PESQUISADORES ITALIANOS DEFENDEM QUE, NOS ANOS 30, O
FASCISMO TEVE PENETRAÇÃO MAIS FÁCIL E ENCONTROU CONSENSO MAIOR ENTRE
IMIGRANTES NO BRASIL DO QUE NA ARGENTINA; O DITADOR COMPARAVA OS DOIS GRUPOS
E LAMENTAVA A RESISTÊNCIA NO PAÍS VIZINHO: "NÃO NOS COMPREENDEM NEM NOS
AMAM"
ADRIANA MARCOLINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
EM BUENOS AIRES
Um livro, ainda inédito no Brasil, sobre a penetração do fascismo nas
sociedades latino-americanas indica que a influência dessa ideologia no
período entreguerras foi maior no Brasil do que na Argentina, onde a
população italiana era proporcionalmente maior.
Para o pesquisador Angelo Trento, autor do capítulo sobre o Brasil no
livro "Fascistas en América del Sur", a atitude favorável dos párocos
imigrantes, os convites do corpo diplomático e o grande poder de persuasão
dos notáveis da comunidade, como os empresários Francesco Matarazzo
(1854-1937) e Rodolfo Crespi (1874-1939), contribuíram para construir o
apoio maior dos italianos no Brasil ao fascismo, especialmente a partir dos
anos 30.
Para a organizadora da coletânea, Eugenia Scarzanella, professora da
Universidade de Bolonha, as autoridades italianas em Buenos Aires não
souberam aproveitar o potencial que representava a maciça presença de
italianos no país (em 1927, quando a Argentina tinha 13 milhões de
habitantes, 1,7 milhão eram italianos).
Trento, professor da Universidade de Nápoles, estudioso da imigração
italiana no Brasil, revela que Matarazzo e Crespi, os "tios da América", não
apoiaram o fascismo apenas com palavras, mas também com generosas
contribuições financeiras para organizações do regime na Itália e no Brasil.
FOLHA - O fascismo foi um instrumento para a identidade e a
integração dos imigrantes italianos na sociedade brasileira?
ANGELO TRENTO - O fascismo foi, certamente, um instrumento de
construção (e, para as camadas médias, de fortalecimento) de uma identidade
nacional que também envolvia as classes populares, que por muito tempo,
depois da unidade da Itália [no século 19], haviam permanecido ligadas a uma
dimensão regional, quando não local, expressa por meio de usos, costumes e
vários dialetos, segundo a região de nascimento. Com sua agressividade
verbal, porém, o governo de Mussolini também estimulou uma atitude de
distanciamento em relação à sociedade de acolhimento. Esse sentimento de
estranhamento representou a exceção e não a regra, mas não resta dúvida de
que a aquisição de uma consciência nacional acabou por identificar a
italianidade com o fascismo. Assim, as manifestações dos seguidores de
Mussolini em terras brasileiras (como em tantos outros países) se
identificaram com hinos, desfiles e a ostentação de camisas pretas,
terminando por criar uma fricção com a população local.
FOLHA - A mudança do termo "emigrantes" para "italianos no
exterior", ocorrida em 1927, perdura até hoje na linguagem oficial do país.
Seria uma forma de ocultar o passado emigratório da Itália?
TRENTO - A utilização do termo "italianos no exterior" no
lugar de "emigrantes" se enquadrava no projeto fascista de exaltação da
italianidade. Sem dúvida, a operação também escondia a vontade de colocar em
segundo plano as causas econômicas e sociais da emigração, mas este não foi
o motivo principal. Aliás, o regime promoveu duas ideias: uma emigração
qualificada e o fim da emigração popular de massa, o que se enquadrava sob a
óptica da política de potência buscada por Roma. A ideia de que o excedente
demográfico era uma justificativa da emigração fazia parte dessa política.
FOLHA - Quantos italianos havia no Brasil no final da década de 20?
TRENTO - Não houve um Censo no Brasil entre 1920 e 1940. No
entanto, estimativas confiáveis, como as elaboradas por Giorgio Mortara,
judeu italiano que emigrou para o Brasil após as leis raciais do regime
fascista em 1938, e um dos pioneiros do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), indicam que, em 1930, havia 435 mil italianos no país.
