Bolívar Torres A inspiração vem de
histórias de um autor italiano do século 14, temas
libidinosos e anticlericais declamados em versos,
ocorrendo em espaço e tempo indefinidos e fabulares.
O inusitado conceito da minissérie Decamerão – A
comédia do sexo precisou de um pequeno teste – ou
piloto, para usar um termo televisivo – antes de
ganhar sua versão mais longa, que estreia nesta
sexta-feira. Depois de iniciar com sucesso como um
especial para a Rede Globo em janeiro, o programa
vai ao ar finalmente em seu formato previsto, quatro
episódios de aproximadamente uma hora. A ousadia do
projeto, que tem direção e roteiro de Jorge Furtado,
junta-se à da recente Som & fúria, de Fernando
Meirelles, na tentativa de expandir a linguagem
televisiva.
– Espero que continuem abrindo cada vez mais
espaços para programas mais radicais – comenta
Furtado, que diz ter acompanhado e apreciado desde o
início a minissérie de Meirelles. – O mérito deles é
justamente o de experimentar, independentemente do
resultado artístico e comercial. O único limite da
TV é a audiência. Tudo que se faz no cinema dá para
fazer na televisão. Já produzimos coisas que ninguém
imaginava que poderiam ser feitas, como o TV Pirata,
por exemplo. Mas, como se trata de uma indústria
autossustentável, a única questão é saber quantas
pessoas vão assistir.
Havia suspeitas de que o exotismo da proposta
estética, que põe em cena atores declamando versos,
somada à indefinição geográfica/temporal e à forte
carga sexual da trama, pudesse afugentar um público
televisivo conservador, tradicionalmente acostumado
à escola naturalista das novelas. Mas os índices do
especial exibido no início do ano permitiram a
Furtado e seus colaboradores (Ana Luiza Azevedo na
direção e Carlos Gerbase, Adriana Falcão e Guel
Arraes no roteiro) a irem ainda mais longe – é, ao
menos, o que garante o cineasta.
Grande salada
O princípio segue o mesmo: uma adaptação livre de
algumas das 100 – ou 101 – histórias que o escritor
pré-renascentista italiano Giovanni Boccaccio reuniu
entre 1349 e 1353 em seu livro Decamerão. Enquanto o
especial se servira de três delas para construir sua
trama, a versão estendida se apropriou de oito.
Mesmo assim, não há uma única palavra de Boccaccio
no programa. Diferentemente do original, que se
passa nos arredores da Florença atingida pela peste
bubônica na Idade Média, a adaptação de Furtado cria
universo próprio, com uma linguagem verbal repleta
de referências à cultura popular brasileira de todas
as épocas.
– Filmamos na serra gaúcha, numa aldeia
montanhosa... Eu até brinco que a minissérie é
"inspirada em Boccaccio, Shakespeare e Asterix", por
causa da semelhança do lugar com a aldeia do gaulês.
Mas não se trata de uma época ou de um país que
exista. É tipo fábula: "Há muito tempo, num lugar
distante..." – esclarece Furtado. – Os figurinos e
as casas foram tirados de um período entre 1800 e
1900, para remeter à imigração italiana. É uma
grande salada: num momento um personagem começa a
cantar.
O livro de Boccaccio se passa num contexto bem
específico: a Itália pré-renascentista do século 14,
na qual uma classe burguesa começa a ascender em
meio ao feudalismo teocêntrico. Para fugir da peste
bubônica, 10 jovens (sete mulheres e três rapazes)
de Florença se reúnem num campo paradisíaco – um
contraponto à cidade devastada pela doença. Entre
banquetes e festas, decidem contar, a cada dia, 10
histórias para passar o tempo. As narrativas mostram
personagens pouco preocupados em desrespeitar os
preceitos religiosos, em atitudes anticlericais que
trocam os dogmas pelo bom senso e a iniciativa –
sinal evidente do surgimento de uma secularização da
política, da economia e dos costumes.
Os roteiristas do programa recuperam à sua
maneira algumas destas histórias. Os quatro
episódios transitam entre três núcleos: Monna
(Deborah Secco), uma criada que, para herdar a
fortuna de seu ex-patrão Spininellochio (Tonico
Pereira), casa-se com seu filho, Tofano (Matheus
Nachtergaele); Filipinho (Daniel de Oliveira), um
comerciante que ama sua esposa (Leandra Leal), mas
que não consegue lhe ser fiel; e Isabel, que vive
perturbada por sonhos eróticos com Masetto (Lázaro
Ramos), mas que também não hesita em dar atenção
para o Tenente (Felipe de Paula).
