Até o
secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, se pronunciou sobre a discussão levada
a cabo nos 35 pavilhões dos Giardinis de Veneza. "As cidades estão no centro de um
processo contrastante, passando do material ao imaterial", ponderou Annan em mensagem
à Bienal. Para falar do problema das grandes cidades no mundo contemporâneo, o curador
da mostra recebeu a reportagem do Estado.
Estado - O tema da 7ª Bienal de Arquitetura de Veneza é Less
Aesthetics and more Ethics, ou seja, "Menos estética e mais ética". Mas
anteriormente havia a palavra cidade (Città: Less aesthetics and more ethics) no título.
Por que foi retirada?
Massimiliano Fuksas - Porque já se sabe que a cidade é o palco dos
grandes conflitos e dos grandes problemas, portanto sua presença já está implícita.
É necessário explicar, entretanto, o que significa no caso
"ética" - a ética do título da Bienal seria o maior empenho dos arquitetos
para melhorar o futuro. O futuro é o ambiente, a tecnologia, a pobreza, a falta de água
e tantos outros problemas. O arquiteto não resolve, mas participa. Todos sabem que o
arquiteto não é a solução de todos os problemas, mas sabemos também que se um local
é mal construído ou mal planejado, não funciona. Portanto, eu peço aos arquitetos e
principalmente a mim mesmo um ato de generosidade para conseguirmos mudar alguma coisa,
para participarmos de um processo, de uma idéia! É isso. Essa é a idéia da Bienal.
Deverá ser uma Bienal que nos dê coragem, que nos faça reencontrar a vontade de sermos
ativos na sociedade, de não nos submetermos a ela!
Estado - E avaliando os projetos apresentados o sr. acha que houve uma
compreensão desse significado?
Fuksas - Segundo a minha opinião, as idéias apresentadas são
extraordinárias! Se conseguíssemos colocar em prática tudo o que se falou, que se
pensou...
Estado - Pode-se dizer que essa é uma Bienal que busca aproximar as
pessoas da arquitetura e a arquitetura da realidade das pessoas?
Fuksas - Exatamente! Eu queria que fosse uma Bienal que falasse ao grande
público! Eu penso que a primeira coisa a ser feita e torná-la popular!
Porque até os dias de hoje a Bienal de Arquitetura foi sempre uma coisa
que não interessou a ninguém que não fosse arquiteto ou algum outro profissional ligado
ao assunto. Despertar a atenção das pessoas para a arquitetura é ajudá-las, educá-las
e dar a elas um meio de comunicar-se. A linguagem normalmente usada na arquitetura é um
dialeto incompreensível para a maior parte do mundo, impedindo a sua participação
efetiva na sociedade.
Estado - Hoje existe uma realidade social conflituosa na Europa
Ocidental devido aos diversos movimentos migratórios em sua direção, provenientes,
principalmente, da África e do Leste Europeu. Isso influenciou na escolha do tema da
Bienal?
Fuksas - Sim.
Estado - E influenciou também as propostas apresentadas?
Fuksas - Foi um fato importante para aproximadamente 50% dos projetos.
Esse é um problema mais abordado pelos arquitetos jovens.
Estado - Como o sr. pensa que as políticas urbanas dos países
desenvolvidos europeus enfrentarão esse problema?
Fuksas - O país mais avançado na reflexão desse tema é a França, onde
existe o problema da imigração árabe iniciada há 40 ou 45 anos atrás. A França vive
com aproximadamente 5 milhões de árabes e africanos. Eles foram transportados ao seu
território em uma certa época, quase todos trazidos para trabalhar na indústria, como
mão-de-obra de baixo custo, evitando os operários franceses já
"excessivamente" sindicalizados. Foram construídos para esses imigrantes
africanos e árabes, já nos anos 60 e 70, bairros monstruosos, horrendos. Além disso,
com a crise da falta de trabalho, o fenômeno da especialização e da "new
economy", essas pessoas foram ejetadas do mercado de trabalho definitivamente. Então
o Estado francês decidiu ajudá-las e criou uma lei para sustentar os desocupados, mas
não foi o suficiente. Portanto, existe um conflito econômico, social e urbano enorme na
organização do território francês. A Itália, ao contrário, se encontra no ponto de
origem do mesmo problema, ou seja, agora precisamos construir as casas para os imigrantes.
O drama se encontra agora aqui. Nós seremos capazes ou não de projetar as casas para os
refugiados e para os novos imigrantes que sejam partes de uma cidade, lugares, bairros?
Serão lugares onde se poderá viver ou serão sempre guetos fabricados por nós? Porque a
Bienal é também isso, é a casa dos refugiados. Ou seja, chegam os imigrantes: e aí?
Com todos os juízos que nós podemos ter sobre os albaneses, por exemplo, que são um dos
povos menos amados sobre a face da terra, sejam juízos certos ou errados, isso não quero
discutir, mas o problema real é que existe uma pressão muito grande sobre a Europa.