FOLHA - Por que a ideologia fascista conseguiu uma penetração maior
entre os imigrantes italianos no Brasil do que na Argentina?
TRENTO - Porque a emigração italiana para o Brasil foi mais
tardia em relação àquela que se dirigiu para a Argentina. Como os italianos
chegaram antes àquele país, a imigração era marcada pelos ideais do
"Risorgimento" [processo de unificação da Itália] e de Giuseppe Mazzini
[1805-1872, considerado o apóstolo da unidade do país]. Também tinha um
caráter republicano e democrático. Portanto, quando as primeiras associações
italianas começam a se formar, os imigrantes que já estavam estabelecidos na
Argentina assumiram seu controle e conseguiram manter várias delas fora da
órbita fascista. Algumas foram, inclusive, direcionadas em sentido
contrário, ou seja, passaram a ser antifascistas. Há muitas razões para a
maior penetração do fascismo no Brasil, mas podemos mencionar uma fraqueza
maior do antifascismo italiano no Brasil, principalmente nos anos 1930, que
se deve, em parte, a um fluxo menor de exilados políticos para o Brasil em
comparação à Argentina, principalmente de esquerda e, em particular, de
comunistas. Os indícios dessa penetração maior da ideologia estão em uma
tomada de posição mais firme por parte dos jornais argentinos e das
associações italianas em relação ao fascismo (a imprensa antifascista, ou,
de qualquer forma, não alinhada com o regime, teve um impacto e uma
circulação menores no Brasil do que na Argentina). No Brasil, em meados dos
anos 1930, as associações italianas estavam totalmente a favor do fascismo,
por convencimento ou por conveniência. Há ainda a observação do próprio
Mussolini, que expressou o seu desapontamento ao então embaixador italiano
na Argentina, em 1936: "Os italianos da Argentina não nos compreendem nem
nos amam. Se as coisas continuarem assim, vamos nos dirigir cada vez mais
aos italianos no Brasil".
FOLHA - O governo de Mussolini queria fazer do Brasil uma "nação
fascista" ligada a Roma ou nutria pretensões imperialistas?
TRENTO - A ideia do fascismo era aproveitar o número
significativo de italianos que viviam e trabalhavam em alguns países da
América Latina para criar grupos de pressão e uma atmosfera favorável à
Itália, sob a forma de simpatias políticas e com fins econômicos e
comerciais, posição já presente na classe dirigente italiana a partir do
final do século 19. Não havia pretensões imperialistas nem de expansão
territorial.
FOLHA - Qual era a imagem que o regime de Mussolini tinha da
América do Sul?
TRENTO - Ao pesquisar a propaganda dos anos 1920 e,
sobretudo, dos anos 1930, parece evidente que toda a América Latina
(particularmente algumas nações, o Brasil em primeiro lugar) recebia uma
grande atenção.
Após 1929, a região passou a ser vista com um grande interesse, uma vez que
o regime estava convencido de que o enfraquecimento, em escala mundial, dos
postulados democráticos e liberais podia abrir horizontes interessantes para
o modelo totalitário italiano.
Roma se apresentou como alternativa à liderança de Washington e de Londres,
mas sem se colocar no mesmo patamar e até sublinhando a ausência de qualquer
vontade expansionista e de dependência. O aparato teórico dessa manobra se
baseava no conceito do panlatinismo, de forte valor simbólico e
propagandístico, que englobava a ideia de uma grande família étnica, em
contraposição ao pan-americanismo.
FOLHA - Em geral, a historiografia brasileira afirma que a
ideologia fascista só encontrou seguidores entre a elite da coletividade
italiana, enquanto as classes populares abraçaram o anarquismo. Isso é
verdade?