Liberdade na TV
– São personagens arquétipos, criados
espertalhões, maridos cornos, amantes que sobem pela
janela... – analisa Furtado. – Foram fontes
posteriores de diversos artistas, como Molière e
Shakespeare. Neste sentido, a fidelidade total não
interessa, porque eles funcionam em qualquer lugar e
qualquer época. Por isso, acredito que o Decamerão
popular pode dar certo na TV.
O diretor, que desde o início da carreira alterna
trabalhos para o cinema e televisão, afirma que
sempre teve a mesma liberdade criativa nos dois
veículos.
– Mesmo esta questão da autoria sendo subjetiva,
no meu caso sempre consegui imprimir um trabalho
autoral na TV, às vezes até mais do que no cinema –
diz. – No cinema, dependendo do tamanho da produção,
pode-se ficar refém da opinião de um produtor, por
exemplo... Sempre trabalhei nos dois veículos e
conheço a peculiaridade de cada um. Algumas coisas
funcionam melhor numa sala escura e tela grande,
enquanto outras numa sala com luz acesa e tela
pequena. Não existem regras do que funciona num e do
que funciona noutro. Cada caso é um caso.
(©
JB Online)
Assim Jorge Furtado define a versão de
Boccaccio que estreia na Globo
Patrícia Villalba
A televisão recebe uma safra de produções com
pedigree de cinema, um tipo de parceria que se
torna cada vez mais frequente. Fernando
Meirelles fez Som & Fúria, que foi ao ar no
começo do mês, na Globo. Beto Brant fez O Amor
Segundo B. Schianberg, um reality show
experimental da TV Cultura. E, também para a
Globo, Jorge Furtado fez algo quase artesanal:
uma série de quatro episódios, baseada no
Decamerão escrito por Giovanni Boccaccio no
século 14, toda interpretada em versos. "É uma
experiência radical", define o diretor, que
conversou com o Estado durante as gravações do
programa, na Serra Gaúcha, em maio.
A série, que estreia às 23 horas, traz
um elenco de grandes nomes - Lázaro Ramos,
Deborah Secco, Matheus Nachtergaele, Daniel de
Oliveira, Leandra Leal, Drica Moraes e Edmilson
Barros -, que interpretam personagens bastante
arquetipais da Comédia Dell'Arte.
São eles que amenizam qualquer resquício de
radicalismo do texto, que resulta numa história
leve e divertida, sobre sexo e dinheiro. O
formato passou no teste de sucesso num programa
especial que foi ao ar no dia 2 janeiro, e
conseguiu 29 pontos no Ibope.
Nesta entrevista, o diretor gaúcho, que também
escreveu o roteiro, fala sobre o processo de
criação da série, uma verdadeira volta à fonte
da dramaturgia: "A dramaturgia moderna, do
século 19 para cá, tem essa coisa da
desdramaturgia. Pode ser interessante como
forma, mas é passageiro como o fax."
Como surgiu o projeto de Decamerão, que é tão
diferente do que você faz, sempre tão
contemporâneo?
Queria fazer alguma coisa de dramaturgia em
verso. E também com o Decamerão, que é uma
coletânea incrível de histórias. Foi muito
apropriado, porque são fábulas, todas de humor,
erotismo, com truques e artimanhas, que poderiam
reunir uma trupe da Comédia Dell'Arte.
E eu vinha na batida da comédia dell''arte desde
Saneamento Básico (2007). Pensei em usar os
contos do Decamerão, que podem ser interpretados
pelos sete personagens da comédia dell'arte:
é o triângulo amoroso - o marido rico, avarento
e ciumento, a mulher que o trai, e um falso
padre, que é o amante -, o casal de criados e o
casal romântico. É uma experiência bem radical,
por isso fizemos um piloto.
Qual era o receio? O fato de ser interpretado
em versos?
É. Há um preconceito contra a poesia, de que ela
vai resultar em algo erudito e não popular. Mas
eu argumentei que não, que a poesia é muito
popular no Brasil através da música.
Antes de gravar, os atores ensaiaram por uma
semana. É o texto que pede uma preparação
especial?
Sim, mesmo trabalhando com essa trupe de
comediantes, todos grandes atores. Para fazer
uma história assim, não há improviso nenhuma.
Não pode dizer "ui" fora do texto, senão vai ter
de rimar com "fui" em algum lugar. Tem de
ensaiar bastante, para ficar bem coloquial.
