No cinema e na vida, Pontecorvo foi
um lutador anti-fascista, daqueles que podem restituir o
século XX do sangue e da barbárie a povoar alguns dos
falsos fantasmas atuais. Sobretudo porque a luta
antifascista ainda é uma das poucas chamas acesas a
restituir do século XX algum sentido. Ainda mais porque
aquilo que nos atormentou parece ganhar uma tenebrosa
força, hoje.
Katarina Peixoto
Pontecorvo nos deixou ontem, dia 12 de
outubro de 2006, com 86 anos. Era um gigante do cinema,
que fez o maior filme político da história. Quem assiste
A Batalha de Argel (1966) pode saber sem esforço de
compreensão algum, que se trata do maior e mais
importante filme político da história do cinema. E que
Pontecorvo pode ser lembrado como um gigante apenas por
ter feito este filme, cinematográfica, dramática e
moralmente eterno. Ao ver só a Batalha de Argel porém, é
impossível não se perguntar quem fez esse filme, quem
dirigiu, quem nos deu – humanidade – essa chance de
olhar-nos e vermo-nos e reconhecermo-nos, de maneira tão
intransigente e bela.
Essa pergunta vem junto a outra: o que pode ser a
decisão pela verdade, através da lente de uma câmera
(que no caso de Pontecorvo é fotográfica e
cinematográfica, como uma só)?
Esse gigante é um homem que cometeu a mais grave e
honrada das decisões. Cometeu essa decisão e nunca mais
abriu mão de suas exigências. Certamente pagou variados
preços por isso. Pode-se assistir ao A Ditadura da
Verdade, um documentário sobre sua vida, para tirar as
próprias conclusões a respeito do que decidiu o nosso
gigante. O que esse documentário nos possibilita, pela
voz do próprio cineasta, numa entrevista dos anos 70, é
a autenticação de algo que A Batalha de Argel nos
apresenta de modo lapidar: Pontecorvo decidiu buscar a
verdade. Nada menos.
Isso custa caro e sempre custou. Nem sempre o preço
compensa, do ponto de vista do sistema de medidas dos
que optam pela mentira, e assim dominam o mundo cheio de
misérias e enganações – pensando bem, tudo mesmo tem seu
preço, talvez. O preço do gigante italiano foi ter
produzido pouco, de ter deixado inúmeros projetos
inconclusos, de ter abandonado o que viria a ser filme,
algumas vezes, já na fase de pré-produção. Quem não
decidiu pela verdade jamais pode entender esse tipo de
atitude. E Pontecorvo não parece ser o tipo de gente que
se incomoda com a mesquinhez que recusa a percepção do
que está diante dos próprios olhos.
Quanto a isto, a lição de Pontecorvo é nítida como um
girassol em preto e branco, sobretudo na Batalha de
Argel: ele fez um filme-fotografia, cujos silêncios são
– como numa operação de sinestesia deliberada –
transfigurados em olhares mudos e irados, altivos, dos
lutadores pela independência da Argélia. E a lição é
esta: a ação como verdade; como verdade, é necessário
dizer, a olhos vistos.
Só quem decidiu pela verdade pode entender isso. A
autoridade, para quem tem a verdade em mente, não tem
por hábito depender de nenhuma negociação. Sim, mas que
ninguém se engane a respeito do humanismo dessa decisão.
Gillo Pontecorvo é de uma das histórias que ainda podem
restituir o século XX à dignidade que lhe pertence. E
não só o século XX. Ele é exemplar de uma cepa de homens
e mulheres a quem a humanidade deve dobrar-se em
respeito, louvor e gratidão. Uma cepa que hoje parece a
dos gigantes e, quanto mais os dias avançam, mais parece
que o nosso louvor e a nossa gratidão exigem o caráter
de necessidade.
