NOS 400 ANOS DAS OBSERVAÇÕES DE GALILEU, QUE INAUGURARAM A CIÊNCIA MODERNA E
SEU CONFLITO COM A IGREJA, PADRE PREMIADO POR UNIÃO ASTRONÔMICA DIZ QUE
RELAÇÃO ENTRE ESSAS ÁREAS EVOLUI, MAS LENTAMENTE RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
No quarto centenário das observações lunares de Galileu Galilei (1564-1642),
o padre americano George Coyne, 76, conseguiu um feito memorável para um
líder religioso: receber uma condecoração de uma associação científica.
Tendo dirigido o Observatório do Vaticano por 28 anos, o matemático
jesuíta com doutorado em astronomia foi julgado digno de receber o prêmio
Van Biesbroeck, da AAS (Associação Americana de Astronomia), concedido
àqueles que prestam "generosos serviços de longo prazo" à comunidade
acadêmica de astrônomos.
Além de ter criado um curso de verão que introduziu centenas de
estudantes jovens na carreira de astronomia, Coyne foi o pesquisador que
colocou o observatório numa condição de fazer pesquisa de ponta. Por meio de
um convênio com a Universidade do Arizona, onde Coyne leciona, a instituição
religiosa construiu um telescópio de primeira linha.
Donna Wiestrop, astrônoma da AAS que coordena o prêmio Van Biesbroeck,
diz que aparentemente esta é a primeira vez que a maior associação de
astronomia do mundo premia um padre. Os "serviços prestados" por Coyne,
porém, vão além de sua área de pesquisa.
Ele escreveu livros e deu grande contribuição ao diálogo entre religião e
ciência. Coyne também se meteu em controvérsias por defender a teoria da
evolução de Darwin como a melhor explicação científica para a origem do
Universo e dos sistemas vivos.
Tal defesa colocou-o em choque contra um cardeal, ex-aluno do papa Bento
16, que advogava o design inteligente. Segundo a imprensa britânica, isso
lhe custou o posto no observatório, em 2006. Coyne nega. Em entrevista à
Folha por telefone de seu escritório em Tucson (EUA), ele explica como
acredita que essa relação conturbada pode amadurecer.
FOLHA - Neste ano a ciência tal qual desenvolvida por Galileu
completa quatro séculos. Em sua época, o cientista teve entreveros com a
Igreja Católica, e isso parece estar acontecendo ainda hoje, nas igrejas
cristãs de um modo geral. Alguma coisa amadureceu nesses 400 anos na relação
entre ciência e religião, ou ela continua a mesma?
GEORGE COYNE - Há muito que pode ser dito sobre o período
de Galileu até hoje. Durante esses 400 anos, muitas coisas mudaram na
ciência e na igreja. Na época de Galileu, a ciência moderna, tal qual a
conhecemos, ainda estava nascendo. Galileu foi um dos pioneiros, com
Descartes, Kepler e depois Newton. Partamos desse princípio.
O que aconteceu em 400 anos ou mais foi que a ciência cresceu para se tornar
um método muito bem definido de explorar o Universo. Mas é um método muito
limitado. Ele busca causas naturais para eventos naturais, e ele foi muito
bem sucedido em fazê-lo.
Veja a cosmologia do Big Bang, que é a melhor explicação para todas as
observações que já fizemos durante esses 400 anos sobre o Universo. É a
melhor explicação científica. Talvez amanhã ela sofra aprimoramentos. É
assim que a ciência caminha. Além da cosmologia do Big Bang eu mencionaria a
evolução neodarwinsta. É a melhor explicação que temos - se a estendermos
para o Universo todo- para todos os processos físicos e biológicos. Ela se
aplica diretamente a sistemas vivos, mas vamos estendê-la para o Universo e
tudo o que há nele, incluindo nós mesmos. Esses são apenas dois exemplos,
entre muitos, mas acho que a maioria das pessoas concordaria que essas são
duas das realizações mais significativas da ciência, desde o tempo de
Galileu até hoje. Ainda assim, às vezes elas se encontram em grandes
controvérsias. A razão pela qual isso ocorre é porque alguns cientistas
pisam fora dos limites da ciência. A ciência, como tal, não pode provar a
existência de Deus nem prová-la falsa usando sua própria metodologia.
