Evento começa com sessão de gala de 'A Grande Guerra', homenagem ao
cineasta Mario Monicelli, de 94 anos
Teresa Ribeiro, do estadao.com.br, com EFE VENEZA - O Festival de Veneza
começa nesta quarta, 2, com a exibição do filme Baaria, de Giuseppe
Tornatore Cinema Paradiso, vencedor do Oscar de melhor filme
estrangeiro em 1989), o primeiro longa italiano a abrir a mostra em 20 anos,
mas antes disso, acontece nesta terça, 1, uma homenagem especial ao cineasta
Mario Monicelli, de 94 anos, que continua em atividade. Em noite de gala
será exibido ao ar livre, na praça Campo San Polo, um dos clássicos do
diretor, A Grande Guerra, com o qual dividiu o Leão de Ouro do
festival com De Crápula a Herói, de Roberto Rossselini, há 50 anos.
O 66.º Festival Internacional de Cinema de Veneza vai de 2 a 12 de
setembro no famoso teatro Lido. É um dos festivais mais antigos do mundo. O
diretor desta edição é Marco Müller, que tem comandado o evento desde 2004.
Dois filmes brasileiros serão exibidos na mostra Horizonte, que não é
competitiva, mas tem o prestígio de apresentar um panorama do melhor do
cinema mundial: Insolação, de Felipe Hirsch e Daniela Thomas, e
Viajo porque Preciso e Volto por que Te Amo, de Karin Aïnouz e Marcelo
Gomes. Os dois filmes têm o ator Paulo José no elenco. Há ainda o curta
brasileiro O Teu Sorriso, de Pedro Freire, na mostra de curtas.
O júri é presidido pelo diretor taiuanês Ang Lee. Vai avaliar 23 longas,
entre eles mais um ácido documentário do americano Michel Moore:
Capitalism: A Love Story.
Na briga, estão ainda o francês Persécution, de Patrice Chéreau e com
Charlotte Gainsbourg (Anticristo, em cartaz no Brasil) como
protagonista, e Bad Lieutenant: Port of call New Orleans, do alemão
Werner Herzog.
Mas um nome que tem chamado bastante atenção entre os concorrentes ao
principal prêmio do festival é o do estilista americano Tom Ford, que
apresentará no Lido seu primeiro trabalho como diretor: A Single Man,
uma adaptação de um romance de Christopher Isherwood, com Julianne
Moore e Colin Firth no elenco.
Um filme que pode surpreender é The Road, em que John Hillcoat
adapta uma obra do sempre difícil Cormac McCarthy e conta uma história
pós-apocalíptica protagonizada por Viggo Mortensen e Charlize Theron.
A lista da mostra competitiva traz vários filmes italianos, como Lo
Spazio Bianco (Francesca Comencini), La Doppia Ora (Giuseppe
Capotondi) e Il Grande Sogno, do também ator Michele Plácido.
Outro ator-diretor, neste caso japonês, Shinya Tsukamoto vai apresentar
Tetsuo the Bullet Man. A Ásia também se faz presente com Yi
Ngoi (Pou-Soi Cheang), e Lei Wangzi (Yonfan), ambos de Hong
Kong, e Ahasin Wetei, do cingalês Vimukhti Jayasundara.
Do Oriente Médio, foram selecionados Al Mosafer, do egípcio
Ahmed Maher (Egito), e Levanon, do israelense Samuel Maoz.
Disputam ainda o Leão de Ouro, o veterano francês Jacques Rivette (39
Vues du Pic Saint Loup), sua compatriota Claire Denis (White
Material), o belga Jaco van Dormael (Mr. Nobody) e a austríaca
Jessica Hausner (Lourdes).
(©
Estadão)
Grandes nomes, boas promessas
Atriz Maria Grazia Cucinotta posa para os fotógrafos na praia, antes
de se apresentar na inauguração do festival
Veneza dá hoje a largada para mais uma maratona cinematográfica, que
desta vez terá forte time de cineastas do mundo todo, dois filmes
brasileiros na mostra Horizontes e até um prêmio de carreira para Walter
Salles
Luiz Zanin Oricchio, VENEZA
Não é ainda desta vez que o Brasil disputará o Leão de Ouro. Numa mostra
cheia de nomes famosos como Patrice Chéreau, Werner Herzog, Michael Moore,
Jacques Rivette e Giuseppe Tornatore, coube aos brasileiros o consolo de ter
dois na mostra paralela Horizontes. Ambos dirigidos em duplas: Viajo porque
Preciso, Volto por que Te Amo, de Karin Aïnouz e Marcelo Gomes; Insolação,
de Daniela Thomas e Felipe Hirsch.
