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Notizie d'Italia

 

Um Pasolini completo e aberto aos paradoxos

11/10/2002

Pasolini: decisivo na cena cultural italiana

 


Mostra revela uma obra cheia de contradições e, no entanto, coerente e orgânica

LUIZ ZANIN ORICCHIO

   A apresentação de "todo" Pasolini, como promete a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, revela um autor orgânico apesar de paradoxal. Em sua obra, tudo faz sentido, do primeiro longa-metragem, Desajuste Social, de 1961, ao último, Saló ou Os 120 Dias de Sodoma, de 1975.

   Essa constatação tem a ver com a postura humanística e política de Pier Paolo Pasolini, artista que hoje se chamaria de um multimídia - era prosador, poeta, repórter, articulista, pintor, e "também" cineasta. Quer dizer, o cinema era um meio de expressão, entre outros. E esse meio lhe servia para dar forma a uma posição determinada diante do mundo. Posição de esquerda, porém fora da esquerda oficial. Libertária do ponto de vista sexual, provocativa em política, conservadora na religião. O cinema era um veículo para um modo heterodoxo de estar no mundo e assim não surpreende que, depois de encerrada, sua carreira revele a inusitada inteireza de quem nunca fez nada por conveniência pessoal ou comercial.  

   Primeiro, há o Pasolini que emerge do neo-realismo do após-guerra e mescla temas sociais a um cristianismo popular muito à sua feição. Ele é um retratista de primeira da periferia romana, como se vê em Desajuste Social (ou Accatone, que é como todo mundo conhece seu filme de estréia), e Mamma Roma, o segundo longa-metragem. Temos aí a Itália plebéia, imersa na pobreza, ou mesmo na degradação, porém digna, forte, alegre, católica - a grande figura que é Anna Magnani como a mater dolorosa de periferia de Mamma Roma resume em sua personagem essas características díspares.

   O catolicismo bem particular de Pasolini está na maneira como interpreta seu Evangelho Segundo São Mateus. Um Cristo revolucionário, verdade, em nada contrário a posições mais liberais da Igreja, que no entanto não podia aceitar as políticas do artista nem suas opções no campo sexual.

   Ao mesmo tempo em que causava certa perplexidade na Igreja, ele não descurava de sua crítica política, a mais ostensiva delas sendo dirigida à esquerda com Gaviões e Passarinhos, com Totò e Ninetto Davoli nos papéis principais. Deve-se levar em conta que este filme é de 1966, vive-se em plena guerra fria, com posições bipolares muito bem delimitadas. O sujeito ou era de esquerda ou de direita, convicções inconciliáveis, com mais razão quando se é um intelectual, e ainda por cima italiano. Pois bem, Pasolini era de esquerda, mas flertava com um comunismo primitivo, talvez inspirado nos primeiros cristãos. Homossexual assumido, escandalizava progressistas com sua desaprovação ao aborto. E acusava impiedosamente a esquerda de falta de imaginação e comodismos mentais pequeno-burgueses.    

   Em Gaviões e Passarinhos, Totò e Ninetto põem o pé na estrada e são acompanhados por um corvo falante que faz as vezes de intelectual de esquerda. No final, Totò, faminto, resolve jantar o corvo. Mata a fome e livra-se da tagarelice do "ideólogo". Era assim que Pasolini via as relações de incompreensão entre os sabichões e o povo, sendo ele próprio, por paradoxo, um intelectual.   

   O fato é que Pasolini queria captar o discurso do povo e não fazer um discurso sobre o povo. Seus filmes mostram a disposição de encontrar esse elã, essa força primitiva que viria dos estratos populares, livre de contaminação da cultura de elite. Forças primais, as forças da saúde - o sexo, a fome, o riso, o prazer em todas as suas formas, mesmo as mais escatológicas.

