Ian Kelly tenta ampliar em nova obra os limites do mito de Giacomo
Casanova
por Luiz Zanin
Oricchio
Muito além de um grande sedutor - esse subtítulo já mostra a que se
propõe Ian Kelly em sua biografia de Giacomo Casanova. Kelly deseja mostrar
que o veneziano, o mais perfeito símbolo do maratonismo sexual, tem muito
mais a oferecer ao distinto público do que suas façanhas de alcova. Que nem
foram tantas assim, constata, para decepção de alguns fãs do personagem.
Kelly, que é ator, escritor e chef de cuisine autodidata, constata que o
próprio Casanova ficaria pasmado se pudesse adivinhar que passaria à
posteridade por sua trajetória sexual. Era muito mais que um vulgar
colecionador de conquistas. Intelectual requintado e de saber enciclopédico,
sabia música, dominava a literatura do seu tempo, exercitava-se na alquimia
e na cabala, foi maçom, passou por médico e curandeiro espiritual. Escreveu
42 livros, traduziu a Ilíada de Homero do grego para o italiano e deixou um
romance de ficção científica em cinco volumes. E, claro, já que ninguém é de
ferro, dormiu com algumas das mulheres mais belas do seu tempo.
Casanova - Muito Além de um Grande Sedutor (tradução de Roberto Franco
Valente) é uma biografia bem pensada e bem pesquisada, ainda que raramente
recorra a fontes inéditas. A principal delas continua sendo a série de 12
volumes de A História da Minha Vida, memórias que um Casanova envelhecido
escreveu, compulsivamente, em seu retiro no castelo de Dux, na Saxônia, onde
terminou seus dias na condição de bibliotecário. O problema de Ian Kelly,
como o de qualquer biógrafo, será confrontar o depoimento textual do
biografado com documentos que o apoiem ou contradigam. Sabe perfeitamente
que, quando alguém escreve sobre si mesmo em sua velhice, o faz tanto por
amor à verdade como por desejo de construir uma posteridade a partir de um
passado de glórias. Dessas linhas de força contraditórias tenta-se tirar uma
média que aproxime a versão da verdade factual e sirva de acesso ao sentido
de uma vida. Afinal, como dizia o contemporâneo e concidadão de Casanova, o
dramaturgo Carlo Goldoni, "Todo homem é ao mesmo tempo três pessoas: como vê
a si mesmo, com os outros o veem, e quem ele realmente é."
A trajetória de Giacomo Casanova descrita no livro é a de um aventureiro.
Filho de uma atriz conhecida, Zanetta Farussi, e, talvez, de Gaetano
Casanova, Giacomo criou-se em sua Veneza natal. Mas desde que foi fazer seus
estudos em Pádua tornou-se um desenraizado nato. Jovem, transformou-se em
viajante obsessivo, nunca fixando residência na mesma cidade por muito
tempo. Trocava de endereços como de amantes. Viajou por toda a Europa, morou
em cidades como Londres, Paris, São Petersburgo, Berlim, Moscou, Dresden,
Colônia, Metz, Spa, Liège, Constantinopla. Onde havia uma corte, e onde era
possível encontrar um rabo de saia, ali Casanova se sentia em casa. Foi
universal, cidadão do mundo e "europeu" muito antes que a União Europeia
pudesse ao menos ser sonhada. Por isso mesmo, em 1998, nos 200 anos de sua
morte, sua cidade natal o homenageou com vasta exposição no Palazzo
Ca?Rezzonico, lembrando que, antes de tudo, Casanova fora um homem sem
fronteiras, de mente aberta e civilizado. Um protótipo de europeu, ou pelo
menos, de como os europeus gostam de se enxergar.