A mostra Horizontes é importante. Define-se como a seção que privilegia "as
novas correntes do cinema mundial". E distribui troféus: o Prêmio Horizontes
e o Horizontes Doc, para os documentários. Mas não leva ao Leão de Ouro,
ainda inédito no País. Dos três grandes festivais, o Brasil já faturou uma
Palma de Ouro em Cannes (O Pagador de Promessas) e dois Ursos de Ouro em
Berlim (Central do Brasil e Tropa de Elite). Mas o prêmio principal de
Veneza terá de esperar outra ocasião.
A presença brasileira no 66.º Festival de Veneza não se restringe aos filmes
que participarão da mostra Horizontes. Na seção Corto Cortissimo entra O Teu
Sorriso, de Pedro Freire, com Paulo José e Juliana Carneiro da Cunha. E
coube ao diretor Walter Salles o privilégio de ser distinguido com o prêmio
Robert Bresson, que lhe será entregue dia 4. Walter já havia participado de
Veneza como concorrente, com Abril Despedaçado. Agora vai receber uma
distinção destinada a obras que trazem valores espirituais em seu conteúdo,
e já foi outorgada a cineastas como Manoel de Oliveira, Alexandr Sokúrov e
Theo Angelopoulos. É mais um sinal do reconhecimento internacional do
diretor de Central do Brasil e Linha de Passe. (Leia entrevista com ele
nesta edição.)
Hoje à noite, o Festival de Veneza começa em grande estilo, com todo o
glamour peninsular: apresentação da diva Maria Gracia Cuccinotta (de O
Carteiro e o Poeta) e estreia mundial do novo filme de Giuseppe Tornatore,
Baarìa, primeiro concorrente ao Leão de Ouro. O título refere-se ao nome
fenício da cidade de Bagheria, na Sicília, província de Palermo, terra natal
de Tornatore. Filho ilustre, aliás, vencedor do Oscar com Cinema Paradiso.
Com eessa volta às suas raízes, Tornatore tem grandes ambições: faz um filme
de época, com três gerações de uma família em Bagheria, cobrindo um século
de história italiana e passando por duas guerras mundiais, a ascensão e
queda do fascismo, o sonho socialista, a democracia cristã, luta armada e
fim das ilusões. Ufa! Se vai entregar tudo o que promete é o que se verá.
Tornatore entrará na disputa pelo Leão contra alguns pesos-pesados, tais
como o veterano Jacques Rivette, um dos fundadores da nouvelle vague, no ano
em que o movimento francês completa seu 50.º aniversário. Ele traz ao Lido
um filme chamado Pic Saint Loup, com a atriz cult Jane Birkin e o italiano
Sergio Castellitto no elenco. Há mais franceses na disputa, como Patrice
Chéreau (Persécution), Jaco van Dormael (Mr. Nobody) e Claire Denis (White
Material), com Isabelle Huppert no elenco, uma devoradora de prêmios.
A seleção contempla também várias produções norte-americanas: A Single Man,
de Tom Ford, Bad Lieutenant, do alemão Werner Herzog, agora filmando nos
EUA, Survival of the Dead, de George Romero, Life During Wartime, de Todd
Solondz e The Road, de John Hillcoat. Também dos Estados Unidos vem o único
documentário do concurso: The Capitalism, do provocador Michael Moore que,
com certeza, provocará frisson no Lido com suas declarações bombásticas e
frases de efeito. Tomara o filme, que se pretende crítico ao sistema
econômico dominante, tenha substância que justifique o discurso do cineasta.
