Exposição da pintura de estreia de Michelangelo, feita aos 12 ou 13 anos de
idade, mostra que ele chegou tão longe porque foi o artista certo
no lugar certo e na hora certa
André Petry, de Nova York
Quando tinha 12 ou 13 anos, Michelangelo
Buonarroti (1475- 1564) usou óleo e têmpera sobre uma tela de madeira e pintou
seu primeiro quadro. Chama-se O Tormento de Santo Antônio e está em
exibição no Metropolitan Museum of Art, em Nova York, onde ficará até 7 de
setembro. A suspeita é antiga, mas só agora, depois da remoção das camadas de
tinta aplicadas por antigos restauradores e das análises de raio X e
infravermelho, chegou-se ao veredicto de que se trata, de fato, da tela de
estreia de Michelangelo. A imagem que o artista escolheu para pintar é cópia de
uma gravura feita cerca de uma década e meia antes pelo alemão Martin Schongauer
(1448-1491). Há dois atrativos na exposição. O primeiro é simplesmente ver uma
obra de Michelangelo. O outro é descobrir que a gravura de Schongauer, cuja
cópia também faz parte da exposição, é artisticamente superior à tela de
Michelangelo. Gravurista de mão-cheia, Schongauer dá mais dinamismo aos demônios
que parecem impedir Santo Antônio de ascender aos céus e define-lhes os
contornos com uma exatidão ao mesmo tempo aguda e graciosa. O atraente, nessa
comparação, é que nem Michelangelo, nem mesmo ele, o artista genial, nasceu
pronto.
Seus afrescos, como os pintados no teto e na
parede do altar da Capela Sistina, no Vaticano, são icônicos, deslumbrantes. As
esculturas, como Pietà, Moisés e David, são tão esplêndidas que
parecem transformar mármore em carne. Mas, vendo-se de onde Michelangelo partiu
– sua primeira pintura é excelente para um garoto de 12 ou 13 anos, mas imatura,
tateante, promissora –, é inevitável indagar como é que atingiu mais tarde
alturas tão enormes. A resposta, aparentemente, é uma soma de talento
excepcional com circunstâncias históricas também excepcionais. Tanto que
Michelangelo só rivaliza mesmo com seus contemporâneos – entre eles, Leonardo da
Vinci (1452-1519), um dos primeiros a ver e se maravilhar com seu David,
de mais de 5 metros de altura. Nem o mais favorável ambiente físico e cultural
produz a genialidade de um
Michelangelo ou de um Da Vinci, mas circunstâncias muito adversas podem
exterminar um gênio artístico. Michelangelo teve tudo a seu favor: foi o artista
certo no lugar certo (a península itálica) e na hora certa (em pleno
Renascimento).
Ainda criança, fazia cópias exímias de estátuas gregas, pelas quais tinha
admiração inata. Foi ajudado pela feliz coincidência de que a Itália
renascentista ressuscitava os ideais e os valores estéticos do humanismo grego,
com seu culto à beleza, o que favoreceria a arte de Michelangelo, ele que tinha
a mesma obsessão helênica pela perfeição física, sobretudo do corpo masculino –
que apreciava por razões artísticas e também nas suas escapadelas noturnas com
belos rapazinhos. Até a arqueologia da época lhe foi favorável. Em 1506,
arqueólogos desenterraram Laocoön, a esplêndida escultura que muitos
consideram a obra-prima da Antiguidade. (Consta que Michelangelo acompanhou os
trabalhos de escavação em Roma.) Em seus quase 89 anos de vida, o artista foi,
quase sempre, um homem atormentado, como o Santo Antônio de sua primeira
pintura, mas, como que para compensá-lo dos demônios pessoais, em seu tempo,
mais que nunca, a arte permeou a vida.
Estava na política, na diplomacia, na vida
militar, na gastronomia, na moda, na religião. Os ricos e poderosos, dos papas
de Roma ao clã dos Médici em Florença, buscavam distinção social pela arte. Os
principais pontífices do tempo de Michelangelo – Júlio II, Leão X, Clemente VII
e Paulo III – competiram pelo título de o maior protetor das artes e lhe fizeram
encomendas que definiriam sua carreira, como os afrescos da Capela Sistina e a
monumental escultura de Moisés – para alguns críticos, sua maior
obra-prima. Certa vez, em busca de uma explicação para seu próprio fenômeno,
Michelangelo disse, brincando, que tudo se devia ao seu precoce convívio com o
mármore, pois sua ama de leite, coincidentemente, era filha e esposa de
cortadores de mármore. Quem vê O Tormento de Santo Antônio constata que
era, mesmo, só uma brincadeira.
(©
Veja)
Tonica Chagas
Alinari Archives/Corbis/Latinstock
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OBRA GIGANTESCA
David, de Michelangelo:
5 metros de altura e maestria |
Biógrafos de Michelângelo contam que, além de alguns desenhos, um dos
primeiros trabalhos dele quando começou a ser treinado no ateliê de Domenico
Ghirlandaio, em Florença, foi pintar uma cópia da gravura do alemão Martin
Schongauer mostrando Santo Antônio atormentado por demônios. Schongauer foi
o maior artista alemão antes de Dürer e suas gravuras começaram a circular
em Florença na década de 1480. Michelângelo, então um menino entre 12 e 13
anos, teria sido o único artista italiano a copiar aquela composição. A
cópia da gravura gótica marcaria o nascimento do maior gênio da arte
renascentista.
