Não é só a presença de Cabíria, a
prostituta interpretada por Giulietta Masina, mulher do cineasta, e a quem ele dedicou um
filme inteiro: As Noites de Cabíria. O onirismo, que será uma das marcas dominantes de
Fellini, transparece na cena memorável em que Wanda, buscando o xeque branco dos seus
sonhos, vê Alberto Sordi que ondula no balanço, pendurado nas árvores. São cenas,
personagens e situações, é todo um conceito que voltará nos anos e filmes seguintes. E
há, desde logo, a colaboração com o músico Nino Rota.
Com ele, Fellini desenvolveu uma das parcerias mais
notáveis da história do cinema, só comparável, talvez, à de Alfred Hitchcock com
Bernard Herrmann e à de Eisenstein com Prokofiev. Foram notáveis, igualmente, mas
músico, no cinema, se fosse preciso escolher só um, seria Nino Rota.
Pode-se preferir um Luchino Visconti, mas Fellini está
no mesmo patamar dele, como um dos grandes do cinema italiano e mundial. E foi um dos
diretores mais populares, não só da Itália, mas do mundo, um dos raros, senão o
único, a incorporar o próprio nome aos filmes: Fellini Satyricon, Roma de Fellini,
Casanova de Fellini. Nascido numa família da pequeno burguesia interiorana, Fellini foi
jornalista em Florença e, depois, em Roma, onde integrou a equipe da revista de humor
Marco Aurélio. Foi roteirista e ator, ligando seu nome a Roberto Rossellini, um dos
expoentes do neo-realismo.
Realismo interior - É neo-realista a
inspiração de obras como Abismo de um Sonho e Os Boas Vidas, mas o movimento já estava
mudando quando Fellini começou a dirigir. Ele foi dos primeiros a perceber as mudanças.
Derrotada na 2.ª Guerra, a Itália olhou para dentro de si mesma, à espera de um
renascimento, e gestou o neo-realismo. Com o reerguimento econômico, nos anos 50, a
problemática social mudou e os diretores descobriram novos temas. Antonioni e Fellini
inauguraram o que os críticos chamaram de realismo interior.
Abismo de um Sonho conta a história de um casal. Ivã
e Wanda são recém-casados. Chegam a Roma em viagem de lua-de-mel. O objetivo é
encontrar familiares dele, visitar pontos turísticos e conhecer o papa. Quer dizer: esse
é o plano traçado por Ivã. Sua mulher tem outros planos: ela aproveita a soneca do
marido para realizar seu sonho. Parte em busca do xeque branco, personagem das fotonovelas
que preenchem o vazio que, para ela, é sua vida.
A jornada em busca do xeque é um desastre que a
levará a uma tentativa de suicídio tão patética quanto aquela de Giulietta Masina em
As Noites de Cabíria. O marido, desesperado, sentindo-se traído e abandonado, procura-a
durante todo o dia e, à noite, no limite do desespero, topa com a própria Cabíria.
Ainda não é a figura inesquecível de As Noites de
Cabíria, mas já possui algumas de suas características. Cabíria reage à dor de Ivã,
chamando sua atenção para o engolidor de fogo. Essa capacidade de renascer das próprias
cinzas, de encarar o futuro com uma esperança que é imorredoura, é o forte da
personagem. Em As Noites de Cabíria, lançada ao solo, ela toca a terra para renascer. Em
Abismo de um Sonho, Ivã não olha para o chão, mas para o céu estrelado, em busca de
redenção.
Embora fosse de Antonioni a idéia de Abismo de um
Sonho, Fellini era mesmo a figura ideal para dirigir o filme. Nos seus anos de
aprendizado, em Roma, ele trabalhou nos fumetti, escrevendo argumentos para fotonovelas.
Até por essa experiência, Fellini deve ter-se sentido estimulado para fazer Lo Sceicco
Bianco (título original de Abismo de um Sonho). A vida é sonho, diz para Wanda a autora
das aventuras do xeque. E o desfecho, que parece tranqüilizador, encerra na verdade uma
nota de apreensão e desequilíbrio.
A caminho da audiência com o papa, Wanda diz a Ivã
que ele é o seu xeque branco. Uma nuvem passa no olhar do ator Leopoldo Trieste.
Satisfazer à necessidade de sonho de Wanda talvez seja a maldição desse pequeno
burguês um pouco ridículo. Uma última palavra, sobre Brunella Bovo, que faz Wanda.
Essa atriz hoje esquecida faz parte da história do
cinema e não por esse filme, apenas. É inesquecível também em Milagre em Milão, de
Vittorio De Sica, em que compõe uma frágil heroína chapliniana como deveriam ter sido
(mas nunca foram) as mulheres das comédias de Charles Chaplin, segundo a feliz
definição da crítica americana Pauline Kael. (O Estado de S. Paulo)