Senão, fica declamado feito "batatinha quando
nasce", horrível.
Os personagens da série são bastante
arquetipais. E o curioso é que a teledramaturgia
de hoje busca obsessivamente por personagens
ambíguos - o mocinho que não é exatamente
mocinho, o vilão que não é totalmente vilão. É
como se você, que não é um cara de televisão,
fosse para trás.
Exatamente, a ideia é essa. A gente sabe mais
sobre os personagens do Shakespeare em três
falas deles do que sobre os personagens de
Ulisses em mil páginas. Tu entendes muito
claramente e rapidamente por causa disso que tu
dissestes: eles são arquétipos. O marido chega
em casa e pergunta "mulher onde você estava?" E
você imediatamente entende que é o marido
ciumento. Acho isso muito rico. Essa outra
vertente que tu ressaltastes, que vai para o
lado do realismo e da ambiguidade, chegou a um
beco quase sem saída. O Borges disse que o
romance russo provou que ninguém é impossível.
São personagens tão complexos que é muito fácil
inventar: todo mundo pode ser tudo ao mesmo
tempo.
É ir à fonte da dramaturgia.
É ir para trás, sem dúvida, até onde as
histórias começaram. São personagens básicos,
que têm os instintos mais primários, que resumem
a dramaturgia. A dramaturgia moderna, do século
19 para cá, tem essa coisa da desdramaturgia.
Pode ser interessante como forma, mas é
passageiro como o fax. Uma tecnologia
passageira, daqui a pouco ela já era.
Você usa película 16 mm na série. Por que não
se rendeu ao HD?
Por que eu sou um cabeça-dura. Tem algumas
câmeras novas, tipo a Red, que o Fernando
(Meirelles) usou em Som & Fúria, que são
pequenas e têm uma qualidade de imagem
comparável à película. Mas é ainda uma coisa
muito nova. Fiz um curta em HD e aquela coisa de
ficar trocando o cartão de memória, fazer
back-up do cartão, dá problema e não sei mais o
quê. O 16 mm funciona muito bem, é uma
camerazinha pequena, põe no ombro vai ali e faz.
E outra: tu botas um negócio em película no meio
de uma programação de TV, nossa...?
O mercado de coprodução com a TV está
fervendo. Você tem uma produtora fora do eixo
Rio-São Paulo e trabalha para a Globo. Como é?
É bacana, estou feliz da vida, porque a
coprodução está aumentando, e diversifica a TV.
Se tu produzes sempre dentro da casa, as coisas
ficam meio parecidas, inevitavelmente. Mas se tu
mandas o negócio para Pernambuco, Minas ou Rio
Grande do Sul, fica diferente. Outra coisa é
este cenário aqui, que é uma coisa muito
específica. Não gosto muito de filmar em
estúdio. A locação tem uma vivência que é quase
um personagem.
E a liberdade que você tem, é total?
Total não existe nunca. Mas é uma liberdade
grande, que tem a limitação do tempo, do custo,
do clima. O erotismo do nosso Decamerão tem um
limite de televisão, então eu não posso fazer
cenas muito fortes de sexo. E nem quero, porque
não acho que combine com comédia. Umas pessoas
nuas transando não é engraçado - não tem como
passar disso para a piada. Então, nosso erotismo
é soft. Mas tem muita sacanagem, erotismo
sugerido. É uma tradição da poesia brasileira,
aquela coisa "ela deu o rádio e não me disse
nada", do Genival Lacerda.
Mas o subtítulo da série - A Comédia do Sexo
- dá impressão de algo muito mais picante do que
realmente é.
Sim. Tem um monte de sexo - mas eles rolam na
cama e acabou. Acho mais legal, e muito mais
erótico para falar a verdade, porque dá margem à
imaginação. Tu não consegues fazer algo tão
incrível quanto podes imaginar. Tem alguns caras
que filmam sexo brilhantemente, como o
Almodóvar, mas é muito difícil. Só tem uma coisa
mais difícil de encenar do que sexo: futebol.
Nos Bastidores
HITS: Decamerão se passa numa época e país não
definidos. Mas a trilha sonora é a música
brasileira, de vários tempos - Chiquinha
Gonzaga, Patápio Silva, Chico Buarque, Jovelina
Pérola Negra, Noel Rosa, Jorge Mautner e Seu
Jorge.