O perfil da mostra veneziana de 2009 é semelhante ao de outros anos. Veneza
será uma mostra europeia, com grande participação norte-americana e olhar
voltado para o Oriente. É a marca do diretor Marco Müller, romano, sinólogo
de formação e filho de brasileira. Como qualquer diretor de festival de
ponta europeu, ele privilegia a produção do continente, abre espaço generoso
para os Estados Unidos e procura alternativas de linguagem cinematográfica
em outras paragens. Seu olhar tem se fixado no Oriente, até por uma questão
de formação e gosto. E prestado pouca atenção à América Latina, pelo menos
na competição principal.
Ano passado, Müller foi acusado de proteger demais a produção italiana e
sobrecarregar o festival com filmes sem condições de competir. Em 2009
aliviou um pouco a dose. Além de Tornatore, disputam o Leão mais dois
italianos: La Doppia Ora, de Giuseppe Capotondi, e Il Grande Sogno, de
Michele Placido. Mas, claro, um batalhão de italianos se distribui
generosamente pelas outras mostras de Veneza. Quanto aos filmes de "outras
geografias", estão mais raros este ano: Tetsuo Bullet Man, do Japão, Lei
Wangzi, da China, Between Two Worlds, do Sri Lanka, Levanon, de Israel e El
Mosafer, do Egito.
Mas estamos falando apenas do concurso principal, 24 títulos selecionados de
2.519 pretendentes. Veneza, na verdade, é uma maratona do cinema. Há vários
filmes fora de concurso, entre eles alguns obrigatórios, como o novo Abel
Ferrara (Napoli, Napoli, Napoli) e The Hole, do também cult Joe Dante, além
da nova star do clã irianiano Makhmalbaf, Hana, que dirige seu Green Days. A
destacar, entre os fora de concurso, um incrível Rambo, agora sob a forma do
director?s cut. "Versão do diretor" de Rambo, com a devida homenagem do
festival a Sylverter Stallone. Ora, se Gramado homenageou a Xuxa, por que
Veneza não pode prestar tributo a Stallone, não é mesmo?
Entre bizarrices dessa ordem, sobra espaço e muito espaço para o que é de
fato importante. O diretor Akira Kurosawa (1910-1998) é lembrado por seu
centenário de nascimento. Centenário antecipado, diga-se, poIs o grande
cineasta japonês nasceu em março de 1910. Mas compreende-se: foi em Veneza
que Kurosawa começou a ser conhecido no Ocidente ao vencer o Leão de Ouro em
1951 com Rashomon. Ele voltou a ganhar um Leão de Ouro, desta vez pela
carreira, em 1982. É, portanto, um personagem importante da história do
festival, que não quis perder a efeméride.
O festival começa hoje para valer. Mas para ontem estava programada a
homenagem a Mario Monicelli, que continua ativo e de ótimo humor, em seus
esplêndidos 94 anos. Para saudá-lo, o festival reservou aquela que é a mais
mágica das suas noites de gala: uma projeção ao ar livre em uma das lindas
praças da cidade - o Campo San Polo, onde a multidão poderia ver no telão um
dos clássicos do velho diretor, A Grande Guerra, que, há exatos 50 anos,
dividia o Leão de Ouro com De Crápula a Herói, de Roberto Rossellini. Que
tempos aqueles, do cinema italiano...
(©
Estadão)
O filme que leva inovação a Veneza
Marcelo Gomes explica como nasceu Viajo Porque Preciso, Volto Porque te
Amo, dirigido em parceria com Karin Aïnouz
Luiz Zanin Oricchio, VENEZA
Na sexta-feira, o Festival de Veneza verá um filme brasileiro com título que
parece tirado daquelas mensagens de para-choques de caminhão, Viajo Porque
Preciso, Volto Porque te Amo. O longa, que mescla de maneira criativa a
linguagem do documentário e da ficção, é dirigido por Marcelo Gomes e Karin
Aïnouz, que já tiveram sucesso em suas carreiras individuais. O cearense
Karin com Madame Satã e O Céu de Suely. O pernambucano Marcelo com Cinema,
Aspirinas e Urubus. São diretores de ponta do cinema nacional contemporâneo
e concorrem na mostra Horizontes, que privilegia a inovação da linguagem
cinematográfica. Abaixo, a entrevista com Marcelo Gomes.