TRENTO - Foi apenas uma minoria que se empenhou no movimento
operário, defendendo posições anárquicas, anarcossindicalistas e
socialistas. De qualquer forma, isso aconteceu antes dos anos 1920
(caracterizados no Brasil por uma grande repressão). O fascismo encontrou
sem dúvida um vasto consenso entre a coletividade italiana e não apenas
entre as classes altas e as camadas médias, mas também entre a pequena
burguesia (como na Itália), principalmente comercial, e entre os próprios
operários, principalmente nos anos 1930. Vários fatores contribuíram para
esse êxito: primeiro, a ausência ou a fraqueza de um componente do
"Risorgimento" na emigração que se dirigiu para o Brasil, a qual, ao
contrário do que aconteceu na Argentina e no Uruguai, não havia antes
dominado o mundo das associações regionais, orientando-o politicamente de
forma desfavorável ao regime. Em segundo lugar, influiu uma obra de
propaganda mais minuciosa, que se valeu não apenas de bolsas de estudo
concedidas aos jovens brasileiros, convites de viagem para jornalistas,
projeções de filmes e subsídios a jornais locais que falavam bem do regime,
mas também de iniciativas culturais (professores visitantes nas
universidades brasileiras) e empreendimentos que atingiam o imaginário
coletivo, como as travessias aéreas do Atlântico que tinham como meta o
Brasil, realizadas por pilotos italianos entre 1927 e 1931. Em terceiro
lugar, o prestígio elevado de que gozava Mussolini com a opinião pública, as
classes dirigentes e os governos estrangeiros influenciava principalmente os
emigrantes. Enfim, no Brasil, havia, mais que nos outros países de forte
imigração italiana na América Latina, um corpo diplomático altamente
fascistizante depois de 1925.
FOLHA - Por que o corpo diplomático tinha um caráter mais fascista
particularmente no Brasil?
TRENTO - Durante o fascismo, o corpo diplomático italiano em
todo o mundo foi conivente com o regime em vigor ou, pelo menos, não lhe foi
hostil, salvo raras exceções. A partir da metade dos anos 1920, foram
incorporados principalmente cônsules, mas também embaixadores, que não eram
de carreira, que entraram por fidelidade política. No Brasil se registrou,
eu diria que por acaso, uma concentração desses diplomatas.
FOLHA - O sr. escreve que, no Brasil, havia muitos imigrantes
"convertidos" ao fascismo. Como as autoridades italianas os convertiam?
TRENTO - As "conversões" aconteciam com várias categorias,
mas principalmente com alguns jornais étnicos, que antes eram adversários do
"duce" [Mussolini], muitas associações, alguns intelectuais e pessoas que
tinham uma atividade de esquerda. Assim como na Itália, alguns militantes do
movimento operário adotaram o fascismo em virtude do seu antiparlamentarismo
e anti-individualismo iniciais, e da ilusão de um futuro pansindicalismo. É
mais fácil explicar a adesão das pessoas da classe alta, mesmo as que no
começo eram pouco favoráveis, das camadas médias e da pequena burguesia, à
ideia de nação, à exaltação do conceito de ordem e à busca de uma política
de potência.
FOLHA - Por que a estrutura dos "fasci" e do Partido Nacional
Fascista cresceu tanto no Brasil?
TRENTO - Os "fasci" [núcleos que representavam o Partido
Nacional Fascista da Itália] no Brasil cresceram principalmente em número de
sedes: em 1924 já eram 40, ou seja, um décimo de todos os "fasci" italianos
no exterior, e dez anos depois quase chegavam a 90. No entanto, o número de
inscritos [os membros em regra com o pagamento das mensalidades eram entre
5.000 e 6.000, no máximo] permaneceu irrisório com relação à quantidade de
italianos residentes [558 mil no Censo de 1920 e 325 mil no de 1940]. A
proliferação dos "fasci" estava relacionada com a sua dispersão territorial
em uma área muito grande como é o território brasileiro. Já a Opera
Nazionale Dopolavoro teve um bom sucesso, não tanto em termos de sede [19 em
todo o Brasil no final dos anos 1930], mas de inscritos [7.000 apenas na
cidade de São Paulo, em 1935]. Este último dado é importante, uma vez que
esta estrutura ocupava um raio de ação muito amplo na organização das horas
vagas das classes populares (cinema, teatro, excursões, festas dançantes e
atividades esportivas). No que se refere ao aspecto financeiro, os
imigrantes ricos não foram particularmente generosos com os "fasci", a fim
de evitar acusações de que fomentavam paixões e conflitos políticos alheios
à terra que lhes havia acolhido. Eles preferiam enviar doações
significativas diretamente ao fascismo na Itália, seguindo o exemplo dos
membros mais conhecidos na comunidade, como Francesco Matarazzo e Rodolfo
Crespi.