Apesar de alguns historiadores ainda terem dúvidas sobre a autoria do
pequeno óleo e têmpera sobre madeira (47 x 35 cm), em maio ele passou a ser
identificado como a primeira pintura do autor dos afrescos da Capela Sistina
e também a primeira a entrar para uma coleção americana. Adquirido pelo
Kimbell Art Museum, de Fort Worth, no Texas, por valor não revelado (mas que
segundo algumas pessoas do meio estaria na casa dos US$ 6 milhões), The
Torment of Saint Anthony estará em exibição numa das galerias de pintura
europeia do Metropolitan Museum, em Nova York, até 7 de setembro e sob um
título afirmativo: Michelangelo?s First Painting.
Especialistas do Met foram responsáveis pela limpeza e exames técnicos da
obra e endossam sua autenticidade como um trabalho saído das mesmas mãos que
criaram as esculturas Pietá, da Basílica de São Pedro, no Vaticano, e Davi,
da Accademia, em Florença.
Discute-se a autoria dessa pintura desde meados do século 19, quando um
barão francês a adquiriu em Pisa, na Itália. De lá para cá, ela só pertenceu
a coleções privadas. Antes de chegar aos Estados Unidos, foi exibida em
público apenas duas vezes, a primeira em 1874, em Paris, celebrada então
como uma legítima obra de Michelângelo, e depois em Florença, oito anos
atrás, tida como um trabalho sem autor definido, produzido no ateliê de
Ghirlandaio. Em 1960, tentou-se vendê-la em leilão na Sotheby?s de Londres
como uma pintura de Michelângelo, mas o lote não conseguiu comprador.
Em julho do ano passado, apresentado novamente com a vaga autoria "do ateliê
de Domenico Ghirlandaio", o quadro foi adquirido em leilão na Sotheby?s
londrina pelo marchand Adam Williams, que o vendeu ao museu texano. Dono de
uma galeria especializada em pintura de velhos mestres europeus localizada a
poucas quadras do Met, Williams pagou por ele 937.250 libras (o equivalente,
na época, a US$ 1,848 milhão) e o levou para ser examinado pelos
especialistas do museu nova-iorquino.
Mesmo assinando embaixo que o quadro é de Michelângelo, o Met não ficou com
ele porque, segundo um de seus representantes, "não era a hora certa, havia
outras aquisições sendo analisadas". Num acordo com o Kimbell, o Met teve a
chance de ser o primeiro a exibir a obra nos Estados Unidos.
Pintado sobre uma placa de álamo entre 1487 e 1488, The Torment of Saint
Anthony é tido como uma das únicas quatro pinturas de cavalete produzidas
por Michelângelo que sobreviveram a cinco séculos de história. As outras são
Doni Tondo, que está na Galleria degli Uffizi em Florença (criada por volta
de 1503, no período depois da Pietá e antes dos afrescos da Capela Sistina),
e as inacabadas Manchester Madonna (cerca de 1497) e The Entombment
(1500-1501), que pertencem à National Gallery de Londres.
ESCAMAS
Segundo escreveu Ascanio Condivi, ex-aluno de Michelângelo e um de seus
biógrafos, este lhe contara que, enquanto trabalhava na sua primeira
pintura, ia sempre ao mercado de peixes de Florença para aprender a desenhar
escamas, um dos detalhes que acrescentou ao copiar os monstros da gravura de
Schongauer. O quadro também é citado nas duas biografias de Michelângelo
escritas por Giorgio Vasari, em 1550 e 1568, e na elegia que Benedetto
Varchi fez no funeral do artista, em 1564.
Em Michelangelo?s First Painting, o Met exibe o quadro com duas peças do seu
acervo, um retrato de Michelangelo lá pelos seus 75 anos pintado por Daniele
da Volterra e um fac-símile da gravura de Schongauer.
Na pintura atribuída a Michelângelo, o santo flutua no ar cercado por nove
monstros como na gravura, mas a composição é mais compacta e ganhou uma
paisagem de fundo.
Em textos que relatam as análises e os exames técnicos feitos para
identificá-lo como a obra descrita pelos biógrafos de Michelângelo, os
especialistas do Metropolitan observam que um dos indícios particulares
sobre a autoria do quadro são técnicas de raspagem, incisão e relevo que
eram típicas dele, sobretudo no contorno de figuras. Essas mesmas técnicas
serviram de evidência para a autenticação das duas pinturas que pertencem à
National Gallery.
A autoria do quadro ainda deve render muitas discussões. Mas Keith
Christiansen, curador de pintura europeia do Met e organizador da exposição,
não se preocupa com as opiniões contrárias. Para ele, as evidências que
comprovariam ser este The Torment of Saint Anthony o mesmo que foi descrito
por Vasari são "excepcionalmente fortes" e, com o que se sabe sobre o
quadrinho, quem tem de provar que ele não é de Michelângelo é quem diz que
ele não é.
(©
Estadão)
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