Repito: ela se limita a procurar explicações naturais para eventos naturais.
E se existe um Deus -a natureza própria de um Deus-, isso está além da
natureza.
FOLHA - A Igreja Católica só pediu perdão a Galileu no ano 2000,
mas o Observatório do Vaticano é uma instituição bem mais antiga e já tinha
começado a fazer astronomia com seriedade antes disso. Quando exatamente as
autoridades católicas começaram a mudar de ideia com relação a Galileu?
COYNE - Não existe uma data precisa. A igreja é como um ser
vivo, que cresce e muda com o tempo, assim como qualquer outra instituição.
E a mudança foi principalmente em duas áreas: a compreensão das escrituras
pela igreja e a compreensão da ciência pela igreja.
Não sou historiador, mas sei que o entendimento da ciência pela igreja só
veio a ocorrer do século 18 para o meio do século 19, quando a igreja
finalmente removeu todos os livros relacionados ao copernicanismo do Index.
Isso foi por volta de 1845. Até um século antes, houve muitas tentativas de
correção por parte da igreja, removendo os livros de Copérnico do Index, mas
isso nunca tinha sido feito de maneira completa.
A igreja levou tempo para se acomodar às mudanças. Você poderia perguntar
quando surgiu a prova do copernicanismo. Mas o que é uma prova em ciência?
Acho que você aceitaria como prova a descoberta da paralaxe e a descoberta
da aberração da luz.
A paralaxe era explicada da melhor forma pela Terra dando voltas ao redor do
Sol. E a aberração é explicada da melhor forma pela Terra circundando o Sol
e girando em seu próprio eixo. A aberração da luz da luz das estrelas foi
descoberta lá pelo meio do século 17, e a paralaxe, por volta de 1830.
Então, o entendimento da ciência por parte igreja cresceu, assim como a
própria ciência cresceu, mas de modo lento. E, quando apareceu o darwinismo,
a igreja novamente hesitou. Isso é por causa da compreensão da ciência.
Ainda hoje a igreja está elaborando sua compreensão da ciência. O que a
ciência faz? Ela não faz tudo. Ela é uma ferramenta muito limitada, mas
muito poderosa.
FOLHA - E o que isso tem a ver com a compreensão das escrituras pela
Igreja Católica?
COYNE - Um dos grandes problemas na época de Galileu é que
a igreja disse que o copernicanismo era claramente contraditório com as
escrituras, que em muitos trechos afirmam ou implicam que o Sol esteja se
movendo. Mesmo hoje dizemos "o Sol se levanta" e "o Sol se põe". É modo de
falar, mas a igreja encarava isso como se a escritura estivesse ensinando
ciência. A igreja, depois de quatro séculos, se deu conta de que isso está
errado.
Uma grande realização dentro da igreja foi a encíclica "Providentissimus
Deus", de Leão 13, que começou a ensinar aquilo que a igreja defende hoje:
você deve interpretar as escrituras de acordo com a técnica literária. Você
não pode interpretá-las literalmente. E além disso: não há nenhuma ciência
nas escrituras. As escrituras começaram a ser compostas por volta de 5.000
a.C., com o patriarca Abraão, até cerca de 200 d.C., mais ou menos. A
ciência moderna começou a existir entre os séculos 16 e 17. Como poderia
haver alguma ciência nas escrituras? Há uma separação de pelo menos 1.500
anos entre a redação final das escrituras e a ciência moderna. Então, não há
nenhuma ciência nas escrituras. Zero. E qualquer um que quiser usar as
escrituras de modo científico incorrerá em erros.
FOLHA - Pouca gente esperava que o Vaticano fosse se desculpar pelo
episódio de Galileu, muito menos quatro séculos depois, em 2000, com João
Paulo 2º. Por que isso foi decidido naquele momento?
COYNE - Ele sabia que seria um gesto importante. E a razão
disso data de muito antes. Antes de ele se tornar papa, quando era
cardeal-arcebispo de Cracóvia, ele costumava promover encontros de
cientistas, filósofos e teólogos. Ele tinha entusiasmo pelo diálogo entre a
cultura científica e a religiosa.