FOLHA - Mussolini simpatizava com Vargas; mas tinha consciência de
seu lado nacionalista?
TRENTO - Sim, essa preocupação existia por parte das
autoridades fascistas e as correspondências diplomáticas são uma prova
disso. Mas o nacionalismo getulista nunca entrou em rota de colisão com as
atividades fascistas no Brasil. Até na iminência da entrada do Brasil na
guerra e depois disso, excetuando situações particulares como o Rio Grande
do Sul, as normas adotadas para os cidadãos do Eixo foram aplicadas com
menos energia para os italianos, em comparação aos alemães e japoneses.
FOLHA - O governo de Mussolini contribuiu financeiramente com a
Ação Integralista Brasileira (AIB). O que havia por trás disso?
TRENTO - A AIB foi financiada por Mussolini inclusive após
ser dissolvida por Vargas, mas deve-se dizer que o fascismo nunca confiou
muito no partido ou nos seus dirigentes.
FOLHA - Qual foi a marca deixada pelos fascistas italianos na
sociedade e na vida pública brasileiras?
TRENTO - As marcas mais fortes foram deixadas nos anos 1930,
com a evocação ao corporativismo; a inclusão, ao pé da letra, da "Carta do
Trabalho" fascista na Constituição brasileira da era Vargas; mas também no
controle da imprensa, nas técnicas de criação do consenso, nos mecanismos de
propaganda. Outros elementos, como por exemplo o partido como instrumento
importante de canalização do consenso, não foram imitados.
(©
Folha de S. Paulo)
Pesquisas
reavaliam resistência no Brasil
Popperfoto/Getty Images
O ditador Benito Mussolini (1883-1945) faz a saudação fascista |
|
DOCUMENTOS RECÉM-PUBLICADOS PERMITEM CONHECER GRUPOS ANTIFASCISTAS E
ANTINAZISTAS
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
A abertura para consulta pública de arquivos do Deops (Departamento
Estadual de Ordem Política e Social), em 1994, e do Itamaraty, em 1995,
possibilitou a pesquisa em uma frente pouco explorada da historiografia
brasileira: a resistência local ao fascismo e ao nazismo. Mas seu peso na
política sul-americana está longe de ser consenso.
É ponto pacífico que grupos fascistas gozavam de uma situação
privilegiada no Brasil, um país onde a elite admirava a ascensão econômica
alemã, onde a classe trabalhadora era facilmente permeável à política
populista e onde setores da Igreja Católica apoiavam a direita em ascensão.
O que se investiga agora é se o contraponto ideológico oferecido por
movimentos como o Áustria Livre ou o Alemães Livres foi atropelado por um
Estado ideologicamente alinhado com os países do Eixo.
Para Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Laboratório de Estudos
sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação, da USP, a sociedade "permitiu a
livre circulação da extrema direita por vários canais", enquanto a polícia
perseguia comunistas e judeus, identificados sem distinção como
"revolucionários", tidos como participantes de um complô.
Desde antes do primeiro governo Getúlio Vargas (1930-45), publicações
antissemitas, como as edições dos "Protocolos dos Sábios do Sião",
tornavam-se populares, mas foi em meados da década de 30 que periódicos como
"A Ordem" e "Vozes de Petrópolis" tiveram atuação mais intensa nas campanhas
direitistas.
A extinção de seus partidos políticos, em 1937, não encerrou as
atividades dos grupos fascistas brasileiros.
O Proin (Projeto Integrado Arquivo do Estado/Universidade de São Paulo)
trabalha atualmente com documentos, descobertos no ano passado nos arquivos
do Deops, em São Paulo, que mostram o tratamento dado aos grupos de reação
contra o nazifascismo.
Segundo Carneiro, esse tipo de descoberta está ajudando a "reescrever a
história política do Brasil".
