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Pasolini: Um escritor sem barreiras

24/09/2008

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Pier Paolo Pasolini no fi lme Contos de Canterbury, de 1972

Mariarosaria Fabris

Não é fácil dar conta da produção de Pier Paolo Pasolini, um dos mais fecundos intelectuais italianos de século XX. Poeta, ficcionista, ensaísta, crítico literário, teatrólogo, lingüista, argumentista, roteirista, cineasta, teórico de cinema, interessou-se ainda pelas artes plásticas, escreveu inúmeros artigos em jornais e revistas e manteve uma intensa correspondência com amigos e leitores. Embora no exterior, Pasolini tenha sido mais conhecido como cineasta, foi como literato que surgiu no panorama cultural italiano. Enquanto escritor, sua obra abarca três momentos: as décadas de 40, 50 e 60-70.

Os anos 40 foram marcados pelas longas temporadas que passou na mítica Casarsa delle Delizie (Friul), terra natal de sua mãe, retratada em dois romances elaborados no período, mas editados posteriormente: A hora depois do sonho (1962) e Amado meu; precedido de atos impuros (1982). Publicou seus primeiros poemas em italiano e friulano, dedicou-se ao desenho e à pintura, redigiu contos, resenhas, ensaios lingüísticos, críticas de arte para várias revistas culturais, dentre as quais Il Setaccio, de Bolonha. Em fins de 1949, foi afastado da escola em que lecionava e do Partido Comunista Italiano, por corrupção de menores e prática de atos obscenos em público, fugindo de Casarsa para Roma (janeiro de 1950).

A década de 50 foi o cerne de sua produção literária, quando deu à luz Meninos da vida (1955) e Una vita violenta (1959) e escreveu também boa parte dos textos que integrarão Ali dos olhos azuis (1965), em que focalizou os bolsões de miséria que persistiam na periferia de Roma, enquanto a Itália se encaminhava para o boom econômico. Consagrou-se ainda como poeta com Le ceneri di Gramsci (1957) e L’usignolo della Chiesa cattolica (1958). Com um grupo de intelectuais amigos, fundou a revista Officina (1958-59), reuniu seus ensaios de crítica literária em Passione e ideologia (1960) e moveu seus primeiros passos no cinema, colaborando na elaboração de argumentos, diálogos e roteiros. Começou a dedicar-se ao teatro, traduzindo a Oréstia (1959): a trilogia de Ésquilo está na base do desenvolvimento trágico de seus primeiros filmes – Desajuste social (1961) e Mamma Roma (1962) –, em que o fado preside o destino dos
homens.

Poeta cívico

Nos anos 60-70, continuou a atividade poética, publicando La religione del mio tempo (1961), Poesia in forma di rosa (1964), Trasumanar e organizzar (1971) e La nuova gioventù (1975), em que recolheu suas poesias em friulano. Trasumanar e organizzar é particularmente interessante para o leitor brasileiro, pois, em sua terceira parte, contém cinco poemas dedicados ou ligados à nossa terra, que Pasolini visitou, numa rápida passagem, em março de 1970: “Il piagnisteo di cui parlava Marx”, “Comunicato all’Ansa (Recife)”, “La restaurazione di sinistra (III)”, “Atene” e, principalmente, “Gerarchia”, no qual o Rio de Janeiro se transforma numa espécie de grande tela sobre a qual o autor projeta os próprios desejos de pansexualismo.

Nesse volume de poesias o escritor deixa de lado a literariedade para afirmar-se como poeta cívico, em composições que têm o mesmo tom provocatório de sua intensa participação política e ensaística em periódicos e em outros campos de debate público, reunida, depois de sua morte, em Escritos póstumos (1975), Lettere luterane (1977), Le belle bandiere (1977), Descrizioni di descrizioni (1979) e Caos: crônicas políticas (1979).

