Um monumento da arte e da cultura do século XVII, ícone
da passagem do período renascentista para a época barroca, ganha agora
um livro. Trata-se do volume Galleria Borghese, Os Tesouros do Cardeal,
de José Roberto Teixeira Leite e Elisa Byington (Berlendis e Vertecchia
Editores). O relato fala das origens das coleções de arte, numa época em
que pinturas e esculturas eram apenas parte de um conjunto de objetos
curiosos, como fósseis, esferas e globos terrestres, relógios bizarros,
lentes e espelhos côncavos e convexos, raridades oriundas de vários
pontos da Terra. Acrescente-se a esse tipo de acervo arquiteturas
caprichosas, jardins secretos repletos de plantas raras e zoológico de
animais exóticos.
A ambição, como explica os autores da obra, era compor um teatro do
universo , alegoria sintética de todo o conhecimento da época. O personagem central do
livro é o cardeal Scipione Borghese (1577-1633), sobrinho favorito do papa Paulo V. Com
apenas 27 anos, ele foi promovido a cardeal da Igreja de San Crisogno, em Transtevere. Em
poucos meses acumulou a chefia do governo eclesiástico, as tarefas de representação e
protocolo, assim como a política de bens culturais. São estas últimas atividades que
estabeleceram a fama que mantém-se até hoje de um homem que gostava de viver bem, com
refinamento e apurado gosto artístico.
José Roberto Teixeira Leite e Elisa Byington explicam que, valendo-se de
todo tipo de estratagemas, o cardeal conseguiu montar um panorama da arte italiana do
Renascimento, além de incentivar carreiras e colecionar todos os principais artistas de
sua época . Ao longo de 30 anos, Borthese reuniu obras de Boticelli, Leonardo da Vinci,
Tiziano, Veronese, Caravaggio, Rubens e Bernini, entre outros. Injusto atribuir tantas
conquistas somente à rapina. Além dos presentes enviados por quem queria conquistar-lhe
a benevolência, seu imenso poder facilitava as aquisições a bom preço , escrevem os
autores do livro, lembrando ainda as coleções trocadas por títulos e palácios.
Mecenato
Scipione Borghese era cuidadoso com a sua preciosa coleção. Não só construiu
um espaço para ela como escolhia temas (sacros ou mitológicos), relacionando tendências
não só da Itália, mas apontando a possibilidade de confronto com a arte flamenga devido
à aproximação de imagens com o mesmo motivo numa única sala. O Cardeal não se
limitava à caça da grande obra consagrada, ou à mera anexação de coleções já
formadas. Tinha tino e faro de mecenas com gosto para descobrir e antecipar tendências ,
afirmam os historiadores. O exemplo aqui é o incentivo ao jovem Gianlorenzo Benini, um
importante escultor barroco, inclusive sugerindo temas ( Metamorfoses , de Ovídio) ao seu
trabalho.
Com isso, cabe sublinhar o papel germinador que o ambiente artístico e
cultural cultivado por Scipione Borghese teve para o seu tempo e para a nascente estética
barroca. Superando a erudição da cultura antiquária habitualmente ligada ao
colecionismo, o gosto eclético do cardeal abria campo à imaginação e expressão de
novas formas , observam os autores. O sensualismo de algumas imagens causou espanto entre
alguns contemporâneos. De passagem por Roma, um cardeal de origem flamenga, habituado ao
rigor dos vizinhos luteranos, ficou chocado com o que viu e reclamou com o Papa. O
episódio provocou a proibição de parte de Paulo V de que a Villa continuasse a ser
visitada sem restrição. (EM)