'A hora da religião' mostra o choque entre tradição e modernidade
Alexandre Werneck
A imagem do filho, parado, estático, miniaturizado pelo gigantesco rosto
da mãe, feito cartaz, é arrebatadora. É um homem adulto, feito, diante de uma foto
ampliada de sua progenitora, que é objeto de um processo de canonização. Sua mãe pode
ser (feita) santa! A hora da religião (L'Ora di religione (Il sorriso di mia
madre), Itália, 2002), do italiano Marco Bellocchio, que o Festival do Rio BR exibe
hoje na mostra Panorama e que desde já pode ser considerado um dos grandes filmes
exibidos este ano no evento, faz chocarem-se duas das feridas narcísicas mais poderosas
do mundo contemporâneo: o cada vez mais difícil diálogo entre tradição e
racionalidade em um mundo que se permitiu abrir espaço para todo e qualquer discurso e a
pequenez do homem diante de um mundo em que ele não é mais objeto central de uma
criação lúcida. E o mais impressionante deste filme simplesmente avassalador, é que
essa grandiosidade toda ganha a forma de uma pequena crônica pessoal, de uma jornada
humana sem uma busca aparente senão a da manutenção da coerência.
Ernesto Picciafuoco (Sergio Castellitto) é um artista
plástico nacionalmente reconhecido por seu talento. Divorciado, tem um filho de cerca de
dez anos. É um homem cínico, que optou por rir de toda a forma de celebrar a tradição,
que marca profundamente a cultura européia, particularmente a italiana, onde Vaticano e
máfia convivem com Banco Central e caixa eletrônico sem grandes traumas. Sua vida é
normal, até que ele é convidado a participar do processo de canonização de sua mãe,
que o Vaticano conduz sem que ele saiba. Mas ele tem com a memória dela uma relação
nada saudável: mágoas profundas, lembranças doloridas, uma imagem muito pessoal, que
renega a santidade que um milagre atribuído a ela quer afirmar. Daí a imagem do
''encontro'' entre ele e a imagem idealizada (demarcada tão sutilmente pelo segundo
título do original italiano, O sorriso de minha mãe) daquela que ele conheceu
tão bem como pessoa, ser tão forte. É tão edipiano quanto anti-edipiano. É tão a
afirmação quanto a negação de seu ceticismo diante da tradição.
Pois é justamente a tradição o espectro que ronda sua
história. Seu filho afirma que Deus não o deixa em paz, que o ouve o tempo todo falar em
sua cabeça. Isso conduz o pai a tentar conhecer a professora de religião do menino. Ao
mesmo tempo, após ironizar uma manifestação anacrônica de um nobre, ele é desafiado
para um duelo (!) por ele.
Bellocchio conduz esse drama por uma história de
constantes afirmações e negações tanto de imanência quanto de transcendência. Deus
morreu, diz-se, mas Deus é todo-poderoso. Há santos, mas não sem um processo jurídico
que os estabeleça como tal. E todas essas pequenas dialéticas se completam na pequena
história pessoal do diálogo entre liberdade artística e prisão emocional que se trava
na trama aparentemente secundária do romance entre Picciafuoco e a suposta professora de
religião de seu filho. Apaixonada pela pintura dele (que nunca pode ser vista com muita
clareza), ela quer lhe mostrar a sua, quer que ele a avalie, quer estar perto dele.
Transcendental, com um ar angelical, ela oferece traços de transcendência a sua
movimentação racionalizadora. Não parece ser à toa, então, que Picciafuoco faça suas
obras no computador, e que vá manipulando imagens de prédios e estátuas clássicas com
o mouse, rabiscando-as e apagando-as. O pintor, reconhecido o tempo todo pelos outros
personagens como um grande artista, ou seja, como um libertador da alma humana,
converte-se em uma espécie de mito. Na prática, no dia-a-dia, ele é apenas pai, apenas
ex-marido, apenas o homem maravilhado pela arrebatadora beleza da professora.
A hora da religião (L'Ora di religione (Il sorriso di mia madre),
Itália, 2002). Direção: Marco Bellocchio. Elenco: Sergio Castellitto, Chiara Conti,
Maurizio Donadoni e outros. Festival do Rio BR - Panorama.
(© JB Online)