Esse é também o período em que redigiu, dentre outras, as peças teatrais Orgia (1966-68), Pilade (1966-67), Aff abulazione (1966-69), Bestia da stile (1966-75), Porcile (1967-68) e Calderón, (1967-73), começando a lançar as idéias do que chamou teatro da Palavra, idéias que, em 1968, se consubstanciaram no Manifesto por um novo teatro, onde propugnava um teatro que reunisse autor, atores e espectadores no cumprimento de um rito cultural.

As tragédias deveriam ter sido sete, mas Teorema, cuja primeira versão data de 1966, foi sendo transformada de peça (inédita) em roteiro cinematográfico, filme e, por fim, em romance. Em algumas peças, a referência à mitologia grega foi direta; em outras, mais velada, mas quase sempre lida à luz da psicanálise: é sintomático que seja a linguagem do inconsciente a predominar, com a projeção da tragédia (particular e histórica) do homem contemporâneo nos mitos do passado.

Em 1963, Pasolini havia começado a elaborar La divina mimesis, obra continuada entre 1964 e 1966 ou 1967, mas deixada incompleta, e publicada só em 1975. Tendo como modelo da Divina comédia, o autor desdobra-se em Dante Alighieri e em seu guia, o poeta latino Virgílio, trazendo também para o campo fi ccional o embate travado com aquela Itália que ele via dominada pelo neocapitalismo.

Livro-laboratório

A relação de Pasolini com a literatura começou a esgarçar-se depois de Teorema (1968), pois havia passado a dedicar-se cada vez mais ao cinema. Já em 1965, tinha apresentado a famosa comunicação “O cinema de poesia”, na qual propunha a afi rmação da dimensão subjetiva no discurso narrativo. Tomando emprestada à teoria literária a noção de discurso indireto livre (que ele havia amplamente empregado desde seus primeiros romances), o cineasta criava a subjetiva indireta livre, fazendo derivar o termo também de um procedimento cinematográfico tradicional, o de câmera subjetiva, que corresponde ao ponto de vista da personagem. Essa comunicação gerou debates tão acalorados quanto os provocados, em 1964, pela conferência “Nuove questioni linguistiche”, na qual anunciava que, pela primeira vez, o italiano podia ser considerado língua nacional. Os dois ensaios integrarão Empirismo hereje (1972).

Em 1992, é lançado Petrolio, seu último romance, que começou a escrever em 1972 e deixou incompleto. A publicação causou uma grande polêmica. Texto fragmentário, Petrolio, nas intenções do autor, era uma espécie de livro-laboratório, no qual pretendia ir além dos limites da literatura.

Cinema - Vozes literárias na tela

Logo após seu surgimento em 1895, o cinema sentiu a necessidade de contar histórias, enquanto tentava estruturar uma linguagem própria. Para tanto, recorreu a outras artes, dentre as quais a literatura, pedindo emprestados romances, novelas, contos, poemas épicos e dramáticos para seus argumentos, roteiros e diálogos, além da própria noção de discurso narrativo. A indústria cinematográfica italiana também escolheu como seu caminho principal o cinema narrativo e, em 1907, lançava o primeiro filme derivado de uma obra literária, Ilfornaretto di Venezia, baseado no drama homônimo de Francesco Dall’Ongaro e produzido pela Cines de Roma. Como essa, outras realizações do período foram extraídas de textos românticos.

As adaptações literárias, contudo, exigiam um conhecimento específico da arte de narrar e, a partir de 1909, aos produtores cinematográficos pareceu natural passar a engajar escritores. As relações entre ambos não foram fáceis. Primeiramente, porque nem sempre os escritores entenderam as diferenças de linguagem e de códigos narrativos entre a literatura e a sétima arte. Ademais, viam como uma espécie de aviltamento de seu talento a atividade de redigir intertítulos (na fase do cinema mudo) ou roteiros originais e de adaptar obras próprias ou alheias.