O fato é que o Casanova de Ian Kelly é mesmo descrito como espécie de
precursor do homem moderno, um "arquétipo dos tempos atuais", alguém
liberado, sem pouso ou profissão permanente, sempre aberto a novas
experiências. Entre essas, naturalmente, as sexuais, com muitas mulheres,
alguns homens (em especial no seminário de Pádua onde estudou). E, pelo
menos, um caso curioso: apaixonou-se por um castrato, mas veio a descobrir
que se tratava, na verdade, de uma mulher disfarçada de homem para poder
apresentar-se no palco, num tempo em que isso era malvisto em algumas
sociedades europeias. O falso castrato era a cantora Teresa Landi, que
Casanova apelidou de Bellino. Foi uma de suas grandes paixões. A outra foi
Henriette, que ele amou por três meses, descritos em suas memórias como "os
mais felizes de minha vida".
Giacomo viveu a infância e adolescência numa sociedade mais liberal do
que a média da época. Sua iniciação deu-se com duas irmãs, Nanetta e Marta,
pioneiras na longa e fértil carreira sexual do personagem. Mas, a se
acreditar em testemunhos, e em seu próprio relato, Casanova era um monógamo
serial, que costumava se apaixonar por uma mulher a cada vez, e passando a
outra quando a paixão anterior se esgotava. Assim, a se acreditar em sua
memória e relato, seu currículo amoroso contabiliza pouco mais de uma
centena de conquistas, 122 para ser exatos, número bem distante das 2 mil
atribuídas a Dom Giovanni, personagem inspirado nele. Aliás, um dos momentos
curiosos do livro refere-se à possível, aliás provável, colaboração de
Casanova no libreto de Lorenzo da Ponte imortalizado na ópera de Mozart.
Casanova parece ter sido mais do que um consultor, tendo escrito várias
partes do libreto em conjunto com Da Ponte.
Ter dormido com centenas ou milhares de mulheres não faria de Casanova um
personagem marcante. Mas ter escrito sobre essas experiências, e da maneira
como o fez, sim. Como mostra Ian Kelly, o relato de Casanova, seu estilo e
agudeza, tornou-se fonte preciosa de conhecimento sobre a sexualidade do
século 18, a mentalidade do Ancien Régime e o comportamento de vários
estratos da sociedade, e não apenas na alcova.
Doente, isolado e ridicularizado nos anos finais da vida, Casanova
prescreveu a si mesmo o único medicamento possível - escrever. Ao morrer, em
1798, deixou uma impressionante papelada, inclusive as 4 mil páginas de A
História da Minha Vida, em francês, que só começaram a ser publicadas em
1822. São páginas muito vibrantes, que dizem que a vida é curta, bela e é
preciso aproveitá-la enquanto dura. Tudo é frágil, como sabem os venezianos
com sua consciência ancestral de que o mar está sempre subindo: "O estilo
dele é o de um homem em um banco de areia, rindo das marés". Bonito, não?
Casanova - Muito Além de Um Grande Sedutor
Ian Kelly
Jorge Zahar, 370 págs., R$ 49
Trecho
No sentido clássico do século 18, ele é um pobre exemplo de libertino.
Não era um Valmont ou um Sade. Casanova não era levado pela compulsão ou
pelo vício sexual...Teve consciência, enquanto escrevia perto do fim da
vida, que suas jornadas sentimentais, românticas e sexuais foram pelo menos
tão aventurosas quanto suas viagens, e com frequência dirigiu sua pena para
questões do coração e do sexo. De todos os aspectos sensoriais de seus
escritos, foi o romance o que mais o divertiu, confundiu e enervou. Suas
memórias tornam-se vivas quando ele trata de seu objeto favorito: o sexo.
Para meros números, para a pornografia ou o avesso do bom gosto, deve-se
procurar em outras bandas, em Sade ou nos infatigáveis lordes Lincoln e
Byron. É a sua visão geral e sem julgamentos da vida e de sua época, do sexo
inclusive, que o torna merecedor de estudos no que diz respeito à história
da sexualidade. Sem desculpas ou rubores, ele situou suas aventuras sexuais
e românticas no mesmo plano que toda a sua odisseia intelectual,
profissional e geográfica. Foi o primeiro escritor moderno a fazer isso.
(©
Estadão)
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