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Plano ambicioso procura evitar uma Atlântida moderna

19/10/2002

 

 

Por Zeeya Merali

   São 6h00 da manhã do dia de Ano Novo de 2001, na pitoresca cidade de Veneza, Itália. As sirenes fazem um barulho ensurdecedor na piazza, avisando a chegada iminente de marés altas. Os venezianos acordam de novo para a guerra contra as águas. É uma guerra que, no momento, estão perdendo. Veneza está afundando e pode estar submersa daqui a um século. Mas agora o Projeto Mose [também conhecido como Moisés, um controvertido plano de US$ 3 bilhões financiado pelo governo para manter Veneza fora d'água, recebeu finalmente o sinal verde das autoridades italianas. A construção de novas comportas para conter a inundação está planejada para começar em dezembro deste ano, depois de anos de falsos sinais de partida. Mas alguns cientistas ainda têm objeções ao projeto, dizendo que vai prejudicar os ecossistemas locais e que está condenado ao fracasso dentro de alguns anos se o nível do mar subir como previsto pelos modelos atuais de mudanças climáticas. Moisés talvez ainda tenha de subir algumas montanhas antes de salvar Veneza do mar.

A mudança da maré

   Para compreender melhor por que Veneza está numa situação tão crítica, seria bom pensar em sua história. Veneza é uma cidade edificada sobre estacas. Construída sobre 117 ilhotas no meio de uma lagoa que deságua no mar Adriático, a cidade tem origens que remontam à invasão de Átila, o huno, em 452. A população procurou refúgio nas ilhas da lagoa e, desde então, há séculos que os canais, cujo volume de água aumenta e diminui com as marés, protegem seus moradores. Em 810, as trincheiras aquáticas de Veneza bloquearam as forças de Pepino, um dos filhos de Carlos Magno, que assolaram a Itália, tomando cidades terrestres.

   Mas as águas que defenderam Veneza agora são a sua maior ameaça. Em 1966, um metro de água cobriu a cidade, levando o governo italiano a declarar que salvar Veneza era "uma questão de prioridade nacional". Nos anos que se seguiram, o Consorzio Venezia Nuova (CVN), o consórcio privado de engenheiros e arquitetos que está por trás do projeto das comportas para conter as inundações, foi fundado e encarregado de impedir que Veneza afunde.

Água, água por todos os lados

   Veneza está afundando mais de um centímetro por século. A Itália, como parte da placa geológica africana, está indo para o Norte, empurrando a placa européia. Isso está fazendo com que os Alpes se elevem e Veneza afunde. O problema foi exacerbado pelas indústrias que bombearam água subterrânea debaixo da cidade, com objetivos fabris e agrícolas, depois da Segunda Guerra Mundial. Essa prática - que foi interrompida na década de 1970 - levou a cidade a afundar 30 cm em duas décadas. Por causa disso, a famosa Praça de São Marcos, o centro da vida social veneziana, está a apenas cinco centímetros acima do nível normal da maré alta. A praça fica 10 centímetros submersa quando há inundações, o que acontece cerca de 100 vezes por ano. E as coisas estão piorando. Janeiro de 2001 viu a maior e mais prolongada enchente da história da cidade, que durou mais de 15 dias, com um oitavo da cidade embaixo d'água. Acrescente-se a isso que o nível previsto do mar está subindo devido ao aquecimento global, e o perigo de uma cidade afundar sem deixar vestígios torna-se tristemente claro.

A separação do mar

   Desde 1951, 90 mil pessoas foram embora de Veneza e as 60 mil que continuam aqui vivem com medo de uma repetição das enchentes de 1966. A solução do CVN é o projeto Mose (Modulo Sperimentale Elettromeccanico, ou Módulo Experimental Eletromecânico). Envolve a construção de uma série de 79 comportas móveis que vão separar a lagoa do mar Adriático quando a maré exceder de um metro a marca usual da maré alta. Comportas semelhantes estão sendo construídas em Londres e Roterdã, mas são grandes intrusões estéticas na paisagem. O governo italiano está inflexível no sentido de não permitir que o projeto de construção tenha um impacto negativo na paisagem de Veneza. Durante as marés normais, as comportas móveis de 300 toneladas devem ficar deitadas no fundo do mar, inativas e cheias de água, escondidas da vista. Quando for prevista uma maré de um metro, será injetado ar nas comportas, o que vai retirar a água de dentro delas, fazendo-as subir. Quando a maré baixar, as comportas serão enchidas novamente de água e voltarão a descansar no fundo do mar.

   As comportas móveis foram propostas pela primeira vez há mais de uma década; porque, então, foi preciso tanto tempo para serem aprovadas? A resposta é que o Projeto Mose teve de superar muitas objeções ambientais. O Partido Verde da Itália teme que o fechamento da lagoa durante longos períodos leve à sua estagnação, prejudicando a vida marinha. Para apaziguar os Verdes, o CVN fez muitos projetos complementares para defender a cidade com métodos alternativos, muitas vezes consertando os danos causados por medidas provisórias anteriores de conter as marés.