Em 1913, com o aporte do prestígio de Gabriele D’Annunzio ao sucesso de Cabíria, novas perspectivas na relação entre literatura e cinema se consolidaram. D’Annunzio, ao contrário de outros colegas de profissão, cultivava a própria aura de criador mesmo quando escrevia para a indústria cinematográfica. Embora sua contribuição ao filme de Giovanni Pastrone tenha sido mínima, ela foi mitificada a ponto de ser-lhe atribuída a autoria da obra. “Apagada” a identidade do diretor, o poeta tornou-se o autor material de Cabíria. Essa mudança do papel do intelectual dentro do cinema levou às primeiras reflexões teóricas sobre a paternidade de um filme.

Cinema sonoro ■ Foi nesse novo contexto que se iniciou a colaboração de Luigi Pirandello com a nova arte. Foram mais de 40 as realizações cinematográficas (e, posteriormente, televisivas) que se inspiraram em romances, novelas, peças e argumentos originais de sua autoria. Bastaria lembrar La canzone dell’amore (1930), extraída da novela In silenzio, com a qual Giovanni Righelli inaugurava o cinema sonoro na Itália. Em anos mais recentes, em Kaos (1984), Paolo e Vittorio Taviani levaram para a tela sete das Novelas para um ano e Marco Bellocchio dirigiu Henrique IV (1983-1984), adaptação da peça homônima, e A ama de leite (2000), instigante transposição cinematográfica de uma das menos brilhantes novelas pirandellianas. Nessa, a exemplo dos irmãos Taviani, o diretor deu à transposição cinematográfica uma dimensão ideológica estranha ao original. A relação de Pirandello com o cinema, porém, foi mais ampla, pois o escritor expressou suas idéias sobre a sétima arte também em algumas entrevistas e, principalmente, no romance Si gira, transformado depois em Cadernos de Serafino Gubbio operador, em que ele se interroga sobre a desumanização do homem diante da câmera.

A presença do crítico e literato Emilio Cecchi no comando da produtora Cines, na década de 30, modificou as relações entre escritores e cinema. Ao serem envolvidos mais ativamente na realização de obras cinematográficas, os literatos deixaram de lado o constrangimento e a vergonha por trabalharem para a indústria cinematográfi ca. Nesse período, é interessante destacar a figura do escritor Mario Soldati, que, em sua colaboração com o cinema, conheceu de perto as várias fases de uma produção: foi argumentista, roteirista e diretor. Além disso, quase todas as realizações que dirigiu no início dos anos 40 baseavam-se em textos literários, o que vinha estreitar ainda mais os laços entre cinema e literatura em seu trabalho. Seu filme mais representativo foi, sem dúvida, Piccolo mondo ântico (1941), no qual adaptou a obra homônima de Antonio Fogazzaro, dandolhe existência autônoma e respeitando, ao mesmo tempo, o espírito do romance. Soldati pertencia ao grupo dos chamados calligrafi (beletristas) – dentre os quais Alberto Lattuada, Renato Castellani e Luigi Chiarini –, que realizavam filmes de técnica apurada, quase sempre de inspiração literária, o que lhes permitia não focalizar temas atuais, subtraindo-se, assim, à retórica e à banalidade do cinema fascista.

Cineasta - A cultura como mediação poética
 
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Cena do filme As mil e uma noites, de 1974, de Pier Paolo Pasolini, com os atores Ninetto Davoli e Luigina Rocchi
OS PRIMEIROS FILMES DE PIER PAOLO PASOLINI – Desajuste social (1961), Mamma Roma (1962), “A ricota” (episódio de Relações humanas, 1963), uma das partes de La rabbia (1963), Comizi d’amore (1964), Sopraluoghi in Palestina per il fi lm “Vangelo secondo Matteo” (1964) e O evangelho segundo São Mateus (1964) – caracterizam-se por manter certo vínculo com o Neo Realismo.

Dois conjuntos de obras são representativos da superação dessa fase naturalista: o constituído por Gaviões e passarinhos (1966) e pelos episódios “A terra vista da lua” (As bruxas, 1966) e “O que são as nuvens?” (Capricho à italiana, 1968), em que o tom de fábula passa a predominar, graças também às teorias teatrais de Bertolt Brecht que iluminam essas realizações; o integrado por fi lmes baseados em peças clássicas gregas – Édipo rei (1967), Medéia, a feiticeira do amor (1970), Anotações para uma Oréstia africana (1970) –, quando o cineasta, não conseguindo mais ancorar se na realidade, faz da cultura a mediação necessária para sua inspiração poética.

