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Um ambientalista da literatura

11/07/2009

Ítalo Calvino
 

Como crítico, Ítalo Calvino é um ambientalista (se me permitem a metáfora) da literatura. Especializa-se no desenho, como disse na "Apresentação", das "linhas gerais" do jardim da arte, para que a água dos lagos não se deixe poluir pelo marketing, o consumismo e as adoções escolares. Por outro lado, desentranha do passado recente (em particular da grande literatura do século 19) a planta baixa da "cultura" literária, para que os andares ainda a construir da literatura não levem o combalido prédio da tradição a se esboroar, como se fosse edifício sob a responsabilidade de Sérgio Naya. Numa época em que, para o simples agrado das rentáveis amenidades dos meios de comunicação de massa, se desmata criminosamente a literatura, Calvino é uma Marina da Silva.

Aliás, Calvino não camufla a fúria quando depara com ficcionistas que tentam copiar as facécias popularescas da arte cinematográfica. No ensaio "Diálogo entre dois escritores em crise", reflexão dialógica sobre os impasses da ficção hoje, Calvino não titubeia: "Onde passa o cinema não pode crescer mais um único fio de grama. Muitos escritores ainda teimam em escrever romances concorrendo com os filmes e só conseguem alcançar resultados poeticamente pífios". Se em termos vanguardistas não esposa o "marco zero" dos futuristas, em matéria de estética ficcional é claramente a favor de terrenos férteis e improdutivos, à espera do cultivo laborioso: "O romance é uma planta que não cresce em território já explorado, precisa de terra virgem onde deitar suas raízes". O cavalo de Átila do cinema contra os sem-terra (MST) do romance.

Nessa linha de atuação crítica, o tripé que sustenta os ensaios de Assunto encerrado são o indivíduo, a natureza e a história (nessa ordem). Ao analisar os protagonistas dos romances de Leon Tolstoi, afirmará que é "na relação entre esses três elementos que consiste aquilo a que podemos chamar de épica moderna". Os três elementos permanecem firmes e resistentes no pós-guerra, mesmo frente ao cataclismo que representou a entrada em cena da école du regard, liderada por Michel Butor e Alain Robbe-Grillet. Foi, portanto, a leitura do romance Guerra e paz que fundamentou e serviu a Calvino para melhor explicitar o modo como o fio condutor tripartido – indivíduo, natureza e história ordenou sua genealogia crítico-literária: "Há um homem com sua consciência de si, da finitude de sua vida, há a natureza, como um símbolo de vida ultraindividual que houve e haverá depois de nós, há a história, seu fluir, sua busca por um sentido, seu entretecer-se de nossas vidas individuais, das quais passa a fazer parte o tempo todo".

O encanto por personagens

Estudantes habituados à lição poderosa dos grandes críticos literários, que se abalizam pelo conhecimento das teorias sociológicas ou dos marxismos ocidentais, logo sentirão que, discreta e indiscretamente, Calvino veio para baralhar os fundamentos clássicos dos estudos universitários brasileiros, ditados pelo binômio literatura e sociedade.

Em primeiro lugar, pela introdução de questões relativas ao papel capital do indivíduo na construção da sociedade. Essa proposta, que nos conduz aos pressupostos defendidos por Louis Dumont em O individualismo, acaba por oferecer a Calvino o modus operandi de leitura dos clássicos da modernidade, que levanta âncora e ganha o largo na análise dos complexos protagonistas criados pelo romance do Oitocentos. Seus ensaios começam, se alongam e terminam mais pelo encanto por personagens e menos pelo fascínio por tramas. Nessa linha, as observações sobre a introdução do personagem criança no romance são admiráveis e demonstram o olhar penetrante e o fino poder de análise do crítico. O interesse pelos meninos personagens, escreve ele, visa a demonstrar que, na postura de descoberta e de teste a partir do zero de vida, está traduzida a "possibilidade de transformar toda experiência em vitória, como só é possível para as crianças". Não é o personagem Qfwfq, em nada infantil, mas primevo, que salta aos olhos do leitor de As cosmicômicas?