Conclui-se, por exemplo, que o apoio brasileiro aos fascismos, embora
tivesse participação popular, vingou com maior facilidade porque gozou da
liberdade de expressão que o chamado "complô judaico-comunista" não teve.
"De 1930 a 1942 [ano em que o Brasil entra na guerra], não há vigilância
de nazistas, fascistas ou integralistas. Eles eram até publicados, os
integralistas tinham apoio de intelectuais leigos católicos", lembra a
professora da USP.
Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra, a bipolaridade política
brasileira atingiu um auge: os documentos mostram o início de uma vigilância
sobre alemães e austríacos, mas os investigados pertenciam aos movimentos
antinazistas. "Seus membros foram presos, fichados, tratados como "súditos
do Eixo'", conta Carneiro (leia mais no texto ao lado).
Autoajuda
Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor de história na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, pondera sobre a importância da resistência ao
nazifascismo no Brasil e no mundo.
"Hoje tem sido valorizada a resistência quase como um acerto de contas,
para dizer que "havia alemães bons", absolver a população. Políticos alemães
valorizam uma resistência que jamais pôs em risco aquele regime para dizerem
que são herdeiros dessa tradição. A resistência antinazista e antifascista
na Itália e na Alemanha foi irrelevante. A visão de mundo era tão poderosa
que a paralisava."
No caso do Brasil, mesmo reconhecendo que grupos antifascistas e
antinazistas tenham militado para influenciar a intelectualidade brasileira,
Teixeira da Silva conclui: "É muito significativo o suicídio de Stefan Zweig
[em 1942] -não havia mais o que fazer".
O professor diz que a resistência antinazista tinha menos a pretensão de
reverter a política alemã do que de formar, na prática, "círculos de
autoajuda, para não chegar à conclusão de que era o fim e se suicidar, como
fizeram Zweig ou Walter Benjamin".
Questionado pela reportagem se tais movimentos puderam reverter o
trabalho ideológico dos "fasci" -que alinhava a política brasileira ao
Eixo-, determinando a adesão brasileira ao lado dos Aliados, Teixeira da
Silva é peremptório.
"A tese de um Brasil oscilante [entre Eixo e Aliados], com Vargas
negociando com os dois lados, é insustentável. O Brasil dependia
economicamente dos EUA e seria ocupado por eles se entrasse para o Eixo."
Para o especialista, falta à pesquisa brasileira cotejar os documentos
nacionais aos arquivos dos EUA e da Alemanha. "Se você vê documentos alemães
e dos EUA, é dado como certo que o Brasil está com os Aliados. O máximo que
o Eixo pretendia do Brasil era tê-lo como país neutro".
(©
Folha de S. Paulo)
Imigrantes e inimigos
HISTORIADORA REVELA DETALHES DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO DE ALEMÃES,
ITALIANOS E JAPONESES NO BRASIL E AS CONSEQUÊNCIAS DO ESTIGMA SOCIAL DEPOIS
DA PRISÃO
MARIO GIOIA
DA REPORTAGEM LOCAL
Depois de 15 anos de pesquisa, a historiadora Priscila Ferreira Perazzo,
41, consegue lançar o resultado de seu estudo sobre um tema pouco abordado
pela historiografia do país: os campos de concentração no território
brasileiro.
Menos terríveis que os campos de extermínio disseminados pela Alemanha
nazista, os espaços são mais numerosos no país entre 1942 e 1945, no final
da Segunda Guerra Mundial, quando o governo Vargas declara inimigo o Eixo.
Assim, por extensão, cidadãos nascidos na Alemanha, na Itália e no Japão
começam a ser detidos e confinados em espaços especialmente feitos para esse
fim.
"Prisioneiros da Guerra - Os Súditos do Eixo nos Campos de Concentração
Brasileiros (1942-1945)" (Imprensa Oficial/Humanitas, 384 págs., R$ 35) se
beneficiou da abertura gradual de arquivos oficiais e traz mais detalhes
sobre os dez campos implementados em diversas condições por quatro regiões
brasileiras (apenas o Centro-Oeste não abrigou locais desse tipo).