A fase mítica da trilogia grega corre paralela à realização de Appunti per un fi lm sull’India (1968), Teorema (1968), “La sequenza del fi ore di carta” (episódio de Amore e rabbia, 1969), Pocilga (1969) e Le mura di Sana (1971), período em que o cinema pasoliniano começa a tornar-se impopular, no sentido de não ser mais mimético, mas de salientar exatamente aquele rito cultural que o naturalismo de certas obras cinematográficas tendia a camuflar.

Com a chamada trilogia da vida, Pasolini parece retomar seu contato com o mundo popular, um mundo popular ideal, suspenso no tempo, portador de uma vitalidade que a sociedade burguesa não tinha conseguido sufocar. Deixando de lado a visão do próprio diretor, alguns críticos, no entanto, passaram a interrogar as obras e mostrar como a pulsão de morte que caracterizará Saló (1975) – com a qual o cineasta abjura Decameron (1971), Os contos de Canterbury (1972) e As mil e uma noites (1974) – já está contida nas realizações que o antecedem e, estabelecendo uma linha de continuidade entre os quatro filmes, preferem agrupá-los sob a etiqueta de tetralogia da morte. (M.F.)

Realidade do pós-guerra

Na segunda metade dos anos 40, a afirmação do neo-realismo tornou a modificar as relações entre literatura e cinema. Com o fim da guerra, os cineastas, em seu papel de cronistas por excelência, num primeiro momento, sobrepujaram os literatos, pois a urgência de gravar a memória dos acontecimentos recém-vividos parecia exigir um registro direto, sem a intermediação da palavra escrita. Passado esse primeiro momento, literatura e cinema voltaram a dialogar: no entanto, mais do que em adaptação, preferia-se falar em inspiração. Embora muitas vezes ainda buscassem sua fonte de inspiração num conto ou num romance, os autores cinematográficos reescreviam a história, a contavam a partir de seu ponto de vista, a interpretavam à luz dos acontecimentos que estavam vivenciando.

Foi o caso de Cesare Zavattini quando, sob a direção de Vittorio De Sica, levou para a tela seu romance Totò il buono, sob o título de Milagre em Milão (1950). O apólogo surreal sobre a sociedade, que se desenrolava numa cidade imaginária, transformava-se numa fábula ambientada numa metrópole de verdade, com referências bem concretas à realidade do pósguerra, pois era necessário estar em sintonia com o momento social que o país estava vivendo. Mais radical ainda havia sido a apropriação da obra de Luigi Bartolini para a realização de Ladrões de bicicleta (1948), da qual sobrou apenas o título e a idéia do roubo do veículo, elementos que permitiram a De Sica e Zavattini levar adiante seu conceito de cinema: o dos pequenos fatos de crônica, da poética do dia-a-dia.

Luchino Visconti, antes de estrear como cineasta, já havia escrito Ângelo. Publicado postumo em 1993, esse romance inacabado foi concebido por volta de 1937 e representa uma das poucas experiências literárias do diretor. Em Ângelo, a crítica detectou a presença de Giovanni Verga, o mesmo escritor que, no início dos anos 40, voltava a ser descoberto por toda uma geração de intelectuais de esquerda, a qual sentia a necessidade de opor à retórica da cultura ofi cial fascista uma cultura enraizada na realidade social e popular do país.