Primeiro, queria saber sobre a ideia de dirigir em parceria, vocês que já
haviam tido experiências individuais bem-sucedidas. Qual foi o desafio de
dirigir "a quatro mãos"?
Começamos a colaborar em 1996, quando éramos jovens, na época dos nossos
primeiros longas. Foi tão prazeroso trocar ideias sobre esses roteiros que o
filme vem como resposta à necessidade de fazermos algo juntos. É um trabalho
que se dá através do diálogo, da discussão e raramente estamos de acordo num
primeiro momento. Mas, no fim dá tudo certo porque temos um desejo similar
em relação ao cinema: do que gostamos de ver, do que admiramos e o mais
importante: do que queremos descobrir, de novos caminhos, do desejo de
"bagunçar"com a linguagem cinematográfica, de pensar novas narrativas, no
meio-fio entre o documentário, a ficção e as artes plásticas. Na realidade,
Viajo Porque Preciso é nosso primeiro longa, que começamos há dez anos e
acabamos agora.
Achei bem original a ideia da voz off o tempo todo. O protagonista que
não aparece. Como surgiu? Que impacto pode ter no espectador?
O filme é como um diário de viagem e os diários, a priori, não são feitos
para serem lidos porque são secretos, íntimos, impressões particulares sobre
o mundo. Imaginar a quebra desse segredo foi nossa estratégia, o ponto de
partida. A narrativa em primeira pessoa expõe a intimidade, as dúvidas, a
vulnerabilidade do personagem. Nossa ideia é que o personagem fosse viajando
e fazendo fotos, filmes, gravações, fitas cassete com músicas, juntando
objetos, sons, ou seja, um personagem que colecionando impressões para
transformá-las num álbum ou diário audiovisual. É necessário ver um
personagem para um filme ser narrativo? É preciso que a narrativa tenha
causalidade para o filme existir? Precisamos ver o protagonista para se
identificar com ele? Cada espectador pode construir o personagem que
imaginar.
Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, que título, hein? Fale um
pouco sobre ele. Parece mensagem de para-choque de caminhão...
Nosso personagem Zé Renato é geólogo da classe média que viaja pelo sertão e
vai se contaminando por aquela paisagem, por aqueles universo da estrada,
das frases de caminhão, dos desenhos no banheiro, das músicas que escuta no
rádio. Então as imagens refletem os sentimentos de Zé Renato que está
passando por um momento de desenlace amoroso e aquela frase, escrita no
banheiro e usadas em muitos para-choques de caminhão, se cristaliza em seus
pensamentos. A trilha sonora também são músicas românticas que escutamos
durante as filmagens. Tem desde o Noel Rosa, da década de 1930, às músicas
pop que o personagem fica ouvindo o tempo todo enquanto está viajando,
passando por uma trilha sonora composta especialmente para traduzir as
sensações dele. Há também a música Morango do Nordeste que tocava em todo
lugar quando nós estávamos viajando por aquela região. Não tinha como fazer
o filme e não colocar.
Filme de estrada para conhecer a realidade do Brasil. Esse é o mote?
As impressões do Zé Renato, mesmo particulares, revelam um mundo ao redor. E
esse mundo ao redor é um Brasil em transformação. Um mundo híbrido, entre o
artesanal e o tecnológico, um Brasil rural que vive um processo de
modernização desenfreada. Essa seria uma fricção revelada, entre o rural e o
urbano, mas há outras, como o documentário e ficção, o íntimo e o público, o
que é o cinema e o que será o cinema.
É uma ficção com viés documental? Um doc ficcional? Mescla dos dois? Como
vocês veem o intercâmbio desses dois gêneros hoje? Depois do Coutinho ficou
difícil definir os gêneros. E o filme de vocês acho que acrescenta mais um
desafio à coisa.