Em segundo lugar, por ter substituído a análise da problemática social engajada pela responsabilidade do homem frente à natureza, que nos precedeu e certamente nos sucederá. Sua análise dos romances de Honoré de Balzac é paradigmática, pois é o francês "que descobre a vitalidade natural quase biológica, da grande cidade". A observação certeira do ambientalista vai direto ao clima e aos temas caros à prosa balzaquiana, dada até então como mera precursora do realismo: "Caminhos equívocos, salões luminosos, sórdidos entresols, prisões, casas de aluguel, são descritos com o vigor admirado – que não raro transcende em retórica – com que Bernardin de Saint Pierre ou Chateaubriand saudavam as florestas das Américas".

Por conta própria, acrescentemos que o olhar de Calvino, antes de ser o do sociólogo de plantão, é o do etnólogo ao modo de Lévi-Strauss. Para este, por exemplo, a ilha de Manhattan é a paisagem do Novo Mundo que se foi automodelando – na escala oferecida pela natureza majestática como metrópole. Naquela ilha, o homem deixou de ser a referência do urbanismo. A capital do século 20 não estava mais sendo construída à nossa medida, como as cidades europeias, mas à medida do selvagem e inóspito território que foi sendo desbravado a partir dos grandes descobrimentos. Árvore e cimento armado têm algo em comum, cujo segredo compete a nós desvendar para que a natureza se perpetue com nossa presença predadora.

Enfim, por recusar a estabelecer a possibilidade de um sujeito coletivo – as classes sociais –, que ditaria inexoravelmente o fluir e o sentido da história. De maneira ardilosa, Calvino dirá que, "na lírica, o termo história está implícito no eu do poeta". Não queremos dizer que é por pedantismo ou conservadorismo que o ficcionista e o crítico menosprezam as questões propostas pela leitura sociológica do romance ou do poema. Sua motivação é outra e menos ambígua do que pode parecer à primeira vista. Ei-la: "Também o ‘romance de denúncia’ dos problemas sociais está com seus dias contados. A política e a economia agora precisam de pesquisas documentadas e de análises baseadas em dados e cifras, e não de reações sentimentais e emocionais".

Ariosto e Pavese

Natural, pois, que Ítalo Calvino eleja como marcos da literatura italiana Ludovico Ariosto, no século 16, e Cesare Pavese, no século 20. Ambos são seu espelho, espelho de sua alma e de seu estilo. Inicialmente, fiquemos com Ariosto, a quem Calvino opõe de maneira singular Maquiavel. Glosemos uma passagem magnífica do ensaio "Três correntes do romance italiano de hoje". Ariosto é o "poeta tão absolutamente límpido, divertido e sem problemas, mas ainda assim, no fundo, tão misterioso, tão habilidoso em ocultar a si próprio". Ele é o poeta incrédulo "que tira da cultura renascentista um sentido da realidade sem ilusões". Continua Calvino: "Enquanto Maquiavel, munido do mesmo desencanto da humanidade, funda uma dura ideia de ciência política, Ariosto teima em desenhar uma fábula..." O conceito do cientista contra a metáfora do artista – nada mais atual.

Terminemos com Cesare Pavese, que serve a Calvino para definir com clareza e justiça o que entende por estilo, valor maior na sua literatura: "estilo não é a sobreposição de uma cifra e de um gosto [à linguagem], mas escolha de um sistema de coordenadas essenciais para expressar nossa relação com o mundo". O estilo ainda é o homem. A maior tarefa do crítico Calvino é a de desentranhar da análise dos personagens a personalidade de seu criador.