Em 1941, Visconti adquiriu os direitos cinematográficos de Os Malavoglia, atraído pela plasticidade e pelo “ritmo íntimo e musical” (como ele mesmo escrevia) do romance de Verga, mas apenas sete anos mais tarde conseguiu realizar a obra que dele derivou: A terra treme. Numa leitura gramsciana, a esse filme de 1948 poderiam ser atribuídos os mesmos limites que haviam sido apontados na obra do escritor siciliano. Antonio Gramsci não considerava Verga um autor popular, por sua céptica impassibilidade de observador, sinal evidente do distanciamento que, durante séculos, havia caracterizado a relação entre intelectuais e povo na Itália. Em A terra treme, o esteticismo das imagens foi interpretado como o reflexo do imobilismo social ao qual o diretor, como Verga, parecia condenar suas personagens. Em 1948, contudo, Visconti não poderia ter seguido a lição de Gramsci, dado que o comentário deste sobre o autor siciliano integra Literatura e vida nacional, publicado apenas em 1950. Em 1954, porém, ao filmar Sedução da carne, o aproveitamento dos ensinamentos gramscianos foi outro.

Criação autônoma

Ao inspirar-se na novela Senso, de Camillo Boito, em que a condessa Lívia Serpieri narra de forma fria e distanciada sua aventura extraconjugal com um jovem ofi cial austríaco, Visconti transformava o adultério numa envolvente história de amor, marcada pela fatalidade do destino de seus protagonistas, representantes de um mundo agonizante: o do Império austro-húngaro e da nobreza. Dessa forma, privilegiava o gênero melodramático (o fi lme se inicia, não por acaso, com Il trovatore, de Giuseppe Verdi), prestando sua homenagem a Antonio Gramsci, para quem a ópera vinha suprir, dentro da cultura italiana, a falta de uma literatura popular como a que se havia desenvolvido na França. Ademais, Sedução da carne valia-se da interpretação gramsciana também na releitura do Risorgimento, visto pelo diretor sem nenhuma ênfase retórica, ao contrário da visão apresentada pela história oficial e pelo cinema, em geral. A não-participação de camadas populares no processo de unificação do país explicitava-se, no filme, na reconstituição das zonas de guerra, com os camponeses concentrados em seu labor cotidiano e indiferentes ao deslocamento das tropas que se preparavam para o combate.

Esse filme de Visconti é um bom exemplo de como a interpretação de uma obra literária pode ser enriquecida por outras leituras, na composição de uma nova narração, que assim se transforma em criação autônoma em relação ao texto de partida. Uma operação idêntica foi levada a cabo, 30 anos mais tarde, pelos irmãos Taviani no episódio “La giara” (que integra Kaos), quando emprestaram a Dom Lolló, um dos protagonistas da novela e da peça pirandellianas, alguns traços do avarento Mazzaró da novela Os bens, de Verga.

Isso traz de volta a discussão sobre a paternidade de uma obra cinematográfica. Baseada no romance Meninos da vida, La notte brava (1959), de Mauro Bolognini, em algumas seqüências, traz uma marca autoral tão forte de Pier Paolo Pasolini (que também assina o argumento e o roteiro), que é difícil resistir à tentação de classifi cá-la como uma espécie de obra inaugural de sua filmografia. O reverso da medalha é representado por Federico Fellini, o qual, ao filmar obras literárias, imprimiu um estilo tão pessoal que, às vezes, se tornou necessário declarar sua autoria já no título dos filmes. Foi o caso de Casanova de Fellini (1976), adaptação de Storie della mia vita, de Giacomo Casanova.

O cajado da voz

Como Soldati e Pasolini, outros autores italianos transitaram entre a literatura e o cinema: de Alberto Bevilacqua, que dirigiu quatro de suas obras levadas para a tela – La califfa (1970), Questa specie d’amore (1972), Attenti al buff one (1975) e La donna delle meraviglie (1978) –, a Andrea De Carlo, que deu ao filme Treno di panna (1988) uma estrutura própria, diferente daquela do romance homônimo.

Tampouco devem ser esquecidos diretores como Mauro Bolognini e Valerio Zurlini, em virtude do grande número de obras literárias que levaram para a tela. De Bolognini, vale destacar O belo Antonio (1960), Un bellissimo novembre (1968), L’assoluto naturale (1969) e Metello (1970), extraídos de textos de Vitaliano Brancati, Ercole Patti, Goff redo Parise e Vasco Pratolini, respectivamente. De Zurlini, podem ser arroladas suas versões para obras de Pratolini – Quando o amor é mentira (1954) e Dois destinos (1962) – e de Dino Buzzati, do qual adaptou O deserto dos tártaros (1976). Deve ser lembrada, ainda, sua penúltima realização, A primeira noite de tranqüilidade (1972), cujo roteiro deriva da última parte de uma trilogia romanesca de sua autoria (inédita e inacabada) sobre a saga de uma família italiana de colonizadores no Norte da África, a partir de fins do século XIX.