Viajo é uma experiência, um ensaio cinematográfico. Já fizemos instalações,
já trabalhamos com documentário, escrevemos ficção. Nosso desejo é procurar
caminhos para contar histórias utilizando diferentes suportes, fundindo
linguagens. O filme foi, afinal, um exercício de costurar, um bordado de
emoções. Nas artes plásticas, no campo da videoarte há muita apropriação de
material ficcional para construir um documentário e vice-versa. Estamos em
2009. O cinema, como o mundo, passa por um momento de reinvenção. O
videogame, os quadrinhos, os filmes feitos em celulares, a música gratuita,
os jogos interativos, os sites de relacionamento. Nunca a narrativa linear
foi tão colocada em questão, nunca o cinema foi tão infectado por um meio de
comunicação como a internet. O filme veio como necessidade de dialogar com
fotolog, youTube, internet, de uma vontade imensa de olharmos para um estado
de coisas que nos atiça. O frescor do erro e acerto, de buscar sem a
obrigatoriedade de acertar. Para nós, é um filme de aventura também. Um road
movie, como gênero, é de aventura, e esse filme é o registro de uma
aventura, dentro de um âmbito de alegria. Viva o prazer de fazer cinema, e
de não saber fazer cinema. Viva o prazer da invenção.
Mas também trata de uma história de amor, ou desamor, ou cura do amor
perdido. Ele tem um tom desalentado, até no registro fotográfico.
A identidade masculina está em crise. Por crise não digo problema, mas
mudança. O masculino passa por um momento que aponta para uma mudança de
rumo, para um outro desenlace. O papel do homem como pai, como marido tem
mudado significativamente. A própria identidade masculina está em processo,
está sendo ?rearrumada?. O mundo vai ficando cada vez mais complexo e, de
uma forma ou de outra, é interessante tecer um contraste entre diálogos e
transições e falar de sentimentos eternos. Estavam em Shakespeare, estavam
nas tragédias gregas, estão por aí desde sempre: o amor ou o desamor. O mais
interessante é descobrir um caminho particular para falar de algo universal,
que é a solidão, o abandono, um mundo em transmutação. O nosso é um
melodrama que se enrosca em um filme de estrada, com um personagem aferrado
à terra, um geólogo, um macho - um macho que às vezes é impotente, e que às
vezes explode de tesão. Não lidamos com o clichê da mulher abandonada, mas
com um homem que diz tudo que não tem coragem de dizer, só que para um
gravador no meio de um deserto. No filme, as águas que serão transpostas
para inundar essa região são espelho do que o personagem sente. Ele crê num
lugar utópico, mas a utopia é um não-lugar, um embate: onde você está agora
versus onde você queria estar. José Renato quer continuar a viver, mas não
sabe o que será dessa vida.
Ao mesmo tempo, a questão social do interiorzão do Brasil está bem
inscrita na tela. A ideia foi fazer uma mescla das duas coisas?
Nosso cinema é de personagem, ele está no centro de tudo. Por isso, a trilha
sonora tem faixas construídas para traduzir o sentimento desse personagem.
As imagens são experiências do personagem atreladas aos sentimentos dele.
Ele levou um pé na bunda e estabelece uma relação com aquele lugar por onde
viaja. De início, parece nostálgica e romântica, mas aos poucos vai se
tornando real. Desse modo, a música também faz parte da narrativa emocional
do personagem, da construção de uma história guiada pelas emoções e
sensações, que é o que nos interessa. E o Brasil está ali presente, um
Brasil particular, próprio mas real.
(©
Estadão)
Salles ganha prêmio pela ''espiritualidade''
Cineasta de Central do Brasil e Linha de Passe fala do tributo que recebe
sexta, em nome dos valores espirituais de seus filmes
Luiz Zanin Oricchio
O cineasta brasileiro Walter Salles é um dos homenageados do Festival de
Veneza. Na sexta-feira, o cineasta receberá o Prêmio Robert Bresson, criado
a partir da 10ª edição do festival. Segundo os organizadores, Walter foi
escolhido pela contribuição de sua obra como "testemunho importante do
difícil caminho em busca do significado espiritual de nossa vida". Antes
dele, receberam a mesma distinção diretores como Giuseppe Tornatore, Wim
Wenders e Aleksandr Sokurov.
O que diz sobre essa homenagem de Veneza? Ela o surpreendeu?
A maioria dos cineastas que já ganharam o Prêmio Robert Bresson tem uma
filmografia muito mais ampla do que a minha. É o caso de Manoel de Oliveira,
Sokurov, Angelopoulos, o próprio Wim Wenders. Há também o fato de que o
prêmio porta o nome de um dos mais rigorosos cineastas de todos os tempos, o
que me fez pensar bastante antes de aceitar. Nesse sentido, entendo o prêmio
como um olhar generoso sobre os filmes que já realizei e como incentivo aos
que espero ainda dirigir.