Ele é um gigante anti-fascista, dos que podem restituir
o século XX do sangue e da barbárie a povoar alguns dos
falsos fantasmas atuais. Sobretudo porque a luta
antifascista ainda é uma das poucas chamas acesas a
restituir do século XX algum sentido. Ainda mais porque
aquilo que nos atormentou parece ganhar uma tenebrosa
força, hoje.
Quantos jovens se dispõem a mudar a vida radicalmente? A
subverter a conversa fiada das superioridades de
nascença, ou a dominação, disfarçada de desistência, a
dizer que a Política não merece atenção? Há quem diga –
nem sempre por ignorância ou com boa fé – que o tempo em
que Pontecorvo decidiu pela verdade "eram tempos muito
diferentes" destes que atravessamos. Que era um momento
nem tão penoso, nem tão alienado, como o atual, em que
até o oxigênio do ar corre o risco de se tornar
commoditie. Quem faz isso denega o fascismo, atitude
jamais insuspeita, é bom que se diga.
Pois Pontecorvo tornou-se comunista e resistiu –
inclusive com armas – ao fascismo na Itália. Depois,
abandonou o stalinismo quando da grande noite que se
abateu sobre a Hungria, em 1956. Foi um dos primeiros a
dizer no cinema dos campos de concentração, ao fazer
Kapo (1960) e se tornou eterno quando decidiu seguir o
testemunho de um ex-prisioneiro e militante da Frente de
Libertação Nacional argelina, Saadi Yacef e inscrever
uma batalha no norte da África, contra a França, na
história do cinema. Com rigor, compromisso e lirismo
estonteantes.
A Batalha de Argel, vencedor do Leão de Ouro, em Veneza,
tornou-se conhecida por seu realismo. É uma obra prima
realista, cujo sentido de eternidade só pode ser
devidamente respeitado se lembrarmos que havia apenas
três anos da consumação da independência da Argélia e
que a imensa maioria dos seus atores eram argelinos de
carne, osso, memória recente e altivez suficientes, para
encenarem a si mesmos. E que esta escolha temporal e
pessoal é nada menos que a tradução da decisão
inegociável de Pontecorvo. A decisão pela verdade, que
nunca subtrai, mas transfigura o registro histórico e
suas imposições e, mais ainda: restitui a carne e a
memória dos que sofrem, dos que lutam e dos que
pereceram, lutando por liberdade e justiça.
Foi um gigante, que restitui e exige o maior legado da
luta anti-fascista, ontem, hoje e onde esse mal ousar se
erguer: não esquecemos. Não esquecemos com quem estamos,
nem do que se faz e o que exige a verdade: olhar, ver e
reconhecer, de maneira intransigente e bela, a carne e a
memória dos que sofrem, dos que lutam e dos que
pereceram, lutando por liberdade e por justiça.
Pontecorvo era judeu, então, talvez uma homenagem
impregnada de teologia judaica esteja à altura de sua
figura, por fim. É uma peculiar oração, feita pelo maior
teólogo judeu e marxista da história, que lutou contra o
fascismo desde sempre Que estas palavras ganhem carne e
luta, diante das ameaças fascistas, que parece não
cessarem de pretender a morte e destruição: “O dom de
atear ao passado a centelha da esperança pertence
somente àquele historiador que está perpassado pela
convicção de que também os mortos não estarão seguros
diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo
não tem cessado de vencer.”(1) Que Pontecorvo e todos os
homens e mulheres que restituem o antifascismo estejam
seguros, porque esse historiador aí é a verdade. Nada
menos.
(1) Teses Sobre o Conceito de História. Tese VI, de
Walter Benjamin. In
"Aviso de Incêndio: Uma Leitura das Teses sobre o
Conceito de História", de Michel Löwy. Trad. Wanda
Nogueira Caldeira Brant. Tradução das Teses: Jeanne
Marie Gagnebin e Marcos Lutz Muller. Boitempo, 2005
Katarina Peixoto
é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. E-mail:
katarinapeixoto@hotmail.com
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Agência Carta Maior)
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