   Assim, em Teorema, é a sexualidade que vem desarranjar a sonolenta estabilidade da família burguesa. Da mesma forma, os filmes míticos, como Medéia e Édipo Rei, seriam buscas de salvação na Antiguidade, na era não comprometida pela Revolução Industrial, pela divisão social do trabalho, pela luta de classes sem-fim. Na época trágica dos gregos ainda haveria alguma esperança no homem. Como havia na Idade Média de Decameron, dos Contos de Canterbury, das Mil e Uma Noites. Enfim, não é por acaso que na assim chamada Trilogia da Vida Pasolini lance seu olhar para o medievo. O homem moderno acostumou-se a tratar com desdém a Idade Média, chamando-a de época das trevas. Pois para Pasolini, a idade da escuridão era esta, a nossa, a do capitalismo feroz e da sociedade de consumo.

   Essa profecia do caos, ele a realizou por completo no filme que acabou ficando como seu testamento, Salò, no qual identifica o fascismo com a obra de Sade. Ele fala da cidade de Salò, onde Mussolini fundou a República Social Italiana, sob proteção alemã, em 1943, já no epílogo da sua aventura.

   Mas não se trata apenas da evocação de um episódio histórico. No início dos anos 70, Pasolini evoca o Duce para dizer que o verdadeiro fascismo começava então; tudo o que havia sido visto antes, mesmo sob Mussolini, lhe parecia coisa de criança. O filme é trágico, profético, inassimilável. Difícil de ser visto, porém fundamental.

   Esse, o Pasolini obrigatório. Mas, para o cinéfilo, uma dica, caso a retrospectiva seja realmente completa: não deixe de ver Che Cosa Sono le Nuvole?, episódio de Capricho à Italiana. É mais um trabalho com Totò, o gênio napolitano da comédia e da mímica, que sabia como ninguém que o riso faz fronteira com o choro. Interpretando um boneco animado que quando se torna imprestável é jogado no lixo, Totò, e Pasolini, que o dirige, atingem o sublime. Nada menos.

(© O Estado de S. Paulo)


Provocador obcecado pelo real e pelo anticonsumismo

LUIZ CARLOS MERTEN

   Talvez, e vai nisso alguma provocação, o melhor filme de Pier Paolo Pasolini tenha sido realizado por Mauro Bolognini - o magnífico A Longa Noite de Loucuras (La Notte Brava), de 1959, que já traz embutido o tema dos 'ragazzi di vita'. O próprio Pasolini só estreou na direção dois anos mais tarde, com Desajuste Social, mas seu primeiro filme realmente importante foi Mama Roma, de 1962, que lança as bases do seu cinema de poesia e, propondo uma espécie de neo-neo-realismo, promove a redivinização de Anna Magnani.

   Pasolini nunca foi uma unanimidade, mas foi, incontestavelmente, um personagem decisivo da cena cultural italiana e não apenas da cinematográfica.

   Como Glauber Rocha no Brasil, ele foi acima de tudo um agitador.

   Revolucionou - e talvez tenha convulsionado - a estética e a política.

   Marxista cristianizado, provocou escândalo ao assumir publicamente seu marxismo e isso numa época em que até as preferências sexuais do Conde Vermelho - Luchino Visconti - eram vistas com reserva pelos companheiros do Partido Comunista. Carlo Lizzani conta do constrangimento quando houve o plebiscito, na Itália pós-fascista, para definir o regime político a ser instaurado no país e os comunistas faziam campanha contra o 'frouxo' (sinônimo de gay na Itália) aspirante a rei. Visconti subiu a mais de um palanque e ouviu o desaforo que engolia como sapo, em nome do avanço da classe trabalhadora.