A homenagem é feita a cineastas que trazem, em seus filmes, valores
espirituais (acho que no sentido largo do termo, não religioso). Você tem
sempre isso em mente quando elege um projeto e quando o filma?
Para mim, o ponto de partida é sempre a questão da busca da identidade, em
como os personagens se redefinem no embate com o mundo. A sensação de
deslocamento, de não pertencimento, está na base de quase todos filmes que
dirigi ou codirigi. Os valores espirituais eventualmente associados a essa
busca são, se é que existem, uma consequência dessa escolha inicial. Para
que o contrário aconteça, ou seja, para que o que se entende como
"espiritualidade" seja parte integrante da concepção de um filme, é preciso
olhar para os mestres que foram Tarkovski ou Kieslowski, por exemplo. Em
Andrei Roublev ou O Decálogo, as indagações metafísicas são a razão de ser
desses filmes. O mesmo poderia ser dito de O Céu Sobre Berlim, do Wenders.
Gostaria de ter a mesma imaginação, mas não tenho.
O nome do prêmio é Robert Bresson. Qual o seu contato com a obra desse
diretor?
Bresson me marcou não só como cineasta mas também como pensador. Ele é um
daqueles raros diretores que soube ao mesmo tempo transformar o cinema pela
ação e pelas ideias. Pickpocket e Um Condenado à Morte Escapou foram filmes
importantes nos anos de formação, e também gosto muito de Au Hasard
Balthazar. Há nos seus filmes um sentido de alargamento do tempo, uma
valorização dos silêncios, um rigor na maneira de olhar ou enquadrar que só
têm igual em Dreyer. A forma como ele usou não-atores ou conceitualizou o
"fora de campo" em seus filmes teve um impacto duradouro - o novo cinema
chinês ou cineastas como Kiarostami não seriam os mesmos sem Bresson. É
cinema que não mente. Há também rara qualidade libertária em seus filmes: em
Um Condenado Escapou, a câmera permanece o tempo inteiro solidária ao homem
na prisão, mas os sons que ouvimos são os da rua. Ou seja, aquilo que está
além muros, aquilo que imaginamos, é mais importante do que a prisão que
vemos.
Em artigo recente, você discutiu a dificuldade do cinema de autor
contemporâneo. Como é possível para o cinema de autor não perder essa luta
tão desigual contra o cinema de puro entretenimento?
Em primeiro lugar, não acho que exista uma simples oposição entre cinema
comercial e cinema de autor. Pegue Chaplin, por exemplo: o mais popular de
todos os cineastas da história do cinema era ao mesmo tempo diretor,
roteirista, ator, montador e compositor da trilha sonora de seus filmes.
Ninguém levou a noção do "autor" tão longe quanto Chaplin. Ao mesmo tempo,
ninguém fez um cinema tão inteligente e acessível. Se existe uma real
oposição, ela se dá entre o cinema independente e o cinema mecânico,
repetitivo, feito para passar em centenas de salas dos shoppings. Num ensaio
que um amigo me fez ler há pouco, John Berger diz que "o cinema é aquilo que
leva na direção do desconhecido; no cinema, somos todos viajantes". Veja o
caso recente do filme de Alain Resnais que ficou mais de um ano em cartaz em
São Paulo. Quando um filme bate no nervo e oferece algo que não foi visto ou
sentido, o público vem.
Em sua opinião, quem continua a fazer esse tipo de cinema hoje em dia?
Jia Zhang-ke. Para mim, é quem melhor encarna o que o cinema deveria ser. É
um cinema de um humanismo seco e cortante, que ajuda a entender o mundo em
que vivemos.
Queria que falasse sobre o homenageado Mario Monicelli, de 94 anos.
Sou fã incondicional de Monicelli. Não só do maravilhoso Exército de
Brancaleone, mas também de Meus Caros Amigos ou Parente É Serpente. Há uma
mordacidade, um olhar ao mesmo tempo anárquico e libertário em seus filmes,
que são essenciais.
(©
Estadão)
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