(© JB Online)


 

Ensaios de Ítalo Calvino iluminam literatura da 2ª metade do século 20

Silviano Santiago*, JB Online

RIO - Publicados entre 1955 e 1980, antes, portanto, do póstumo Seis propostas para o próximo milênio, os imperdíveis ensaios literários de Ítalo Calvino se encontram finalmente traduzidos ao português e reunidos em Assunto encerrado. Por recobrirem um período crucial para as artes europeias, quando o vento da renovação soprava sobre o velho continente ainda tomado pela expiação e o luto, a coleção serve para iluminar a vida literária no período e esclarecer várias facetas da personalidade do ficcionista e crítico italiano. A ser levantada pelo leitor, a primeira e mais previsível das incógnitas vira pergunta na curta e incisiva “Apresentação”. Por que e para que o romancista escreve ensaios? Ao respondê-la, Calvino se adentra por um caminho que se bifurca, a fim de salientar, pela dupla negação de lugares comuns, a originalidade de sua presença atrevida e precursora na literatura da segunda metade do século passado.

Dois paradoxos respondem, portanto, à pergunta inicial e inquietante. Não é para o sustento de sua ficção que o crítico dublê de escritor escreve ensaios, visto que raramente põe em prática no trabalho de arte o que prega na crítica. Não os escreve tampouco para os jovens colegas de ofício, já que crítico e ficcionista não têm vocação para “mestre, promotor ou agregador”. O romancista não aduba a ficção com o estrume da reflexão crítica, embora nela se chafurde com júbilo e deleite. Tampouco o crítico os escreve para tomar assento à frente de discípulos, embora seja um expositor impecável e persuasivo. Conclui: “Meu objetivo talvez fosse estabelecer algumas linhas gerais que servissem de pressuposto a meu trabalho e ao dos outros, postular uma cultura como contexto em que situar as obras ainda a escrever”.

De imediato, podemos enquadrar o crítico Ítalo Calvino na esteira de algumas almas literárias inclinadas ao diletantismo aristocrático, que estão a desaparecer na época dos equívocos pragmáticos, que é a nossa. Talvez seu irmão seja o europeu, hoje cidadão americano, George Steiner, autor de Depois de Babel. Como Calvino, Steiner é uma espécie de homem do renascimento que, com erudição, elegância e ironia, se especializa em desatar o intricado nó que a grande literatura ata com os cadarços da linguagem e da história. Vale dizer que os irmãos são abnegados beneditinos da tradição literária. Já os primos ricos de Calvino podem ser o poeta T. S. Eliot, autor do ensaio “A tradição e o talento individual”, e o multifacetado Jorge Luis Borges, compilador da História universal da infâmia. Ao lado de Calvino, ambos se distinguem por fazer render o peixe da crítica inteligente, sem pregar o padre-nosso aos lambaris.

Os quatro autores citados são como esses caminhões-frigoríficos que preservam a matéria putrescível e rara da literatura com o intuito de entregá-la tal e qual à eternidade.

O crítico antípoda de Calvino é o conterrâneo e contemporâneo Umberto Eco, que passa a representar aqui a genealogia dos críticos acadêmicos, cuja obra se alicerça em metodologias e princípios epistemológicos rigorosos, requerimento indispensável para que o trabalho analítico-reflexivo se aproxime disto a que as agências de fomento à pesquisa chamam de “ciência”. Refiro-me aos cientistas da linguagem dos linguistas aos semiólogos, e destes aos analistas de discurso.

O pós-moderno equipado

No frigir dos ovos literários, Ítalo Calvino é o menos modernista dos modernistas, e por isso é o mais bem equipado representante da pós-modernidade, tanto na ficção quanto na ensaística. O autor, que pertenceu ao grupo matemático de romancistas conhecido como Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle), não se aparenta a André Breton, que se especializou em declamar os mil e um manifestos do surrealismo para melhor expurgar os dissidentes. Nem se aparenta aos nossos queridos Mário de Andrade e Haroldo de Campos, cujo carisma inquestionável trabalhava a favor da aliança de discípulos diletos e pouco inspirados em torno das novas causas estéticas – seja o modernismo, seja a poesia concreta. Ai daquele que se transformasse em “diluidor”, para retomar o inquisitório termo de Ezra Pound. A realidade programática da pós-modernidade é a negação do manifesto. É a afirmação da potencialidade.

*Escritor e crítico literário

(© JB Online)

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