Quando ele se tornou papa, ele se deu conta de que o caso de Galileu, nas
palavras dele próprio, ainda era um mito. O mito de que, por causa da
controvérsia com Galileu, havia um conflito intrínseco entre a crença
religiosa e a ciência. E ele queria acabar com isso. Então, uma das coisas
que fez, em um dos primeiros anos de seu papado, foi indicar que ele queria
estabelecer uma comissão para tratar disso. Ele foi muito dedicado em
estabelecer um diálogo entre a igreja e a ciência e se livrar de coisas
negativas do passado. Uma das principais, claro, era Galileu.
FOLHA - A controvérsia envolvendo o darwinismo é em grande parte
restrita a países com grande contingente protestante, mas não se ouve falar
muito da posição do Vaticano.
COYNE - Não há documento oficial. Não uma declaração
oficial a respeito de evolução e design inteligente. É isso, ponto. Há
alguns integrantes da igreja que estão discutindo o assunto. Alguns estão
discutindo de maneira inteligente, outros não, porque não entendem o que a
ciência é nem o que a evolução representa como explicação científica. João
Paulo 2º, em uma mensagem para a Pontifícia Academia de Ciências, disse que
a evolução "não é mais uma mera hipótese". Disse que a paleontologia, a
geologia, a biologia, a química e a cosmologia, todas convergem no sentido
de que a evolução é a melhor teoria científica que temos hoje. O papa Bento
16 ainda não deu declarações de alta importância sobre isso.
FOLHA - Quando o sr. deixou a direção do Observatório do Vaticano
em 2006, depois de 28 anos de trabalho, alguns jornais disseram que o papa
Bento 16 teria lhe pedido a renúncia por causa de suas críticas ao design
inteligente. Isso é verdade?
COYNE - Não, absolutamente. E não digo isso para me
defender, mas para defender a verdade. Eu já tinha pedido renúncia
voluntariamente por quatro vezes durante minha gestão. Apesar de amar meu
emprego, eu francamente acho que a direção de uma instituição científica
precisa sempre de sangue novo. Quando eu completei oito anos na direção,
pedi demissão, quando completei 16 anos, pedi de novo, e depois de 24, mais
uma vez. Quando pedi após 28 anos na diretoria, eles finalmente a aceitaram.
Fora isso, o papa Bento nunca falou da evolução de maneira negativa e nunca
apoiou ou rejeitou o design inteligente. Depende de o que você considera
design inteligente. Se você considera que é uma explicação científica, está
errado. Não é. Para começar, não conseguimos detectar inteligência pelo
método científico. Não conseguimos encontrar o design inteligente na
ciência.
Agora, a fé pode me ensinar que tudo isso foi projetado de maneira
inteligente, e eu acredito nisso, mas não consigo descobrir isso como
cientista.
E uma coisa não está em contradição com a outra. Na verdade, se eu acreditar
em Deus, o Universo em evolução me diz um bocado sobre Deus como criador
inteligente. Ele criou um Universo que não é uma máquina de lavar, nem um
carro, nem um relógio. Ele criou um Universo que tem um dinamismo e uma
criatividade próprios. É um "se" importante.
FOLHA - Como foi sua carreira? Por que o sr. veio a se interessar
tanto por ciência quanto por religião?
COYNE - Eu entrei para o seminário como jesuíta aos 18
anos, em 1951. Fiz meus estudos espirituais, meu noviciado, onde estudei
história antiga e literaturas latina e grega por dois anos. Também estudei
filosofia por três anos, e durante esse tempo conclui minha graduação em
matemática. No fim desse período, ainda como seminarista, fui enviado para
um doutorado em astronomia e astrofísica. Quando terminei, depois de cinco
anos, fui estudar teologia. Depois fui ordenado padre. E, então, comecei
minha carreira pesquisando astronomia na Universidade do Arizona. Tudo foi
meio emaranhado, e sou feliz com isso.