A análise vai desde os mais conhecidos presídios de Ilha das Flores e de
Ilha Grande, no Rio de Janeiro, até o campo de concentração de Tomé-Açu, no
Pará, no meio da selva amazônica, para onde foi levada grande parte dos
japoneses detidos no período. Há também o campo em Chã de Estevão, em
Paulista (PE), onde alemães viviam reclusos em pequenas casas e tinham o
direito de levar a família para essas residências.
"O tratamento dado aos súditos do Eixo, durante a guerra, é variado. Meu
livro não pega aqueles imigrantes que foram obrigados, por exemplo, a ficar
confinados em suas próprias casas no interior do Paraná e de São Paulo",
conta a historiadora, que, pela documentação, acredita que o número de
presos desse tipo não passou de 2.000 pessoas.
A definição dos campos vem de obras referenciais de nomes como o da
teórica alemã Hannah Arendt (1906-1975) e do sociólogo britânico Anthony
Giddens, entre outros. O escopo de "Prisioneiros..." também não se detém em
experiências anteriores de espaços do tipo no Brasil, como o de Alagadiço,
no Ceará, onde retirantes foram impedidos de entrar em Fortaleza e ficaram
confinados em 1915 e, posteriormente, em 1932.
A seguir, trechos da entrevista com Perazzo.
FOLHA - Qual é a definição de um campo de concentração?
PRISCILA FERREIRA PERAZZO - Campo de concentração implica um
lugar aberto, mas delimitado para ser objeto de vigilância, onde ficam
reclusas pessoas que, por algum motivo, devem ser isoladas. É interessante
demarcar que o uso de campos de concentração na primeira metade do século 20
foi mais extenso do que se imagina. Em razão de um pensamento comum que vem
com o pós-guerra, hoje a gente acha que campo de concentração é só aquilo
que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, com os nazistas, especialmente os
espaços terríveis criados para o extermínio de pessoas, como Auschwitz. A
prática de internar pessoas, civis ou militares, foi relativamente comum. As
referências em estudos indicam que campos desse tipo começaram em 1899, na
África do Sul, na Guerra dos Boêres, quando os ingleses confinaram os
africâneres. Mas há formas de confinamento e segregação mais antigas, como
os leprosários no final da Idade Média, entre outras experiências.
FOLHA - No Brasil, quais eram as condições gerais desses campos?
PERAZZO - Tinha de tudo. Chão de Estevão, em Pernambuco, por
exemplo, não era prisão, era quase um vilarejo. No Rio Grande do Sul e em
Santa Catarina, os alemães ficavam em presídios, assim como no Rio, em Ilha
Grande e Ilha das Flores. Em São Paulo, um deles era uma fazenda.
FOLHA - Havia diferenças no tratamento de cada grupo étnico?
PERAZZO - Sim, havia. O maior número de presos é de alemães,
cerca de 60%. O segundo é de italianos, uns 30%, e o último de japoneses, o
restante, que quase só ficaram em Tomé-Açu, no Pará. Mas o tratamento dado
aos súditos do Eixo, durante a guerra, é variado.
FOLHA - Quais imigrantes tinham a pior situação?
PERAZZO - Com certeza, os alemães, que eram levados para os
piores campos, os do Sul, que eram presídios, e os do Rio. Os comunistas
estavam lá desde 1935, havia presos comuns. Foi reformada uma ala para
seguir as recomendações da Convenção de Genebra, porque os prisioneiros de
guerra não poderiam ficar no meio dos prisioneiros normais. Os relatos são
de que os alemães se incomodavam, eram obrigados a ficar perto de
assassinos, ladrões, em lugares mais cheios.
FOLHA - E, quando são libertados, qual é a reação dos brasileiros
em relação a esses alemães?
PERAZZO - A pior possível. A perseguição contra eles é bem
maior, em especial no Sul, é mais traumática. Ouvi descendentes que, à
época, tinham de 12 a 20 anos e que contaram as muitas humilhações que as
famílias sofreram. Eram famílias bem estabelecidas, tinham altos cargos em
grandes empresas. Depois da passagem pelos campos, não conseguiam mais os
mesmos empregos. As famílias ficaram destruídas, a miséria chegava. Quando
voltavam, eram vistos como nazistas. Socialmente, eram estigmatizados. A
polarização não veio no meio da Segunda Guerra, mas antes, nos anos 30.
