A obra Galleria Borghese - Os
Tesouros do Cardeal, que terá duplo lançamento esta semana no Rio e em São Paulo,
consegue algo raro: tornar a grande arte acessível ao público leigo, aguçando o
interesse pelos grandes momentos da história da arte. Com textos claros, assinados por
Elisa Byington e José Roberto Teixeira Leite, a obra apresenta ao leitor brasileiro a
fascinante história do cardeal Scipione Borghese (1577-1633) e alguns dos tesouros que
pertencem à coleção iniciada em 1608 e que permanece praticamente intocada até os dias
de hoje.
Em meio às centenas de obras reunidas na
galeria romana - que Elisa Byington define como "uma síntese significativa da arte
italiana do Renascimento ao Barroco" e à qual foram agregados belos exemplos da arte
neoclássica - estão representados os grandes nomes da arte italiana. Ticiano, Rafael,
Canova, Caravaggio e Bernini são alguns dos autores reunidos nessa coleção, que tem sua
vida e obra apresentadas em grandes pinceladas ao longo do livro.
A escolha dos trabalhos retratados em Galleria Borghese (Berlendis &
Vertecchia Editores, 128 páginas, R$ 80) coube a Teixeira Leite, que também é o autor
dos verbetes sobre elas. O historiador confessa ter sido extremamente difícil enxugar
tantos séculos em poucas dezenas de obras, de forma acessível a todos os leitores. A
introdução do livro, na qual é feita uma bela análise da coleção e da biografia de
seu mentor, coube a Elisa Byington, historiadora brasileira que vive na Itália.
Uma figura fascinante, pouco culta, mas com um olhar privilegiado para as
artes, Scipione se notabilizava, como disse um diplomata veneziano contemporâneo,
"pela mediocridade de seus conhecimentos e por uma vida devotada, no essencial, ao
cultivo dos prazeres e do divertimento". Esse "bon vivant mais preocupado com as
coisas terrenas do que com as do céu", foi eternizado de forma perfeita por Bernini
um ano antes de sua morte, "provavelmente de apoplexia após um banquete",
brinca Teixeira Leite.
Indiscutivelmente, a grande estrela do livro (e da galeria) é Gianlorenzo
Bernini. Além de ser, segundo o historiador, "o maior escultor de todos os
tempos", sua história está intimamente relacionada à do cardeal Borghese, que teve
a perspicácia de identificar a genialidade do jovem artista. "Com o inigualável
virtuosismo que o distinguiria ao longo de sua longa carreira, Bernini faz jus às
expectativas do mecenas e empresta ao mármore tonalidades e texturas que ainda hoje nos
deixam boquiabertos", escreve Elisa Byington.
A publicação ricamente ilustrada com imagens feitas especialmente para
essa publicação pelo fotógrafo Michelangelo Princiotta - com a supervisão direta da
editora, Donatela Berlendis -, ao longo das madrugadas de julho do ano passado, mostra com
riqueza de detalhes a riqueza barroca de Bernini. A liberdade expressiva e a teatralidade
ficam evidente com o uso de fotos em diferentes ângulos da mesma obra ou de detalhes como
o que mostra os dedos de Plutão afundando nas costas de Proserpina, que nos faz esquecer
que os dois seres mitológicos são feitos de mármore e não de carne.
Outro eleito de Scipione, confirmando seu olhar extremamente aguçado para
as artes e sua preferência pela contemporaneidade, foi Caravaggio, representado por seis
obras na coleção. Duas delas são discutidas no livro. Rapaz com Cesto de Frutas é
anterior ao "tenebrismo caravaggesco, que caracterizaria para sempre a obra do
mestre", mas renova e coloca em destaque as naturezas-mortas.
Já David com Cabeça de Golias, de 1605 ou 1606, é um exemplo clássico
de sua intensidade dramática. Pintada durante seu exílio de Roma por ter assassinado um
homem, a tela teria sido enviada ao papa na tentativa de obter perdão, que só é
concedido em 1610, uma semana após sua morte.
Aumentando ainda mais o toque dramático dessa tela, Caravaggio teria dado
seus traços à cabeça decapitada de Golias.
Fascinante e repugnante ao mesmo tempo, o cardeal nepote (literalmente
cardeal-sobrinho, cargo ao qual foi alçado com apenas 27 anos por ser o preferido do papa
Paulo V, seu tio) usou diversas artimanhas para conseguir as obras que queria em sua
coleção. A Deposição de Rafael, por exemplo, foi retirada clandestinamente do altar da
Igreja de São Francisco de Perugia, onde repousava havia cem anos, e lhe foi entregue
como um "presente" do papa. E chegou a mandar para a cadeia o pintor Giuseppe de
Cesari, confiscando judicialmente sua rica coleção, de 107 obras, entre elas alguns
Caravaggios.
Convém ressaltar que Galleria Borghese é o primeiro livro a ser
publicado no mundo sobre essa coleção depois de sua reinauguração em 1997. A única
exceção é o catálogo oficial da mostra. Inicialmente, Donatela havia sido contatada
por um editor italiano para fazer um catálogo infanto-juvenil sobre a coleção, por
indicação da ONU em decorrência do trabalho que vem desenvolvendo nesse campo no
Brasil. Mas a parceria fracassou e a editora não quis desperdiçar o rico material que
já havia reunido. Conseguiu apoio do Ministério das Relações Exteriores da Itália e
pode em breve lançar a obra em italiano. Esse trabalho também pode dar origem a uma
série de livros sobre os museus que ressuscitaram recentemente.
É fascinante o fato de a coleção ter permanecido praticamente intacta -
os únicos trabalhos que deixaram o acervo foram as 344 obras "compradas" por
Napoleão Bonaparte e que hoje pertencem ao Louvre. Donatela lembra que no fim do século
passado, os Rotchilds tentaram, em vão, comprar uma única tela (Amor Sacro e Amor
Profano, de Ticiano) por um valor superior àquele pago pelo governo italiano aos
herdeiros do cardeal quando da integração da galeria ao patrimônio público. (Maria
Hirszman, OESP)