Alguma coisa deve ser pensada e feita sobre essa situação, senão a Europa não vai
agüentar.
Estado - Falando um pouco sobre Internet, TV e meios de comunicação,
tenho lido muito sobre as conseqüências dessas tecnologias na dinâmica dos centros
urbanos. O que o sr. acha desse assunto?
Fuksas - Na minha opinião, a Internet não é um novo meio de trabalhar,
mas um novo meio de controlar a informação. O problema não são as informações em si,
mas seu controle. Com a Internet, um grupo pequeno de pessoas pode gerir uma infinidade de
informações e de relações. Descobriu-se também que a informação é mais importante
que a produção. Há uma grande demanda pela informação em todo o mundo e é nesse
sentido que devemos dar a resposta. Eu acredito que a Internet também pode ser usada em
termos democráticos. Nós nos encontramos ao início do século 21 em situação
semelhante a que estávamos ao início do século 20, quando possuíamos pela primeira vez
muita tecnologia disponível e podíamos usá-la de forma positiva ou negativa, mas após
15 anos decidimos fazer uma guerra mundial. Hoje, podemos usar a tecnologia de modo a dar
informação a qualquer pessoa no mundo e assim educá-la, ajudá-la. Democracia para mim,
hoje, é informação. Ofereceremos aquilo que sabemos e os recursos que temos à maior
quantidade de pessoas possível ou continuaremos a restringir esse conhecimento à elite?
Não podemos mais restringir os benefícios à elite porque se passou um século, somos
uma sociedade de massa, a globalização é um fato e temos de afrontar seriamente o
problema, caso contrário seremos vencidos por ele. Não há escapatória.
Estado - Entendo. O problema urbano originado na revolução industrial
não foi resolvido...
Fuksas - Foi retardado. Nós o retardamos com as guerras. Porém é um
problema que deve ser resolvido agora, pois as guerras já não são suficientes para
contê-lo. As guerras só agravam o problema e o tempo é muito curto...
Estado - Sim, o mundo é muito pequeno!
Fuksas - Exato. Por esse motivo não se pode mais fazer uma guerra sem que
você mesmo sofra as suas conseqüências. Não se pode bombardear a Iugoslávia e pensar
que não haverá conseqüências. As conseqüências são muito simples, as pessoas deixam
seu país, milhares de iugoslavos migram para a Áustria e o partido fascista vai ao
poder. É hora de resolver os problemas de forma harmônica em termos globais.
Estado - O sr. conhece muitos países e, conseqüentemente, diversas
soluções para os mesmos problemas urbanos. Há alguma solução específica que lhe fez
refletir em particular?
Fuksas - Sim. A primeira coisa que é necessário aceitar é o princípio
de que uma sociedade deve ser multiétnica e logo multilingüística, multirreligiosa,
multirracial. Aceitando esse princípio vemos que as cidades começam a ser interessantes.
Por exemplo, vejamos Tóquio. Em Tóquio, às 5 da tarde todos os empregados saem de seus
trabalhos, retiram suas gravatas, abrem suas camisas e vão beber nos diversos bairros, na
parte alta e baixa da cidade, mas juntos. Passa-se de uma escala muito alta a uma escala
muito pequena, que é constituída de "barracos" de madeira muito tradicionais,
circundados por edifícios muito altos e moderníssimos. Portanto, essa dimensão, essa
cidade nova que convive e coincide com a cidade antiga é uma das coisas que mais me
fascinaram em Tóquio. O sistema de transportes, elemento central para o bom funcionamento
de uma cidade, também é muito eficiente em Tóquio.
Um segundo fato fundamental é que hoje vivemos em sociedades sem
identificações com suas respectivas história e geografia. Devemos aceitar que hoje a
maior parte dos habitantes de uma cidade não nasceu ali e não possui em si a história
dessa cidade. Por isso, deve-se proteger tanto o lugar do habitante como o habitante do
lugar. O "lugar" deve ser protegido, pois quem não o conhece não se identifica
com ele e o destrói. Mas é necessário também proteger esse habitante da dominação do
lugar. Há um trabalho enorme a ser feito. Existem, é claro, casos que funcionam muito
bem. Na minha opinião, Nova York é uma das cidades que hoje funcionam melhor no mundo.
Eu creio que a cidade de NY de hoje seja conseqüência do fato de a cidade ter adquirido
uma história própria. Ou seja, houve uma apropriação via mídia de NY como um local
onde as pessoas se sentem em casa. Você vai a NY e se sente nova-iorquino. É isso!
Devemos transformar as cidades em um local onde não é necessário ter raízes, mas em um
local onde você se encontra há três meses e já se sente originário dessa cidade.
Quando nós conseguirmos fazer as pessoas se sentirem pertencentes à cidade onde vivem
teremos então dado novamente a esse lugar uma geografia. Essa é uma palavra importante -
geografia - e teremos dado às pessoas um lugar onde possam viver. (Cristiana Sabóia,
OESP)