamente respeitado se lembrarmos que havia apenas três anos da consumação da independência da Argélia e que a imensa maioria dos seus atores eram argelinos de carne, osso, memória recente e altivez suficientes, para encenarem a si mesmos. E que esta escolha temporal e pessoal é nada menos que a tradução da decisão inegociável de Pontecorvo. A decisão pela verdade, que nunca subtrai, mas transfigura o registro histórico e suas imposições e, mais ainda: restitui a carne e a memória dos que sofrem, dos que lutam e dos que pereceram, lutando por liberdade e justiça.

Foi um gigante, que restitui e exige o maior legado da luta anti-fascista, ontem, hoje e onde esse mal ousar se erguer: não esquecemos. Não esquecemos com quem estamos, nem do que se faz e o que exige a verdade: olhar, ver e reconhecer, de maneira intransigente e bela, a carne e a memória dos que sofrem, dos que lutam e dos que pereceram, lutando por liberdade e por justiça.

Pontecorvo era judeu, então, talvez uma homenagem impregnada de teologia judaica esteja à altura de sua figura, por fim. É uma peculiar oração, feita pelo maior teólogo judeu e marxista da história, que lutou contra o fascismo desde sempre Que estas palavras ganhem carne e luta, diante das ameaças fascistas, que parece não cessarem de pretender a morte e destruição: “O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”(1) Que Pontecorvo e todos os homens e mulheres que restituem o antifascismo estejam seguros, porque esse historiador aí é a verdade. Nada menos.

(1) Teses Sobre o Conceito de História. Tese VI, de Walter Benjamin. In
"Aviso de Incêndio: Uma Leitura das Teses sobre o Conceito de História"
, de Michel Löwy. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant. Tradução das Teses: Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Muller. Boitempo, 2005

(© Agência Carta Maior)

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