Teórico italiano diz que
cineasta foi mais importante como escritor e intelectual
Rodrigo Fonseca
Repórter do JB
SÃO PAULO
- Nem Fellini, nem De Sica e tampouco Michelangelo Antonioni. Jamais a a Itália
foi mostrada no cinema em toda sua essência como na obra de Pier Paolo Pasolini
(1922-1975). A afirmação pode parecer exagero, mas é a base da tese defendida por um
dos mais importantes teóricos da cultura italiana na atualidade, o escritor e professor
romano Alfonso Berardinelli, 59 anos. Especialista na obra poética de Pasolini e
admirador de seus filmes, ele está no Brasil para falar sobre o cineasta na 26ª Mostra
BR - Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que tem como um de seus mais saborosos
pratos uma retrospectiva do que de melhor produziu Pasolini, nascido há 80 anos em
Bolonha e assassinado brutalmente em 2 de novembro de 1975, supostamente por um garoto de
programa. O evento marca ainda o lançamento do livro Pier Paolo Pasolini, de Maria
Betânia Amoroso. Para compreender a importância de Pasolini - que produziu ensaios,
poemas, romances e enveredou pelo teatro -, Berardinelli, que debate hoje o tema Pasolini:
o poeta cívico, afirma que é preciso uma perspectiva mais ampla. Na entrevista que
segue, ele fala sobre marxismo, religião, sexualidade e outros assuntos associados a
Pasolini.
- O mito de Pasolini ainda vive hoje?
- Está muito vivo, mas é difícil de ser interpretado. Todos os
jovens que entram em contato com sua obra, à exceção dos alienados pela TV, sentem um
choque. A juventude ainda se pergunta como é possível usar o cinema da maneira como ele
usou.
- Como esse mito é cultuado pelos jovens?
- De um lado há uma espécie de culto público oficial. Ele é
político e acadêmico. Mas é um culto hipócrita. Do outro, há os espectadores jovens,
que descobrem através de seu cinema e de sua literatura tudo que ele pretendia realizar.
- De que forma o cinema de Pasolini expressa a essência da cultura
italiana?
- Não existiu, na segunda metade do século 20, nenhum intelectual
mais apaixona-damente italiano do que Pasolini. Seu cinema interpretou magnificamente o
espírito italiano, mais do que qualquer conterrâneo seu. A Itália de Fellini, por
exemplo, é universal. A que Pasolini amava era rural. De olhos abertos para a realidade,
ele usou o cinema como uma sonda para explorar questões daquela sociedade. Mostrou sua
miséria e sua decadência, criticou a homogeneização de sua cultura e a destruição de
valores religiosos provocada pela modernização burguesa.
- No cenário cultural italiano, a obra literária de Pasolini é
considerada tão importante como o cinema que ele produziu?
- Pasolini apareceu como um dos mais importantes autores italianos por
seu valor estético e crítico. E ainda é um dos nomes mais presentes, mais amados, mais
odiados da literatura na Itália. Só que fora do país, ainda é exclusivamente um
diretor. Não quero dramatizar, já que seus filmes são importantes, mas não há como
negar que, acima de tudo, ele é um escritor. Sua obra cinematográfica sinaliza isso.
Todos os diálogos, do personagem mais humilde ao mais intelectual, são extratos da mais
pura literatura.
- Então a maior arma de Pasolini era a palavra?
- A principal arma de Pasolini era sua capacidade de usar
contemporaneamente muitas armas. Era impossível delimitar um único ângulo em sua rota
cultural. Antes de ser poeta ou cineasta, ele era um intelectual. Quando fazia filmes,
criava grande impacto sobre o público. Ao mesmo tempo, fazia seus poemas. Sua maior
qualidade era transitar por todos os meios de comunicação. Além de haver uma relação
de osmose entre as artes com as quais se envolveu. Seu teatro era mais poesia que
dramaturgia, já sua poesia era muito teatral.
- Diferentemente do que acontecia com outros cineastas italianos,
mais preocupados com a forma, os filmes de Pasolini apresentam defeitos e imperfeições.
Como esses deslizes, a maioria propositais, se inte-gram à proposta do diretor?
- Como diretor, Pasolini era um artista que deixava a impressão de
não ter um controle amplo do meio cinematográfico. Às vezes, quando dirigia um jovem
ator e este aparecia em cena sorrindo na hora errada, Pasolini não se sentia embaraçado.
Não o repreendia. Ele não tinha a pretensão de alcançar uma imagem perfeita. Filmava
uma vez e aquela era a cena que valia. Pasolini não era um dominador, como Stanley
Kubrick ou Alfred Hitchcock. Queria registrar a realidade diante de seus olhos. Não
queria que seus filmes fossem uma caricatura dessa realidade.
(© JB Online)
Cineasta de atitudes polêmicas |
Pasolini conhecia pouco o marxismo. Não
era um teórico no assunto, embora quisesse ser marxista. Ele era atraído pela idéia de
que o poder e a riqueza são princípios de corrupção. Mas não aceitava o que realmente
conta nessa corrente de pensamento: o desenvolvi-mento da sociedade capitalista. Será
esse desenvolvi-mento o que permitirá a formação de uma classe operária forte que
romperá com a máquina do sistema. O pensamento de Pasolini era contra isso. - Essa posição apenas ilustra o quão contraditório ele era, não?
- Sua atitude contraditória foi politicamente negativa também. Ele
disse coisas corajosas. Até inaceitáveis. Foi contra o aborto, por exemplo, numa época
em que toda a esquerda era a favor. Disse que era preciso abolir as escolas para que a
juventude fosse libertada. Mas sempre procurou travar um diálogo com o Partido Comunista
Italiano, o que se explica pelo fato de o PCI ter exercido uma espécie de democracia que
valorizava as questões do povo.
(© JB Online) |