FETICHE: No papel do falso padre Maseto, Lázaro
Ramos faz o quinto trabalho com Jorge Furtado,
todos filmados no Rio Grande do Sul. "Ele já é
quase meu ator fetiche", diz o diretor. "Estou
pronto para pedir a chave de Porto Alegre",
brinca Lázaro.
SET: A série foi rodada em Farroupilha e
Garibaldi, na Serra Gaúcha. Casas originais do
século 19 foram utilizadas como cenário, além de
objetos de cena cedidos por colecionadores.
JORNADA DUPLA: Edmilson Barros, o Calandrino da
série, aproveitou as férias para participar das
gravações - além de ator, ele é engenheiro da
Petrobrás.
SUSTENTÁVEL: Nas gravações, foram abolidos os
copos descartáveis e cada membro da equipe
recebeu uma caneca reutilizável. "Fizemos a
conta: poupamos 10 mil copos descartáveis",
conta Furtado.
(©
Estadão)
Furtado usa poesia para contar "história de corno"
Diretor de "Decamerão", que estreia hoje, retrata
triângulo amoroso em versos
Roteirista diz que usou rima na série com Deborah
Secco e Lázaro Ramos "porque é bonito e estabelece
uma fronteira com o realismo"
AUDREY FURLANETO
DA SUCURSAL DO RIO
"Tem uma história muito boa", conta o diretor Jorge
Furtado. "Manuel Bandeira passava em frente a um
hotel no Rio que se chamava Península Fernandes. Um
dia, entrou e perguntou ao dono: "Por que esse
nome?". E o cara disse: "Fernandes porque é meu
nome, península porque é bonito"." É assim que
Furtado, 50, explica a razão de ter feito em versos
o texto da série "Decamerão", que estreia hoje na
Globo e terá quatro episódios, sempre às sextas. "É
em verso primeiro porque é bonito. Segundo, porque
estabelece uma fronteira com o realismo", justifica.
"Ninguém fala em verso. O teatro foi poesia até o
século 18, com Molière, Racine, Shakespeare. O
teatro sem verso é uma novidade, tem 200 e poucos
anos. A métrica já dá um tom que me interessa, de
não ser realista", diz ele.
Se o texto se distancia do realismo pelos versos,
a história não -ao menos na opinião do diretor de
núcleo da Globo Roberto Talma, que, em entrevista à
Ilustrada, afirmou que "Decamerão" é "uma
história de corno, de "a" que deu para "b", que deu
para "c'".
Furtado, que acumula trabalhos como roteirista e
diretor na Globo, como "Agosto" (1992) e "Comédias
da Vida Privada" (de 1995 a 1997), acha graça e faz
uma lista de outras "histórias de corno": "Dom
Casmurro", "Ulisses", "Tristão e Isolda", "Madame
Bovary", entre outros. E completa, rindo: "Talma,
essa história de corno não existe, é só uma coisa
que botaram na sua cabeça".
Na série, Monna (Deborah Secco) é uma criada que
se casa com o filho do ex-patrão, Tofano (Matheus
Nachtergaele), para herdar sua fortuna, mas está
apaixonada pelo falso padre Masetto (Lázaro Ramos).
Ela sai de casa dizendo ao marido que vai se
confessar e lá se vai uma história de corno.
Com "experiência de leitor de poesia", Furtado
fez a redação final em versos a partir de um texto
adaptado de "Decamerão", de Giovanni Boccaccio
(1313-1375), e gravou numa fazenda colonial em Bento
Gonçalves (RS). "Tem que ter um certo ouvido [para
escrever poesia], tem que escandir o verso, falar em
voz alta, pensar na sonoridade", diz. Durante um
ano, ele, Guel Arraes, Carlos Gerbase e Adriana
Falcão fizeram a primeira adaptação. Falcão, 49,
ajudou a criar os versos. "No começo, pensei em me
matar", brinca a roteirista de "A Grande Família".
"Aí, passei a tratar o texto como um quebra-cabeça."
Para ela, "o verso passa batido para quem vê,
graças à boa interpretação". O elenco não pôde
incluir improvisos para não comprometer as rimas.
Segundo Furtado, como alguns atores são mais
acostumados "àquela interpretação naturalista da
televisão", como a protagonista Deborah Secco, o
desafio era "transformar o texto num negócio que não
soasse como um recitativo". "O verso é só a cereja",
conclui Adriana Falcão.
DECAMERÃO
Quando: hoje, às 23h, na Globo
Classificação: não indicado a menores de 16
anos
(©
Folha de S. Paulo)
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