Não vejo nenhum conflito na minha vida em ser padre e cientista. Acho que
ambos complementam um ao outro. Não sou um cérebro ambulante. Sou uma
pessoa. E, como todas as pessoas tenho experiências em minha vida:
experiências de fé, experiências de amizade... todos nós temos essas
emoções.
Temos partes das nossas vidas que tentamos integrar. Isso é o que torna a
vida interessante.
FOLHA - O fato de ser jesuíta o influenciou, já que a Companhia de
Jesus tem uma tradição em se relacionar com a Academia?
COYNE - Sim. É uma longa tradição. Após 30 anos da fundação
da Companhia de Jesus, em 1540, nós tínhamos um grupo renomado de
matemáticos e astrônomos no Colégio Romano, e alguns deles foram
contemporâneos de Galileu. Foram os precursores do observatório, e
trabalharam para a reforma do calendário. Esses jesuítas foram os primeiros
a corroborar as observações telescópicas de Galileu, que foram, claro, o
começo da ciência moderna. Nós [jesuítas] realmente temos uma longa tradição
de cientistas, mas ela não é exclusiva. Mendel, o pai da genética, era um
agostiniano.
FOLHA - O sr. já enfrentou algum tipo de preconceito no meio
científico por ser padre?
COYNE - Nunca. E trabalhei durante toda a minha carreira
como cientista na universidade estadual, que não era um seminário nem uma
universidade de afiliação religiosa. Sempre fui muito bem recebido lá,
colaborei com pessoas lá em minha pesquisa. Colaborei com pessoas na
Finlândia e até no Brasil, na Universidade de São Paulo. Faz tempo que não
vou para aí, mas em algumas vezes passei vários meses em São Paulo e no Rio.
"Falo um pouco de português brasileiro [falando em português]."
FOLHA - O sr. pretende vir ao Rio neste ano para o encontro da
União Astronômica Internacional?
COYNE - Eu espero conseguir ir. Tenho alguns problemas para
resolver, mas acho que conseguirei fazer isso a tempo.
FOLHA - O sr. foi premiado pela AAS, em grande parte por conta dos
cursos de verão no Vaticano. O que era esse programa?
COYNE - Antes de começarmos as escolas de verão, éramos
apenas um instituto de pesquisa. Alguns de nós ensinávamos -como eu, no
Arizona-, mas isso era pessoal. Não tinha nada a ver com o Observatório do
Vaticano. E nós colaborávamos com astrônomos ao redor do mundo. Nós nunca
conseguíamos nos relacionar com astrônomos jovens, estudantes. Mas também
não podíamos transformar o observatório em um instituição de ensino.
Então, resolvemos criar esse tipo especial de evento, uma escola de verão de
um mês em astrofísica, para o qual convidaríamos astrônomos jovens de todo o
mundo. Tivemos apoio de nossos superiores no Vaticano para isso, em
particular do papa João Paulo 2º, e o projeto deu certo. Chegamos a 11
edições, para onde levamos ao todo 275 jovens do mundo todo, de 22 países,
sendo 62% de países em desenvolvimento. As mulheres eram 48%.
FOLHA - O que o sr. tem pesquisado ultimamente?
COYNE - Eu não tenho sido muito ativo em pesquisa agora
porque tenho um trabalho em tempo integral, que é levantar fundos para
financiar o nosso telescópio. Mas, quando vim para o Arizona, eu trabalhei
com raios e partículas interestelares. Eu trabalhei por muitos anos em
estudos de polarização, em meio interestelar, em estrelas com atmosferas
estendidas e até em alguns tipos de galáxias. Os estudos de polarização nos
ajudam a entender a geometria dos sistemas.
FOLHA - O telescópio com o qual o sr. trabalha foi uma iniciativa
do Observatório do Vaticano, não?
COYNE - Sim. Nos foi oferecida a opção de nos unirmos à
Universidade do Arizona quando ela estava começando a trabalhar em uma nova
tecnologia de espelhos de telescópios. O primeiro espelho que eles
produziram foi o do nosso. Colaboramos no desenvolvimento dessa tecnologia,
e nosso telescópio foi o tubo de ensaio dela. E deu tão certo que agora
temos como vizinho o maior telescópio do mundo usando essa tecnologia com
dois espelhos de oito metros de diâmetro.