   Pasolini não era Visconti. Vindo do meio operário, poeta, escancarou sua homossexualidade como uma provocação e levou até onde podia uma guerra interna dentro do PC Italiano para dobrar, o que não conseguiu, o machismo dos 'camaradas', que identificam o vício, pois era um vício para eles, como decadência burguesa. Pasolini foi roteirista de Federico Fellini e do já citado Bolognini. Para o primeiro escreveu principalmente As Noites de Cabíria, no qual seu nome divide o crédito do roteiro com o felliniano Tulio Pinelli, mas não são poucos os críticos que supervalorizam a contribuição de Pasolini, vendo sua marca no episódio daquele homem que distribui alimento aos sem-teto, na noite de Roma. Seria o típico santo pasoliniano, mas isso seria negar que já era santo o protagonista masculino de O Milagre, que Fellini escreveu e interpretou para Roberto Rossellini, anos (quase uma década) antes de Cabíria.

   Para Bolognini, além de A Longa Noite de Loucuras, Pasolini escreveu também O Belo Antônio e Um Dia de Enlouquecer, contando a história de outro ragazzo di vita. Seus primeiros filmes tratam obsessivamente do tema da prostituição, masculina e feminina, e Pasolini trata o assunto na dupla perspectiva do cristianismo e do marxismo. Essa síntese continuou em O Evangelho Segundo Mateus, em que ele - um marxista - contou a história de Jesus Cristo. A polêmica foi intensa no arraial comunista, mas, desta vez, Pasolini ganhou o apoio dos católicos.

   Com Édipo Rei, fundiu marxismo e psicanálise e iniciou uma discussão sobre o mito que prosseguiu em Teorema e na sua Medéia, interpretada pela magnífica Maria Callas. A cena pós-assassinato dos filhos, quando ela vaga interrogando o sol e a lua, é uma rara experiência estética. Até por ser poeta, escritor e cineasta, Pasolini tinha de preocupar-se com a questão estética, que não se restringia para ele ao cinema. Era atraído pela diversidade das linguagens e se o cinema lhe interessava mais era porque Pasolini o considerava mais próximo do real, o verdadeiro alvo de suas pesquisas.

   Nunca deixou de provocar polêmicas, até seu brutal assassinato, em 1975, e isso porque radicalizou, como poucos pensadores, o discurso anticonsumista e antifascista. Teve a intuição do que seria o mundo globalizado e o criticou com veemência. É esse seu maior legado. Decorridos quase 30 anos de sua morte, Pasolini continua sendo uma dessas vozes incômodas que rompem o coro dos conformistas.

(© O Estado de S. Paulo)


Mostra de Cinema homenageia Pasolini

Haverá uma retrospectiva completa, com 26 filmes, entre longas e curtas em cópias novas. Além do lançamento do livro Pier Paolo Pasolini, de Maria Betânia Amoroso, no dia 24

   São Paulo - O escritor, crítico e cineasta Pier Paolo Pasolini dizia amar a vida de maneira tão desesperada que temia pelo seu fim. Premonitório, ele acabou cruelmente assassinado na periferia de Roma por um garoto de programa: rosto desfigurado, ossos quebrados pelos pneus de seu próprio carro. Passados quase 27 anos (o crime aconteceu a 2 de novembro de 1975, quando Pasolini estava com 53 anos), o mundo ainda não absorveu seu desaparecimento graças à atualidade das idéias que pregava.

   Pasolini será um dos principais homenageados da 26.ª Mostra BR de Cinema em São Paulo, que começa na quarta-feira, com o show da banda Leningrad Cowboys, e cujas permanentes e ingressos especiais estão à venda a partir deste sábado, na Central da Mostra, no Conjunto Nacional (Av. Paulista 2.073, Cerqueira César). Graças a um acordo com a Associazone Fondo Pier Paolo Pasolini, será exibida uma retrospectiva completa, com 26 filmes (entre longas e curtas) em cópias novas.

   O complexo universo de idéias do cineasta bolonhês é tema também do livro Pier Paolo Pasolini (Cosac & Naify, 128 páginas, R$ 15), da estudiosa Maria Betânia Amoroso, que será lançado no dia 24, a partir das 19h30, na sala UOL. Na ocasião, será exibido o filme Teorema e, em seguida, ocorre um debate com a participação da autora, da atriz Laura Betti (presidente da Associazone), do crítico literário Alfonso Berardinelli, do embaixador Arnaldo Carrilho (diretor da Rio Filme) e do jornalista Maurício Santana Dias.

