Por Zeeya Merali
São 6h00
da manhã do dia de Ano Novo de 2001, na pitoresca cidade de Veneza, Itália. As sirenes
fazem um barulho ensurdecedor na piazza, avisando a chegada iminente de marés altas. Os
venezianos acordam de novo para a guerra contra as águas. É uma guerra que, no momento,
estão perdendo. Veneza está afundando e pode estar submersa daqui a um século. Mas
agora o Projeto Mose [também conhecido como Moisés, um controvertido plano de US$ 3
bilhões financiado pelo governo para manter Veneza fora d'água, recebeu finalmente o
sinal verde das autoridades italianas. A construção de novas comportas para conter a
inundação está planejada para começar em dezembro deste ano, depois de anos de falsos
sinais de partida. Mas alguns cientistas ainda têm objeções ao projeto, dizendo que vai
prejudicar os ecossistemas locais e que está condenado ao fracasso dentro de alguns anos
se o nível do mar subir como previsto pelos modelos atuais de mudanças climáticas.
Moisés talvez ainda tenha de subir algumas montanhas antes de salvar Veneza do mar.
A mudança da maré
Para
compreender melhor por que Veneza está numa situação tão crítica, seria bom pensar em
sua história. Veneza é uma cidade edificada sobre estacas. Construída sobre 117 ilhotas
no meio de uma lagoa que deságua no mar Adriático, a cidade tem origens que remontam à
invasão de Átila, o huno, em 452. A população procurou refúgio nas ilhas da lagoa e,
desde então, há séculos que os canais, cujo volume de água aumenta e diminui com as
marés, protegem seus moradores. Em 810, as trincheiras aquáticas de Veneza bloquearam as
forças de Pepino, um dos filhos de Carlos Magno, que assolaram a Itália, tomando cidades
terrestres.
Mas as águas que
defenderam Veneza agora são a sua maior ameaça. Em 1966, um metro de água cobriu a
cidade, levando o governo italiano a declarar que salvar Veneza era "uma questão de
prioridade nacional". Nos anos que se seguiram, o Consorzio Venezia Nuova (CVN), o
consórcio privado de engenheiros e arquitetos que está por trás do projeto das
comportas para conter as inundações, foi fundado e encarregado de impedir que Veneza
afunde.
Água, água por todos os
lados
Veneza está afundando
mais de um centímetro por século. A Itália, como parte da placa geológica africana,
está indo para o Norte, empurrando a placa européia. Isso está fazendo com que os Alpes
se elevem e Veneza afunde. O problema foi exacerbado pelas indústrias que bombearam água
subterrânea debaixo da cidade, com objetivos fabris e agrícolas, depois da Segunda
Guerra Mundial. Essa prática - que foi interrompida na década de 1970 - levou a cidade a
afundar 30 cm em duas décadas. Por causa disso, a famosa Praça de São Marcos, o centro
da vida social veneziana, está a apenas cinco centímetros acima do nível normal da
maré alta. A praça fica 10 centímetros submersa quando há inundações, o que acontece
cerca de 100 vezes por ano. E as coisas estão piorando. Janeiro de 2001 viu a maior e
mais prolongada enchente da história da cidade, que durou mais de 15 dias, com um oitavo
da cidade embaixo d'água. Acrescente-se a isso que o nível previsto do mar está subindo
devido ao aquecimento global, e o perigo de uma cidade afundar sem deixar vestígios
torna-se tristemente claro.
A separação do mar
Desde 1951, 90 mil
pessoas foram embora de Veneza e as 60 mil que continuam aqui vivem com medo de uma
repetição das enchentes de 1966. A solução do CVN é o projeto Mose (Modulo
Sperimentale Elettromeccanico, ou Módulo Experimental Eletromecânico). Envolve a
construção de uma série de 79 comportas móveis que vão separar a lagoa do mar
Adriático quando a maré exceder de um metro a marca usual da maré alta. Comportas
semelhantes estão sendo construídas em Londres e Roterdã, mas são grandes intrusões
estéticas na paisagem. O governo italiano está inflexível no sentido de não permitir
que o projeto de construção tenha um impacto negativo na paisagem de Veneza. Durante as
marés normais, as comportas móveis de 300 toneladas devem ficar deitadas no fundo do
mar, inativas e cheias de água, escondidas da vista. Quando for prevista uma maré de um
metro, será injetado ar nas comportas, o que vai retirar a água de dentro delas,
fazendo-as subir. Quando a maré baixar, as comportas serão enchidas novamente de água e
voltarão a descansar no fundo do mar.
As comportas móveis
foram propostas pela primeira vez há mais de uma década; porque, então, foi preciso
tanto tempo para serem aprovadas? A resposta é que o Projeto Mose teve de superar muitas
objeções ambientais. O Partido Verde da Itália teme que o fechamento da lagoa durante
longos períodos leve à sua estagnação, prejudicando a vida marinha. Para apaziguar os
Verdes, o CVN fez muitos projetos complementares para defender a cidade com métodos
alternativos, muitas vezes consertando os danos causados por medidas provisórias
anteriores de conter as marés.