(©
Folha de S. Paulo)
Ano da Astronomia comemora observações pioneiras
DA REDAÇÃO
Em meados de 1609, após
ter sido rejeitado como matemático oficial da corte dos
Médici, em Florença, um professor da Universidade de
Pádua chamado Galileu Galilei resolveu testar um
brinquedo novo. O gesto acabaria por revolucionar a
ciência -e levá-lo à prisão perpétua.
O tal brinquedo era a
luneta, inventada na Holanda, que era tratada como mera
curiosidade até então.
Galileu aperfeiçoou o
instrumento, aumentando sua potência. No fim de 1609,
ele apontou sua luneta (chamada de "telescópio") para a
Lua. Estava dada a largada a um choque com a astronomia
ptolomaica e a cosmologia aristotélica, defendidas pela
igreja.
A Lua, observou
Galileu, não era uma esfera perfeita (como dizia
Aristóteles), mas sim cheia de montes e vales. Em outras
observações seminais, o italiano descobriu quatro luas
em torno de Júpiter e que Vênus tinha fases, como a Lua.
Isso era um problema
para o modelo de Ptolomeu, que via a Terra no centro do
Universo. Para que Vênus tivesse fases, seria necessário
que os planetas se movessem em volta do Sol, e não o
contrário.
As fases de Vênus, no
entanto, eram compatíveis com um outro modelo de
Universo, descrito pelo polonês Nicolau Copérnico em
1543. Galileu passou a defender Copérnico, irritando o
clero.
Em 1616, o cardeal Roberto Bellarmino, um aristotélico,
ordenou a Galileu que não mais defendesse a teoria
copernicana.
Arrogante, Galileu
desafiou a proibição em 1632 com a obra "Diálogo", na
qual um dos personagens, Simplício, é um aristotélico
caricatural e estúpido.
No ano seguinte,
iniciou-se um processo contra Galileu na Inquisição e um
julgamento no qual o astrônomo foi considerado
"veementemente suspeito de heresia" e condenado a
abjurar suas ideias heliocêntricas. Galileu abjurou
publicamente. Conta a lenda que teria murmurado depois:
"Eppur si muove" ("e, no entanto, se move"). Foi
condenado à prisão domiciliar, onde ficou até morrer.
Galileu é considerado o
primeiro cientista moderno. A Unesco decretou 2009 o Ano
Internacional da Astronomia, para marcar o
quadricentenário das observações do italiano.
(©
Folha de S. Paulo)
Interpretando Galileu
PEÇA DE BERTOLT BRECHT QUE
INTRODUZIU A VIDA E OS DILEMAS ÉTICOS DO CIENTISTA
ITALIANO A GERAÇÕES DE ESPECTADORES COMPLETA 70 ANOS
TIAGO TRANJAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Galileu: "(...) Repassei o meu caso, e pensei sobre o
juízo que o mundo da ciência (...) deverá fazer a
respeito."
Duas bombas atômicas -e
uma guerra, a emigração para os EUA, o macartismo, o
retorno para a Alemanha Oriental- separam o texto final
de "A Vida de Galileu" (1955) de sua primeira versão,
escrita por Bertolt Brecht em 1939, durante o exílio na
Dinamarca.
A peça, considerada por
muitos o ponto culminante do teatro brechtiano,
introduziu gerações de plateias ao personagem Galileu,
não apenas como genial cientista, mas como portador de
um dilema ético central para toda a ciência
contemporânea. Essa ciência que, justamente a partir da
Renascença, foi ganhando relevância progressiva, até se
tornar importante força de moldagem social, ao mesmo
tempo em que se institucionalizava e se
profissionalizava.
Um antigo discípulo: "O
senhor escondeu a verdade, diante do inimigo. Também no
campo da ética o senhor estava séculos adiante de nós
(...) O senhor fugia meramente a uma briga política sem
chances, para avançar o trabalho verdadeiro da ciência".
