Essa Itália pequenina, a "Italietta", que
resolvia seus problemas econômicos depois de quase arruinada pela guerra, adotou ares
superiores de país afluente, aburguesou-se e aderiu, de forma acrítica, à sociedade de
consumo. Destruía, segundo Pasolini, valores que vinham de um mundo ancestral, camponês,
agrário, primal. Era agora (estamos falando do final dos anos 60 e começo dos 70) um
país de filisteus, vendido ao supérfluo e que, por isso mesmo, tornava-se, ele também,
supérfluo.
A missão de Pasolini consistiu em fustigar os novos
valores que nasciam e se tornavam consensuais quando se anunciava o quarto final do
milênio. Era um rebelde com causa. Incomodava. Por isso sua morte foi recebida com
alívio (disfarçado) pelos bem pensantes.
Pasolini, obviamente, tornou-se mais conhecido do
público (pelo menos do público internacional) por seu trabalho de cineasta. Arte mais
mediática, por assim dizer. Mas, enfim, os filmes expressam suas idéias perfeitamente.
Pasolini não começou dirigindo. Foi roteirista em
filmes como A Mulher do Rio, de Giovanni Soldati, Noites de Cabíria, de Federico Fellini,
A Noite do Massacre, de Floretano Vancini, Morte de um Amigo, de Francesco Rosi. Com Mauro
Bolognini fez uma parceria da pesada em títulos importantes como O Belo Antonio, Os
Namoros de Marisa, Um Dia de Enlouquecer e, acima de todos esses, A Longa Noite de
Loucuras, tradução para La Notte Brava.
O ponto forte desse filme é mesmo seu roteiro, que
acompanha um grupo de estróinas em sua farra noturna. O detalhe genial: um deles chega ao
restaurante vazio, faz com que as portas sejam abertas. Recusa o menu. Diz ao garçom que
quer fazer exatamente o mesmo pedido de Ali Khan, o milionário que, ele sabia, jantara
ali uma vez. Depois do banquete, deixa a namorada em casa, amarrota a última nota de
dinheiro que tem no bolso, atira-a de uma ponte e volta a pé para o casebre onde mora.
Nessa cena simples está resumido todo Pasolini. Do
desprezo pela acumulação ao fascínio pelo lúmpen, experiência fundamental para ele
que vinha do Friuli e chegava a Roma para tentar uma carreira de artista.
Seus dois primeiros filmes como diretor, Accatone e
Mamma Roma foram saudados como anunciadores de um renascimento neo-realista. De fato,
estavam lá, presentes, os mesmos elementos da escola de Roberto Rosselini e Cesare
Zavattini: o cunho social da narrativa, participação de atores amadores, a preferência
por cenas de rua, o inconformismo com a sociedade italiana, a generosidade com os
humildes.
Depois do escândalo do episódio La Ricotta, no qual o
protagonista da Paixão come demais e morre de indigestão na cruz Pasolini roda uma de
suas obras-primas, A Paixão Segundo São Mateus, com seu Cristo enragé - marxista para
alguns, apenas humano, para outros. Em todo caso, o filme lhe valeu o prêmio Ocic (Office
Catholique du Cinéma) e foi elogiado pelo Osservatore Romano, órgão oficial do
Vaticano.
Visto em perspectiva, Evangelho parece menos uma ode ao
catolicismo que uma denúncia à laicização do mundo moderno - preocupação que, com o
questionamento da ordem capitalista, iria estar na ordem do dia do cineasta até o fim
prematuro de sua carreira.
É assim no polêmico Teorema, que fez escândalo em
1969 com sua temática crua e ao mesmo tempo alegórica. Terence Stamp interpreta o
misterioso visitante que entra no circuito de uma família burguesa e a desestabiliza
fazendo sexo com cada um dos seus componentes. Há aí não apenas o habitual desprezo
pela burguesia e a família tradicional, mas também a nostalgia do sagrado, daquele mundo
agrário, simples e honesto que ele lamentava perder. O contato com o sagrado, aqui, se
faria pelo sexo sem limites.
Esse mundo primevo, ele tentava reencontrar também nas
tragédias gregas, como Édipo Rei e Medéia - recuperações simbólicas de um tempo
mítico, ainda não contaminado pelo racionalismo industrial. O mesmo movimento pode ser
detectado na sua "trilogia da vida", Decamerão (1972), Os Contos de Canterbury
(1973) e As Mil e Uma Noites (1974).
Narrativas populares, anônimas como as noites árabes,
ou assinadas por autores como Chaucer ou Bocaccio, que oxigenavam, segundo Pasolini, a
vida mesquinha, sufocante e estreita adotada por sua Itália natal, pela Europa e pelo
mundo. São filmes que celebram a beleza do corpo humano e do sexo, e eram colocados por
Pasolini como antídotos ao neomoralismo que se anunciava nos anos 70. Ao ver como tudo
isso era facilmente absorvível pelas elites, Pasolini "abjurou" sua trilogia.
A resposta que deu a ela (e no fundo a si mesmo) foi
brutal. Salò ou os 120 Dias de Sodoma é um dos filmes mais terríveis e insuportáveis
jamais projetados numa tela de cinema. Pasolini adapta a obra de Sade à república
fascista de Salò, último refúgio dos camisas-pretas no fim da 2.ª Guerra.
As cenas de sexo são tristes, ao contrário das da
trilogia da vida. Há tortura, há humilhação e perversões, sugerindo o que acontece
quando instintos destrambelhados se voltam contra si mesmos. A idéia é mais ou menos
evidente: Pasolini associa o fascismo a essa difusa pulsão de morte. Parece sugerir, a
cada fotograma, que o fascismo, longe de estar morto, parece apenas esperar uma chance
para ressurgir.
Não deixa de ser profético. Talvez o fascismo não
tenha voltado (ainda) com a intensidade prevista por este poeta trágico. Mas basta olhar
para o mundo e verificar se vivemos afinal um tempo de paz, prosperidade e tolerância
sexual e religiosa. Salò acabou sendo o testamento involuntário de Pasolini. Uma
carreira bruscamente encerrada não deixa espaço para meios-tons. Em Salò reproduz-se,
fielmente, a impressão que Pasolini tinha do mundo antes de ser retirado de cena. (Luiz
Zanin Oricchio, OESP)