   "Pasolini foi um crítico radical da sociedade de seu tempo", afirma Maria Betânia, cujo livro marca o início da parceria entre a Cosac & Naify e a Mostra Internacional de Cinema. "Ele foi um dos que, por primeiro, souberam enxergar a virada irreversível do mundo."

   Diagnosticador - Professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Maria Betânia preferiu tratar, entre as várias facetas de Pasolini, a do "diagnosticador" dos tempos que viriam, ressaltando os dois pontos que ele defendeu ao longo da vida: "O primeiro é que, para ele, o mundo está constituído de forças contrastantes, sem que, todavia, isso signifique o conformismo estéril; e o segundo é que a arte exige conhecimento prévio e técnico, não sendo ato de pura vontade nem dom natural. Quando fez crítica à ideologia, nunca foi cínico."

   Em linhas precisas, Maria Betânia narra as primeiras experiências literárias de Pasolini e a confiança em um marxismo entendido como arma contra a forma de vida ascética e cínica da burguesia italiana até se tornar cineasta com Desajuste Social (1961). A exibição de terrenos baldios, mulheres que se prostituem e bares paupérrimos conferem ao filme uma apressada classificação à tradição neo-realista italiana. Há, porém, diferenças marcantes - "enquanto o cinema neo-realista evitava programaticamente qualquer estetização, procurando se prender a um tom e um estilo sóbrios, Pasolini, partindo da mesma realidade, procurava lhe dar uma dimensão grandiosa, épica, acrescentando um caráter mítico ao que seria uma intenção quase documentarista do cinema anterior", escreve.

   A falta de experiência no cinema é compensada pela sólida cultura adquirida. "Por isso é um cinema tão intelectualizado e, ao menos nos filmes dos anos 60, a imagem é mais tributária dos quadros de pintores de sua preferência como Pontormo, Rosso Fiorentino, Piero della Francesca, do que do próprio cinema." Daí a presença sempre constante do viés crítico, seja nos ensaios e poesias, seja no cinema e na dramaturgia. Mas Maria Betânia observa que, embora seja possível reconhecer alguns pontos fortes, insistentes, em toda sua obra, cada filme, cada romance, cada teorização tem a autonomia que a linguagem cinematográfica, literária e o ensaísmo proporcionam.

   Pasolini escreveu muito. A obra completa, que está sendo publicada pela editora italiana Mondadori terá, no total, cerca de 5 mil páginas. Além dos romances, dos inúmeros livros de poesia e da crítica literária, fez teoria da língua italiana, da literatura italiana, da linguagem cinematográfica e teve uma atuação intensa como jornalista nos anos 70. Nesse período, produziu os textos mais radicais. São textos de crítica da cultura e da sociedade.

   Dos chamados "escritos corsários", Maria Betânia destaca em seu livro o célebre poema "O PCI aos Jovens!", de 1968, traduzido por Michel Lahud, no qual o autor se posicionou contra os estudantes filhos de burgueses que nas escaramuças de rua atacavam os policiais "vestidos de palhaço pelas autoridades" e explorados com baixos salários.

   Pasolini criticava a nova Itália, uma cultura de homens que só pensavam em produzir e consumir, seguindo à risca os dogmas da nova sociedade, em lugar da diversidade cultural, comportamental e lingüística. "O novo homem italiano estava, para ele, obcecado em adquirir bens e status." O jovem, o casal, o homossexual são exemplos de consumidores. Para o crítico, de frágeis cidadãos de uma república malformada, eles se transformaram em consumidores neuróticos.