Em retiro forçado, após
abjurar a doutrina heliocêntrica de Copérnico devido às
ameaças da Inquisição, Galileu prossegue solitariamente
seu trabalho científico. É nessas condições que escreve
sua obra máxima, os "Discursos sobre Duas Novas
Ciências". Com ela, a ciência começa a assumir a forma
como a conhecemos hoje, como descrição matemática do
mundo, baseada na livre investigação dos fatos.
Galileu aparece
envolvido, aqui, em uma luta grandiosa: para libertar a
ciência do jugo da religião, dos preconceitos
intelectuais, da tirania ideológica. Para ele, o livro
da natureza está aberto para quem deseje ler; e o valor
a ser buscado é a verdade, o conhecimento. Delineiam-se
nessa luta valores que viriam a ser vistos como
fundamentais para a ciência: imparcialidade, autonomia e
neutralidade. Valores cognitivos puros. Valores da busca
pelo conhecimento.
Galileu: "A prática da
ciência me parece exigir notável coragem (...). Ela
negocia com o saber obtido através da dúvida. Arranjando
saber, a respeito de tudo e para todos, ela procura
fazer com que todos duvidem."
De maneira
surpreendente e cruel, porém, na última cena da peça, o
Galileu de Brecht não aceita a absolvição oferecida por
seu ex-discípulo. Ele afirma ter errado ao abjurar sua
doutrina. Diz ter perdido a luta: essa luta pela nova
física que, hoje, nos parece ganha. Por que, então, o
genial cientista não consegue perdoar-se? Acontece que o
Galileu de Brecht está falando de uma outra luta. "A
miséria de muitos é velha como as montanhas, e, segundo
os púlpitos e as cátedras, ela é indestrutível, como as
montanhas."
Para Brecht, o
conhecimento era um instrumento de transformação. Toda
sua teoria do teatro épico fundava-se na ideia de que o
homem podia sempre reconstruir-se, ao mesmo tempo em que
reconstruía as próprias estruturas sociais. Não havia
natureza definitiva da humanidade, senão a possibilidade
de avançar, de descobrir novas formas de sociabilidade,
mais justas e fraternas. Para isso, porém, uma condição
impunha-se: que as pessoas pudessem compreender sua
própria realidade, e refletir acerca de seu papel no
mundo.
Galileu: "E se os
cientistas (...) acham que basta amontoar saber, a
ciência pode se transformar em aleijão (...) Com o
tempo, é possível que vocês descubram tudo o que haja
por descobrir, e ainda assim o seu avanço há de ser
apenas um avanço para longe da humanidade. O precipício
entre vocês e a humanidade pode crescer tanto que, ao
grito alegre de vocês, grito de quem descobriu alguma
coisa nova, responda um grito universal de horror."
As duas bombas atômicas
haviam se tornado a marca profunda do que Brecht vinha
tentando dizer. Podia-se ver agora, que a ciência não
possuía apenas um método, a ser libertado e
aperfeiçoado, nem somente um objetivo -o conhecimento -a
ser buscado. Ela possuía também um uso político e uma
apropriação social, e estes exigiam, urgentemente, uma
nova configuração. Diferentes lutas, mas que precisavam
ser lutadas sempre ao mesmo tempo.
Tanto Galileu quanto
Brecht buscam a "verdade". Mas qual verdade? Brecht pede
a Galileu que faça com sua busca científica o que ele
próprio fizera com sua arte: a busca da "verdade" como
revelação do homem ao próprio homem. Cabe então
perguntar: estaria Brecht oferecendo, assim, um novo
dogmatismo ideológico, que deveria submeter a
investigação científica assim como o "realismo
socialista" havia tentado submeter a arte?
A mensagem é mais
crucial e precisa. Brecht coloca em dúvida a
possibilidade do valor cognitivo puro, pois sabe que
valores estão sempre imersos em uma sociedade. O termo
"verdade" só pode apontar em uma direção: para uma
melhor compreensão do ser humano e de suas
possibilidades no mundo; para a consciência do homem que
constantemente se reconstrói. A cobrança que Brecht
dirige a Galileu -aos cientistas e homens de sua época-
é tudo menos dogmática. Existe uma busca pelo
conhecimento científico? Não se questiona. Mas, tudo
somado, a "verdade" pode apenas ser uma busca humana.
(©
Folha de S. Paulo)
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