Havia a propaganda varguista, de 1938 para a frente, ficou pior. Os alemães
sofriam hostilidade, eram chamados para depor na delegacia constantemente,
ficavam uma noite detidos, saíam, depois eram pegos novamente. Em janeiro de
1942, começa a sair uma enxurrada de coisas contra eles, um monte de
reportagens, jornais detonando os alemães, porque eles são inimigos,
associando-os às piores atrocidades nazistas. Os japoneses também sofrem.
São vistos como sabotadores, traidores, dissimulados. A recuperação da
imagem desse grupo é recente.
FOLHA - É muito diferente de como os italianos são vistos, não?
PERAZZO - Totalmente. A relação política Brasil-Itália é
diferente. A Itália sai da Segunda Guerra muito antes, Mussolini cai em
1943. O governo italiano que assume, provisório, é de cooperação com os
Aliados, sai da guerra, não é mais beligerante. Por isso, em 1944 a FEB vai
para a Itália lutar contra os nazistas.
A política étnica e nacionalista do governo Vargas tem diretrizes diferentes
para cada grupo étnico. Algumas coisas aconteciam para os japoneses, muitas
para os alemães e poucas para os italianos. Os italianos sofreram no auge da
Segunda Guerra, porque aí eles eram vistos como fascistas.
FOLHA - Mas houve alemães que, ao não serem levados para campos do
Sul e do Rio, tiveram melhores condições durante esse período?
PERAZZO - Sim, os de Chão de Estevão, em Pernambuco. Ao local
foram enviados 23 alemães que trabalhavam na Companhia Paulista de Tecidos,
da família Lundgren, das Casas Pernambucanas. A Lundgren aponta as 23
pessoas que têm de ser internadas. Esses 23 homens vão para o campo, que é
constituído por várias casinhas. Quem tem família leva a sua. Quem não tem,
ou seja, os solteiros, ficam numa casinha à parte. E sofrem toda a questão
da vigilância. Como eles eram altos funcionários da empresa, especializados,
técnicos, que vinham justamente da Alemanha e da Áustria para trabalhar na
fábrica, eles faziam uma falta terrível, porque não havia substitutos
capacitados. Então, a companhia ia à noite buscá-los de carro, levava-os à
fábrica e eles faziam o que podiam, davam uma assistência aos outros
funcionários. Se compararmos essa situação aos campos do Rio de Janeiro, do
Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, nesses últimos a prisão é bem mais
drástica.
FOLHA - Conseguir chegar a essas conclusões foi complicado? Qual é
a situação desses arquivos e registros familiares?
PERAZZO - Hoje é bem mais fácil chegar a esses arquivos
oficiais, não que seja simples alcançar todas essas conclusões. Locais como
o Arquivo Histórico do Itamaraty e o Arquivo Nacional, ambos no Rio, têm
vasta documentação. No entanto, isso não acontece em todos os Estados. No
Pará, por exemplo, é muito difícil conseguir documentação oficial. Há pouca
coisa dos campos de Tomé-Açu na própria cidade e em Belém, a capital do
Estado.
Muitas vezes, temos o problema de não obtermos microfilmes ou xerox, então
copiamos à mão páginas e páginas de livros e registros contidos até em
latas.
Os registros familiares são complicados. Por exemplo, com a estigmatização
dos alemães no pós-guerra, vários imigrantes que passaram por tudo isso
queimaram o que tinham. Eles morriam de medo de sofrer represálias, se
privaram da língua e de quaisquer outras associações com o nazismo. Levaram
para o túmulo muitas informações essenciais sobre esse período.
(©
Folha de S. Paulo)
saiba+
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
EM BUENOS AIRES
A Itália vive uma renovação no estudo sobre o fascismo: segundo Eugenia
Scarzanella, responsável pela compilação dos artigos de "Fascistas en
América del Sur", até poucos anos atrás os historiadores italianos
privilegiavam o estudo do antifascismo, provavelmente motivados a trabalhar
com temas considerados "politicamente corretos".