   Maria Betânia analisa a formação do pensamento de Pasolini como um vaso comunicante: tudo alimenta tudo. "Estudei o livro dele que reúne a crítica literária que fez, escrevendo semanalmente para jornal. O livro é Descrizioni di Descrizioni ("Descrição de Descrições"). Enquanto escreve as críticas, que são sobre textos literários publicados recentemente, está filmando Salò e escrevendo o romance Petrolio. Embora com resultados totalmente diversos, as três obras se alimentam, e se encontram trechos da crítica no romance (inacabado, aliás, porque ele morre em 75) e a mesma preocupação quanto aos rumos da sociedade italiana tanto no livro de crítica como no romance, como no filme", comenta. "Mas, insisto, cada um deles será melhor compreendido se visto a partir das especificidades de suas linguagens." Ubiratan Brasil

(© estadao.com.br) 

O herege santificado
+ cinema

O crítico italiano, que falará em SP no próximo dia 25, discute a Grécia "bárbara" criada por Pasolini e a herança contraditória de seus filmes

Susana Kampff Lages
especial para a Folha

   Massimo Fusillo é helenista de formação e professor de literatura comparada da Università dell'Aquila (Itália). Estudioso não apenas da literatura antiga, mas também de temas que envolvem a permanência da Antiguidade clássica na literatura e na arte da modernidade, o trabalho de Fusillo se destaca pela ampla erudição e pela extraordinária capacidade de reler em chave contemporânea temas e textos antigos.

   Vai nesse sentido atualizador a leitura que ele faz do cinema de Pier Paolo Pasolini (1922-75). Para Fusillo, Pasolini constrói na sua filmografia uma "Grécia bárbara", despojada de toda frieza racionalista ou contenção neoclássica -uma Grécia mítica, mágica, passional.
Autor de "La Grecia secondo Pasolini" e "L'Altro e lo Stesso - Teoria e Storia del Doppio" (ambos pela ed. La Nuova Italia), Fusillo participará de debate no próximo dia 25, em local e hora ainda não definidos, a convite da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que exibirá retrospectiva do cineasta (mais informações no site www.mostra.org).

Pode-se dizer que Pasolini busca, por uma metamorfose do texto literário, refazer as próprias origens narrativas do cinema? Seria a busca das origens um/o grande tema pasoliniano?

Mesmo levando em conta o caráter poliédrico de temas e de linguagens por ele utilizados, a busca das origens é certamente um grande tema de Pasolini, sobretudo se se entende por origem uma sacralidade e uma poeticidade inerente às próprias coisas. Nos filmes sobre o mito, Pasolini procura remontar às origens rituais da tragédia grega, antes da intervenção racionalista do logos.

Qual seria o papel dos dialetos no processo criativo pasoliniano? Sinalizaria o seu uso dos dialetos um desejo de retorno à origem ou, antes, um desejo utópico?

Há um fio condutor que une o dialeto friulano [da região de Friuli] dos primeiros poemas, o caráter romanesco dos romances e a assim chamada conversão ao cinema -todas opções criativas que pretendem superar o convencionalismo asfixiante da linguagem, encontrar uma expressividade corpórea, imediata. Por trás disso, há mitologias decadentes, mas há também a influência da antropologia: seja pelo interesse pelas culturas locais, seja pela exaltação das linguagens não-verbais (gesto, música, rito).

O sr. escreveu um livro inteiro sobre "A Grécia segundo Pasolini". Qual seria a definição mais sintética dessa tão singular topografia pasoliniana?

Usei a fórmula "Grécia bárbara", o que soa contraditório, mas que traz a idéia de uma classicidade nada olímpica (Pasolini dizia que "barbárie" era a palavra que mais amava no mundo). A Grécia para ele é metáfora de uma antiquíssima civilização agrária, cíclica e não linear como a cristã; a própria cultura camponesa que ele defendia na Itália contra a modernização selvagem do neocapitalismo.

Há um fundo comum entre o gesto da apropriação pasoliniana da tradição literária grega (por exemplo, na sua trilogia "clássica": "Medéia", "Édipo Rei" e a "Orestíada") e de temas bíblicos (em "O Evangelho segundo São Mateus")? Ou haverá sobretudo diferenças?