O exemplo mais significativo do amadurecimento das relações entre literatura e cinema, talvez, possa ser retirado de outra obra dos Taviani, Pai patrão (1976-1977), inspirada na autobiografia de Gavino Ledda. No plano final do prólogo do filme, Ledda entrega um cajado ao ator que interpreta seu pai; em seguida, sai de cena, enquanto o personagem dá início à ação propriamente dita. A entrega do cajado adquire o valor simbólico de entrega da voz autoral aos cineastas por parte do escritor, pois é a eles que a história passa a pertencer, para que possam transformá-la numa nova obra. (M.F.)

Antonioni - Cinema de idéias

Michelagelo Antonioni não se valeu muito de textos literários para seus filmes. Quando o fez, tratou-se de obras que lhe permitiram aquela mesma exploração das profundezas da superfície do mundo, que, segundo a crítica, caracterizou toda sua filmografia. Por isso, recusando o registro direto do que pretendia filmar, o cineasta esteve mais interessado em representar o incessante jogo entre a aparência e a essência que angustia o homem contemporâneo, o que o levou a traduzir em imagens idéias de Cesare Pavese e Luigi Pirandello.

Em As amigas (1954), esteve mais interessado em focalizar os ritos e as neuroses da burguesia de Turim, com seu vazio existencial, do que em reproduzir na tela as mitologias de Pavese, ligadas à infância e ao rincão natal. Assim, o desaparecimento de uma personagem, que permitirá à outra assumir sua identidade, acaba tendo uma conotação metafísica estranha à novela Tra donne sole, na qual se inspirou livremente.

Essa liberdade o fez dar vida ao que foi considerado o mais convincente Mattia Pascal do cinema, em O passageiro – profissão: repórter (1975). O repórter televisivo David Locke, ao defrontar-se com a morte de David Robertson no hotel no qual ambos estão hospedados, tem diante de si a mesma chance de mudança que a vida havia oferecido ao protagonista de O falecido Mattia Pascal, de Pirandello, quando o cadáver encontrado nas águas do moinho de sua cidadezinha natal é considerado como sendo o dele. A evasão, no entanto, revelar-se-á impossível para o personagem pirandelliano e para o protagonista de O passageiro.

Suicídio civil

Em virtude da morte fi ctícia, Mattia Pascal, em vez de ter uma nova existência como Adriano Meis, teve uma não-existência – uma morte civil, sem papéis, portanto, sem identidade –, da qual só saiu voltando a ser o que era antes. Locke, ao fazer da morte de Robertson a sua morte, ao renunciar à própria identidade para assumir a de outro, comete uma espécie de suicídio civil, porque se anula para transformar seu corpo no invólucro que deverá cumprir um destino que não é o seu.

Se Mattia Pascal, ao simular o suicídio de Adriano Meis, pôde voltar a assumir sua antiga (e verdadeira) identidade e esperar por sua “terceira, última e definitiva morte”, Locke, ao postergar a morte “oficial” de Robertson, escamoteia sua pulsão ao suicídio. É na impossibilidade de evasão total da sociedade que reside o parentesco de David Locke com Mattia Pascal. É a consciência dessa impossibilidade que leva o homem contemporâneo a desdobrar sua personalidade na trágica oposição entre o viver (espontaneidade vital) e o ver-se viver (exigências sociais). (M.F.)