Assim, negligenciaram aspectos relevantes do movimento fascista, como a
disseminação da ideologia entre emigrados, afirma Scarzanella. A obra
(edição argentina Fondo de Cultura Económica, 352 págs., 52 pesos, R$ 25)
resulta de um projeto de pesquisa financiado pelo Ministério da Universidade
e da Pesquisa Científica da Itália.
"Os ataques ao historiador Renzo De Felice (1929-96), cujos estudos
revelaram o consenso dos italianos em relação ao regime fascista,
contribuíram para essa situação", afirma. "O fascismo oferecia um
instrumento de identidade e integração dos imigrantes na sociedade de
acolhida."
Segundo a historiadora, "o regime fascista levou adiante uma política
eficaz entre os italianos no exterior; para eles a Itália de Mussolini era
um país que podia se apresentar como moderno e protagonista da política
mundial."
O livro reúne textos que tratam do Brasil, da Argentina e do Peru e usa
como fontes os documentos diplomáticos italianos, os arquivos dos países
sul-americanos e as coleções das imprensas étnicas locais.
(©
Folha de S. Paulo)
Ascensão e queda do nazifascismo
1919
Em Milão, na Itália, Benito Mussolini cria os "fasci di combattimento"
(feixes de combate), organização política radical e nacionalista
1922
O rei Vítor Emanuel 3º encarrega Mussolini de formar o novo governo italiano
1923
Na Alemanha, Adolf Hitler organiza um fracassado golpe -o "putsch" de
Munique.
Mussolini é eleito deputado
1932
Plínio Salgado funda a Ação Integralista Brasileira, partido político de
orientação fascista
1933
Hitler torna-se chanceler da Alemanha. Intelectuais de esquerda e judeus
começam a deixar o país
1936
Itália e Alemanha aliam-se
1937
Hitler retira a Alemanha do Tratado de Versalhes, assinado no final da
Primeira Guerra Mundial (1914-18)
1938
Reino Unido, França, Alemanha e Itália assinam o Pacto de Munique, que, numa
tentativa de evitar a guerra, cede aos alemães controle sobre a região dos
Sudetos (na antiga Tchecoslováquia).
1939
Em 6 de abril, França e Reino Unido assinam um pacto em defesa da Polônia,
ameaçada de invasão pela Alemanha.
Em 23 de agosto, a União Soviética e a Alemanha firmam um Pacto de Não
Agressão.
No dia 1º de setembro, tropas alemãs invadem a Polônia. Tem início a Segunda
Guerra Mundial.
Em 3 de setembro, França e Reino Unido declaram guerra à Alemanha.
No Brasil, o governo Vargas mantém-se neutro em relação ao conflito na
Europa
1940
Tropas alemãs invadem países do norte e do oeste europeus e ocupam a França
1941
No dia 22 de junho, tropas alemãs invadem a União Soviética, rompendo o
Pacto de Não Agressão.
Em 7 de dezembro, a base de Pearl Harbour, no Havaí, é atacada pelos
japoneses, o que provoca a entrada dos Estados Unidos no conflito
1942
O Brasil declara guerra ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e envia, em 1944,
cerca de 25 mil soldados da Força Expedicionária Brasileira para lutarem na
Itália
1943
Em 2 de fevereiro, soviéticos vencem os alemães na batalha de Stalingrado.
É promulgada, por Getúlio Vargas, a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)
-legislação influenciada pela doutrina social da Igreja Católica e por leis
trabalhistas de outros países, inclusive a "Carta do Trabalho", vigente na
Itália fascista.
Mussolini é deposto
1944
Em 6 de junho, tropas aliadas desembarcam na Normandia, no litoral norte da
França ("Dia D")
1945
Mussolini é executado em 28 de abril. No dia 30, Hitler suicida-se.
Em 8 de maio, com a tomada de Berlim pelos soviéticos, a Alemanha se rende.
Nos dias 6 e 9 de agosto, respectivamente, as cidades japonesas de Hiroshima
e Nagasaki sofrem ataques norte-americanos com bombas atômicas. Em 2 de
setembro, o Japão se rende. Termina a Segunda Guerra Mundial; ao longo do
conflito, morreram 35 milhões de civis e 20 milhões de militares
(©
Folha de S. Paulo)
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