Não há grandes diferenças. O fundo comum é, como disse, a cultura camponesa. Não por acaso o "Evangelho" foi rodado num lugar de memória cultural extraordinário como a região das pedras de Matera, lugar-símbolo de uma cultura extremamente arcaica, mágico-sacral, na Lucânia (sul da Itália), um lugar pouco integrado ao sistema nacional italiano que foi objeto de estudo do nosso famoso antropólogo Ernesto de Martino.

O sr. escreveu um livro de grande erudição sobre o tema do duplo na literatura ocidental. Quais seriam os duplos de Pasolini nas tradições italiana e européia?

Na tradição literária italiana, primeiramente Dante, tanto como símbolo quanto como modelo de uma expressividade dissonante, "plurilinguística". Na "Divina Mímese", obra póstuma publicada logo após a sua morte, Dante é realmente um duplo de Pasolini. E Giovanni Pascoli, a quem dedicou sua tese de graduação e com quem comunga a forte tendência ao retorno e à simbiose com o corpo materno. Duplo especular pode ser considerado D'Annunzio, poeta que Pasolini detestava, mas com quem tem aspectos em comum, entre eles o fato de saber brincar com a própria figura pública. Na tradição européia, o poeta preferido foi sempre Rimbaud, por seu caráter visionário, mas há afinidades com outros poetas: Mandelstam ou Pound, por exemplo. Menos previsível, mas muito incisiva, foi a relação com Proust, sobretudo pelo aspecto infinitamente desejável e a desesperada "inaferrabilidade" do real -tema intimamente ligado, no nível da forma, a uma certa infinitude estrutural. Não por acaso o último Pasolini privilegia a forma do projeto: em "Notas para uma Orestéia Africana", "Notas para um Filme sobre a Índia", nos poemas das últimas coletâneas, no romance inacabado "Petróleo", pensado como obra em fragmentos.

Qual a ligação de Pasolini com o decadentismo literário?

Ligação profunda: exotismo, barbárie, imediaticidade corpórea, poética pictórica -núcleos temáticos de origem decadentista. Ainda que o decadentismo de Pasolini seja sempre relido pelo filtro da antropologia e da psicanálise, modelos racionais de leitura do real que, como o marxismo, jamais foram abandonados, apesar de crises recorrentes. A barbárie torna-se em Pasolini uma forma de vida, um modelo de mundo, e não uma evasão irracionalista.

Pasolini foi definido pela crítica um herético: dissidente, rebelde, iconoclasta. Marxista inspirado pelo cristianismo primitivo, homossexual declarado numa época "politicamente incorreta". Hoje o que se pode dizer desta carga contraditória? Não o terá reabsorvido o cânone?

Talvez, em parte, sim. A Itália, país que o perseguiu por décadas, hoje tende a santificá-lo. Muito de seu sucesso internacional também se deve a uma cultura do "politicamente correto", algo que lhe era muito estranho. Hoje ninguém mais se escandalizará com a coexistência de marxismo e paixão pelo Evangelho, como ocorreu na época, sobretudo dentro da esquerda francesa. Quanto à homossexualidade, haveria muitíssimo a dizer: Pasolini tornou-se homossexual declarado não por opção, mas devido a um processo por corrupção de menores que o exilou da sua região, o Friuli, e do Partido Comunista. Hoje, a quase 30 anos de sua morte, pode-se dizer que o fenômeno tantas vezes por ele denunciado nas vanguardas, isto é, a tendência de a mídia absorver as transgressões, o envolveu também (e isso era inevitável). Mas o sucesso da sua obra em esferas culturais tão distantes testemunha também, creio, a sua capacidade de transfigurar a carga de contradições: de transformar o "escândalo de contradizer-me" numa fonte inesgotável de criatividade.


Susana Kampff Lages é professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autora de "Walter Benjamin - Tradução e Melancolia" (Edusp).

(© Folha de S. Paulo)

 

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