Erguer Veneza

   A maior ambição desse projeto é levantar as calçadas e praias das partes mais baixas da cidade à altura de um metro. Essa medida protegeria essas regiões vulneráveis dos níveis de enchente que forem altos o bastante para causar danos, mas baixos demais para ativar as comportas. Até agora, o CVN levantou 906 hectares de terra, 80% do que pretendia. Nesse caso, para que comportas móveis? Por que simplesmente não levantar a cidade ainda mais para protegê-la de inundações superiores a um metro? "Na Veneza histórica [que tem partes que remontam ao século XI], em particular, é difícil aumentar o nível das calçadas e, ao mesmo tempo, manter a função do prédio; diminui o tamanho da porta," responde Maria Teresa Brotto, uma engenheira do CVN. A Praça de São Marcos não pode ser levantada sem que sua aparência seja alterada de forma irrevogável - e inaceitável. Em vez disso, o CVN está levantando os aterros à sua volta e colocando uma membrana de barro à prova d'água embaixo da praça para impedir a água de subir pelo solo. E, acrescenta Brotto, "levantar calçadas é um projeto muito caro."

   A altura escolhida de um metro parece um bom acordo. Nesse nível, 5% da superfície da cidade devem ser levantados, a um custo de cerca de US$ 40 milhões. Mas, para erguer as calçadas em apenas mais 20 centímetros, os custos sobem vertiginosamente para US$ 2 bilhões, porque 30% da cidade precisariam ser levantados. As comportas móveis, por outro lado, vão proteger a cidade das inundações entre um e dois metros. E, sublinha Brotto, as comportas só vão entrar em ação cerca de sete vezes por ano, minimizando os efeitos sobre a vida marinha

A ameaça de obsolescência

   Mas será que as comportas vão ser suficientes se os níveis do mar subirem como o previsto por causa do aquecimento global? Não, diz Paolo Antonio Pirazzoli, um geofísico do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, que trabalhou como consultor da cidade de Veneza no projeto Mo.S.E. durante a década de 1990. No dia 14 de maio de 2002, em um número da revista Eos, publicada pela União Americana de Geofísica, ele acusou o CVN de não fazer cálculos realistas sobre o nível do mar no próximo século, contra o qual as comportas serão inúteis. Pirazzoli preocupa-se com o fato de o governo estar financiando uma solução superficial para melhorar sua imagem política. "Não sei se o sr. Berlusconi [o primeiro-ministro italiano] segue, no problema de Veneza, uma lógica muito diferente da do presidente Bush a respeito do problema dos gases que provocam o efeito estufa," diz ele. E prevê que a construção de US$ 3 bilhões vai ficar obsoleta em poucas décadas.

   Um estudo sobre o impacto ambiental, encomendado pelo CVN, chegou à conclusão oposta. Raphael Bras, do MIT, o principal pesquisador do estudo de 1997, afirma que as comportas têm condições de enfrentar um aumento de 50 centímetros nos próximos 100 anos, que é uma cifra maior que muitos modelos prevêem para o Adriático. Mas, contrapõe Pirazzoli, o estudo ignorou as chuvas, as descargas fluviais e os ventos que vão aumentar o nível da lagoa quando as comportas estiverem fechadas. "Isso simplesmente não é verdade," replica Bras. "Estudos hidrológicos independentes confirmaram que isso não é problema." E explica que a maioria dos rios de Veneza foram desviados para contornar a lagoa há 500 anos, de modo que o volume de águas fluviais que chega à lagoa é mínimo." "É algo inconcebível que esse ponto máximo [de chuvas e descargas fluviais] sequer chegue a coincidir com o ponto máximo das marés," diz Bras.

   Pirazzoli ainda não está convencido. Atualmente está preparando um artigo com quatro novos estudos de caso que, em sua opinião, vão mostrar que as comportas móveis não têm condições de enfrentar um aumento de nível de 50 centímetros. Também questiona os motivos pelos quais o grupo do MIT optou por examinar como a pior situação possível um aumento de 50 centímetros, quando o segundo relatório do IPCC, publicado em 1966, previa um aumento potencial do nível do mar de até 90 centímetros no ano de 2100. O terceiro relatório do IPCC, publicado em 2001, estima um aumento máximo de 88 centímetros. E, desse modo, o debate continua acaloradíssimo.

   Mas, por enquanto, parece que o governo italiano vai continuar financiando o projeto, que deve levar oito anos para ficar pronto. Para dizer o mínimo, vai ajudar a amenizar o sofrimento dos venezianos durante muitos anos depois que as comportas forem ativadas. E o CVN está confiante em relação ao desempenho das comportas contra os aumentos potenciais do nível do mar. Afinal de contas, diz Brotto com uma risada, "com um aumento de 20 centímetros, todas as outras partes da Itália estarão inundadas, mas não Veneza. Talvez Veneza seja a única cidade seca!"

(© Scientific American Brasil)

As Comportas Móveis Propostas

   As comportas móveis propostas impediriam que as águas inundassem Veneza.

   Enquanto os níveis da maré estiverem normais, as comportas ficam cheias de água e descansam no fundo do mar.

   Quando for previsto um aumento de 100 centímetros acima dos níveis médios da maré alta, o ar é injetado nas comportas, expulsando a água.

   Isso faz com que as comportas se levantem, separando a lagoa do mar Adriático.

   Quando os níveis de água baixarem, as comportas voltam para o fundo do mar.

 

(© Scientific American Brasil)


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