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As máscaras de Calvino

08/07/2009

 

Ensaios sobre literatura, humor e política mostram a multiplicidade do autor de "O Cavaleiro Inexistente"

LUCIA WATAGHIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Elegante, brilhante, discreto, informadíssimo, sempre diferente e sempre igual, sempre agradável e "leve" (a "leveza" é a primeira das qualidades recomendadas para a sobrevivência da literatura no próximo milênio), Italo Calvino (1923-85) é hoje um dos autores de maior sucesso, quase unânime, de crítica e de público, na Itália e no "mondo".

No Brasil, já foram publicados dezenas de títulos de ficção e dois livros de ensaios do autor italiano ("Por Que Ler os Clássicos" e "Seis Propostas para o Próximo Milênio", ambos pela Cia. das Letras).
Está sendo lançado, na ótima tradução de Roberta Barni, mais um livro de ensaios, "Assunto Encerrado", a primeira coletânea a ser publicada (1980) pelo autor. O título assinala o encerramento de uma fase da vida de Calvino, que reconhece, com típico impulso ordenador, o valor da distância, que lhe permite reler seus ensaios fixados em seu lugar no tempo e no espaço, em sua justa luz e perspectiva.

O livro oferece um quadro extraordinariamente lúcido e claro da cultura e da literatura italianas do período e de suas relações com a cultura europeia e global, com ensaios sobre o romance (de Pavese a Vittorini a Gadda, Moravia, Pasolini e outros), uma releitura de "Os Noivos", de Alessandro Manzoni [1785-1873], três estudos sobre Fourier, textos de teoria e crítica e artigos sobre temas vários, como a comicidade de Groucho Marx [1890-1977] ou os desenhos de Saul Steinberg [1914-99], além de dois ensaios militantes -de grande peso no debate italiano sobre a questão da língua- em polêmica com [o escritor e cineasta Pier Paolo] Pasolini.

Apesar da grande variedade dos assuntos -e à luz da sua inteira produção-, aparece agora em perfeita evidência o fio vermelho que conduz (aqui e em toda sua obra de narrador e ensaísta) as reflexões do escritor lígure: sua preocupação central é sua própria posição, seu próprio papel no sistema de comunicação literária e na indústria cultural.

Personagem-autor

Por isso Calvino aponta constantemente para o "personagem-autor" que está atrás de toda obra, narrativa, poética, ensaística: "A condição preliminar de qualquer obra literária é esta: a pessoa que escreve tem de inventar aquele primeiro personagem que é o autor da obra. [...] É sempre apenas uma projeção de si mesmo que o autor põe em jogo na escritura, e pode ser tanto a projeção de uma parte verdadeira de si mesmo como a projeção de um eu fictício, de uma máscara."

E dedica-se portanto constantemente, e conscientemente, à construção (e à promoção no mercado) da longa série dos personagens-autores dos seus próprios escritos.

Seu personagem-autor é sempre lacônico: pelas mesmas razões por que ele mesmo é lacônico. Em uma carta (1954), Calvino defende seu laconismo, alegando que escreve "no escritório, ao ritmo febril da produção industrial que governa e molda até os nossos pensamentos" e mencionando outras razões de gosto e de caráter (porque é lígure; porque segue assim a lição dos "seus" clássicos; porque falar de sua própria "cara" e de sua própria "alma" lhe parece "vão e indecoroso").

A primeira das razões citadas, além de explicar ao menos em parte sua necessidade de concisão e essencialidade, denuncia (mas note-se: de passagem) o grave mal-estar do autor, prisioneiro -como todos os autores- do sistema de comunicação e de produção literária. Para fugir desse mal-estar, mas não desse sistema (retomo aqui uma tese do polêmico livro de Carla Benedetti "Pasolini contro Calvino", Pasolini contra Calvino), seu personagem-autor transforma-se incessantemente: o autor é obcecado pela necessidade de variação contínua.

Labirintos

Aparentemente escondido atrás da superfície geométrica das infinitas combinações ou nos labirintos das inumeráveis possibilidades narrativas, Calvino constrói máscaras sempre diferentes: do intelectual engajado que toma a palavra no "Miolo do Leão" ao especialista em cibernética de "Cibernética e Fantasmas" (é a fase em que o escritor italiano ingressa no grupo do Oulipo [Ouvroir de Littérature Potentielle, Oficina de Literatura Potencial], ao lado do amigo Raymond Queneau, de Georges Perec e outros, literatos e matemáticos; é a fase de seu máximo interesse por sistemas e códigos e da afirmação da literatura como "ars combinatoria") ao colecionista (este último é o personagem-autor da coletânea de ensaios "Collezione di Sabbia", Coleção de Areia, de 1984).

Mas o jogo das permutações é finito, e -esta é a outra face da perfeita superfície da obra de Calvino, de sua clássica e admirável prosa- tudo permanece dentro dos limites estabelecidos.

Na perfeição da prosa de Calvino, na clássica geometria das suas narrações, na sua clareza, no seu rigor mental, na sua suspeita, demasiada sintonia com o mercado, os leitores mais exigentes observam a ausência de uma autêntica força de impacto, capaz de buscar uma saída da prisão da indústria cultural.

No eterno sorriso de Calvino, reconhecem uma tendência a evadir a dura verdade (tendência italiana, como já observara Leopardi) e a afirmação de uma função consolatória e anestesiante (e não crítica) da sua obra. E, colocando de lado o perfeito Calvino, conjuram as forças do que é imperfeito, impuro, informe, inacabado -a última esperança de oposição ao labirinto.

LUCIA WATAGHIN é professora de literatura italiana na USP, organizadora de "Brasil e Itália -Vanguardas" (ed. Ateliê), entre outros livros.

ASSUNTO ENCERRADO
Autor:
Italo Calvino
Tradução: Roberta Barni
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500).
Quanto: R$ 49,50 (392 págs.)

(© Folha de S. Paulo)


 

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