A chegada, para quem vai de carro ou de ônibus, é uma
surpresa que se contempla com o queixo no colo. Depois de atravessar a paisagem solitária
das montanhas do centro da Itália, o viajante é surpreendido pela aparição repentina
no fundo do cenário, entre dois montes que margeiam a estrada: Scanno. Escondida a mais
de mil metros acima do nível do mar, uma pequena cidade congelada no tempo desde a
época, há muitos séculos, em que o país fazia parte do reino dos Bourbon.
Essa foi a visão que enfeitiçou o fotógrafo Henry Cartier Bresson, há
meio século, e o fez produzir algumas das mais belas fotos que se conhecem. Imagens que
logo se espalharam pelo mundo e tiraram Scanno do anonimato.
Não é exagero dizer que ela é uma imagem congelada no tempo. Certos
lugares convivem bem com o frio. Scanno vai mais longe: precisa do frio para ser bem
desfrutada. As casas, com seus telhados nevados, são grudadas umas nas outras ao longo de
escadarias empinadas que sobem e descem sem método, mas sempre conduzem a algum monumento
histórico.
O mais famoso deles é a Igreja de Santa Maria della Valle, que os
documentos atestam existir desde o século 12. Trabalhos de restauração feitos
recentemente descobriram uma rara pintura mostrando a cena de Jesus nos braços de Maria,
depois de baixado da cruz. Os turistas contemplam a pintura, extasiados, sem saber se a
ênfase está na dor da mãe pela perda do filho ou no escândalo do Deus morto sob
tortura. O afresco, explica o guia turístico, é obra de algum talento da Renascença,
aquele momento entre os séculos 13 e 14 em que a grande arte italiana atingiu o
esplendor. Por terem cometido a imprudência de nascer na mesma terra de gênios como
Michelângelo e Giotto, a maioria desses artistas acabou relegada ao esquecimento.
Passeio pela história da arte - Na medida em que se atravessa a
cidade, percorre-se a história da arte. Na Igreja de Santo Antônio de Pádua, o destaque
é uma extravagante escultura gótica em homenagem a São Francisco de Assis, o padroeiro
dos simples. Nas missas na Igreja Santa Maria dell´Annunziata, o padre disputa a
atenção dos fiéis com a bela vista do lago de Scanno.
As fontes das praças, os arcos e os portais das igrejas são adornados
com uma profusão de querubins, esculpidos em estilos diversos. Os séculos passaram por
Scanno sem fazer muito estrago. A informação mais recente de que se dispõe é um
documento que rebobina a história da cidade até o ano de 1067. É dessa época um dos
monumentos que melhor representa sua glória medieval: a Igreja de Santo Eustáquio,
patrono da cidade. Um guia explica a outro grupo de turistas, todos de câmera em punho,
que o adro, os pilares e o órgão da igreja estão sendo restaurados com dinheiro
japonês. Cansados de voltar para casa com fotos embaçadas de obras de arte milenares, os
japoneses se envolveram numa cruzada pela limpeza dessas peças, para ninguém mais jogar
a culpa nos filmes Fuji e nas câmeras Nikon.
Enquanto percorre as dependências do Palácio Colarossi, outro ponto
turístico, um guia conta que, pouco antes de morrer, a milionária americana Barbara
Hutton se desfez de sua casa na praia espanhola de Marbella, uma das muitas que tinha pelo
mundo. Ao contrário do que se esperava, não vendeu o valioso mobiliário e as peças de
arte sacra que decoravam a mansão. Em busca de indulgência para os seus pecados, Hutton
os devolveu à Igreja. Assim, preciosidades há muito tempo desaparecidas voltaram ao seu
lugar de origem: Scanno. Parte desse acervo pode ser visto hoje nos Palácios Serafini e
Mosca.
Matriarcas evangélicas "em luto perpétuo" - A cidade
italiana conserva a mesma mistura de encanto e severidade da Idade Média. A vida é
dominada por mulheres vestidas de preto como se vivessem em luto perpétuo. Elas estão
por toda parte. São matriarcas evangélicas que assistem à passagem dos séculos por
suas portas, enquanto seguem uma rotina de trabalho árduo nos moinhos, nos balcões da
lojas, na cozinha de casa ou nas ruas, estendendo e enxugando a lã de carneiro que
sustenta a economia local.
Nas festas populares, elas podem ser vistas nas vielas tortuosas de
Scanno, misturadas às jovens, todas trajando roupas de gala que mais parecem fantasias:
longos vestidos negros feitos com lã da região, uma combinação de saia, blusa, avental
e uma variedade de acessórios (pulseiras, brincos, colares) em ouro e prata, produzidos
por artesãos locais.
Quando os primeiros flocos de neve caem sobre Scanno, os 2.200 habitantes
da cidade mergulham num longo período de hibernação, do qual só saem no dia 10 de
novembro para celebrar a chegada do inverno com um festival de fogos de artifícios
conhecido como a Glória de San Martino. Outras festas que constam do calendário
turístico são a Fiaccolata, uma procissão de velas ao redor do lago, no dia 16 de
agosto, e a Bendição da Sagne, em 17 de janeiro, quando a comunidade sai às ruas para
saborear a lasanha típica, preparada e servida nas praças.
Nessas ocasiões as mulheres são vistas trajando seus vestidos
ancestrais. Embora faça parte da iconografia do folclore, ninguém conhece a origem dessa
vestimenta exótica que, como tudo mais em Scanno, permanece imutável no tempo. (Marco
Lacerda