Erguer Veneza
A maior ambição desse
projeto é levantar as calçadas e praias das partes mais baixas da cidade à altura de um
metro. Essa medida protegeria essas regiões vulneráveis dos níveis de enchente que
forem altos o bastante para causar danos, mas baixos demais para ativar as comportas. Até
agora, o CVN levantou 906 hectares de terra, 80% do que pretendia. Nesse caso, para que
comportas móveis? Por que simplesmente não levantar a cidade ainda mais para protegê-la
de inundações superiores a um metro? "Na Veneza histórica [que tem partes que
remontam ao século XI], em particular, é difícil aumentar o nível das calçadas e, ao
mesmo tempo, manter a função do prédio; diminui o tamanho da porta," responde
Maria Teresa Brotto, uma engenheira do CVN. A Praça de São Marcos não pode ser
levantada sem que sua aparência seja alterada de forma irrevogável - e inaceitável. Em
vez disso, o CVN está levantando os aterros à sua volta e colocando uma membrana de
barro à prova d'água embaixo da praça para impedir a água de subir pelo solo. E,
acrescenta Brotto, "levantar calçadas é um projeto muito caro."
A altura escolhida de
um metro parece um bom acordo. Nesse nível, 5% da superfície da cidade devem ser
levantados, a um custo de cerca de US$ 40 milhões. Mas, para erguer as calçadas em
apenas mais 20 centímetros, os custos sobem vertiginosamente para US$ 2 bilhões, porque
30% da cidade precisariam ser levantados. As comportas móveis, por outro lado, vão
proteger a cidade das inundações entre um e dois metros. E, sublinha Brotto, as
comportas só vão entrar em ação cerca de sete vezes por ano, minimizando os efeitos
sobre a vida marinha
A ameaça de obsolescência
Mas
será que as comportas vão ser suficientes se os níveis do mar subirem como o previsto
por causa do aquecimento global? Não, diz Paolo Antonio Pirazzoli, um geofísico do
Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, que trabalhou como consultor da cidade
de Veneza no projeto Mo.S.E. durante a década de 1990. No dia 14 de maio de 2002, em um
número da revista Eos, publicada pela União Americana de Geofísica, ele acusou o CVN de
não fazer cálculos realistas sobre o nível do mar no próximo século, contra o qual as
comportas serão inúteis. Pirazzoli preocupa-se com o fato de o governo estar financiando
uma solução superficial para melhorar sua imagem política. "Não sei se o sr.
Berlusconi [o primeiro-ministro italiano] segue, no problema de Veneza, uma lógica muito
diferente da do presidente Bush a respeito do problema dos gases que provocam o efeito
estufa," diz ele. E prevê que a construção de US$ 3 bilhões vai ficar obsoleta em
poucas décadas.
Um estudo sobre o
impacto ambiental, encomendado pelo CVN, chegou à conclusão oposta. Raphael Bras, do
MIT, o principal pesquisador do estudo de 1997, afirma que as comportas têm condições
de enfrentar um aumento de 50 centímetros nos próximos 100 anos, que é uma cifra maior
que muitos modelos prevêem para o Adriático. Mas, contrapõe Pirazzoli, o estudo ignorou
as chuvas, as descargas fluviais e os ventos que vão aumentar o nível da lagoa quando as
comportas estiverem fechadas. "Isso simplesmente não é verdade," replica Bras.
"Estudos hidrológicos independentes confirmaram que isso não é problema." E
explica que a maioria dos rios de Veneza foram desviados para contornar a lagoa há 500
anos, de modo que o volume de águas fluviais que chega à lagoa é mínimo."
"É algo inconcebível que esse ponto máximo [de chuvas e descargas fluviais] sequer
chegue a coincidir com o ponto máximo das marés," diz Bras.
Pirazzoli ainda não
está convencido. Atualmente está preparando um artigo com quatro novos estudos de caso
que, em sua opinião, vão mostrar que as comportas móveis não têm condições de
enfrentar um aumento de nível de 50 centímetros. Também questiona os motivos pelos
quais o grupo do MIT optou por examinar como a pior situação possível um aumento de 50
centímetros, quando o segundo relatório do IPCC, publicado em 1966, previa um aumento
potencial do nível do mar de até 90 centímetros no ano de 2100. O terceiro relatório
do IPCC, publicado em 2001, estima um aumento máximo de 88 centímetros. E, desse modo, o
debate continua acaloradíssimo.
Mas, por enquanto,
parece que o governo italiano vai continuar financiando o projeto, que deve levar oito
anos para ficar pronto. Para dizer o mínimo, vai ajudar a amenizar o sofrimento dos
venezianos durante muitos anos depois que as comportas forem ativadas. E o CVN está
confiante em relação ao desempenho das comportas contra os aumentos potenciais do nível
do mar. Afinal de contas, diz Brotto com uma risada, "com um aumento de 20
centímetros, todas as outras partes da Itália estarão inundadas, mas não Veneza.
Talvez Veneza seja a única cidade seca!"
(© Scientific American Brasil)
As Comportas
Móveis Propostas |
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As
comportas móveis propostas impediriam que as águas inundassem Veneza. Enquanto os níveis da maré
estiverem normais, as comportas ficam cheias de água e descansam no fundo do mar.
Quando for previsto
um aumento de 100 centímetros acima dos níveis médios da maré alta, o ar é injetado
nas comportas, expulsando a água.
Isso faz com que as
comportas se levantem, separando a lagoa do mar Adriático.
Quando os níveis de
água baixarem, as comportas voltam para o fundo do mar.
(© Scientific American Brasil) |
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