Visconti - Sintonia literária

A relação de Luchino Visconti com a literatura foi sempre intensa. A análise de sua filmografia revela que a maior parte de seus argumentos derivou de textos literários de autores estrangeiros e italianos. Dentre estes, Giovanni Verga, Camillo Boito, Giovanni Testori, Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Gabriele D’Annunzio. Esse leque, no entanto, é muito mais amplo ao se constatar que seus filmes não pretenderam ser uma mera ilustração, mas uma releitura, ou antes, uma reescrita das obras em que o diretor milanês se baseou, reescrita essa na qual freqüentemente afloravam textos de outros autores.

Assim, só para ficar no âmbito da literatura italiana, o argumento de A terra treme (1948) baseava-se em Os Malavoglia, de Verga; o de Sedução da carne (1954), na novela Senso, de Boito, além de contar com a colaboração de Giorgio Bassani no roteiro; o de Rocco e seus irmãos (1960), em alguns dos contos de Il ponte della Ghisolfa, de Testori; os de O leopardo (1963) e O inocente (1976), nos romances homônimos de Tomasi di Lampedusa e D’Annunzio, respectivamente; o roteiro original de Vagas estrelas da Ursa (1965) inspirava-se na obra poética de Giacomo Leopardi (como atesta o título).

Diálogo com Verga

O autor italiano com que Visconti mais dialogou foi Verga. Aparentemente, o escritor siciliano estaria só na base do roteiro de A terra treme, quando, na verdade, é possível apontar sua presença também em Rocco e seus irmãos e O leopardo. O diretor, num texto intitulado “Rocco, uma continuação de A terra treme”, classificava a obra de 1960 como o segundo episódio da realização de 1948, uma vez que o núcleo principal daquele filme seria o mesmo de Os Malavoglia: a luta pela sobrevivência e por bens materiais. O tom melodramático que, num constante crescendo, vai tomando conta da narração, no entanto, acaba afastando Rocco e seus irmãos da óptica do escritor siciliano, o qual, para “dissecar” o mundo popular em seus aspectos sociais, o fazia com o distanciamento crítico próprio do Verismo.

Se, nessa obra, a presença de Verga era reconhecida, o mesmo não aconteceu com O leopardo. Nas seqüências iniciais, logo depois da interrupção da reza do terço, o príncipe Fabrizio Salina dirige-se ao jardim: lá, seus empregados encontraram o cadáver de um soldado do exército dos Bourbons, que jaz de costas, com o rosto voltado para o céu. Dessa forma, ao texto de Lampedusa, Visconti sobrepõe a parte final de um conto menos conhecido do autor siciliano, “Carne vendida”, onde é descrita a morte de um jovem soldado da infantaria. Um “esquecimento” que se explica porque, desde o início dos anos 40, o diretor estava tão por dentro do universo de Verga a ponto de senti-lo como próprio. (M.F.)

Clássicos - Citações sem aspas

Dois clássicos da literatura italiana, Divina comédia – que Dante Alighieri elaborou entre 1307 e 1320 – e Os noivos, de Alessandro Manzoni (cuja versão defi nitiva data de 1840-42), foram levados várias vezes para a tela. As primeiras versões de Os noivos são de 1908, ano em que o romance foi filmado por Mario Morais e Giuseppe De Liguoro. O mesmo De Liguoro, em 1911, com Inferno, fez a primeira adaptação da Divina comédia, inspirando-se nas gravuras de Gustave Doré que a ilustravam.

É bastante comum que textos literários que estão na base de alguns filmes não sejam arrolados explicitamente nos créditos. Tratam-se de citações sem aspas e sem atribuição de autoria, que - atestam muito mais a assimilação de uma série de leituras, principalmente dos clássicos, do que uma mera apropriação.

Em Storia di una capinera (1993), à focalização da sociedade siciliana que Giovanni Verga ofereceu no romance homônimo, Franco Zeffirelli acrescentou a descrição que Manzoni fez da peste, em Os noivos. A essa mesma obra também haviam recorrido os roteiristas de um dos episódios de Boccaccio 70 (1961), dirigido por Mario Monicelli: “Renzo e Luciana” aparentemente deriva apenas do conto “L’avventura di due sposi”, de Italo Calvino. Porém, os elementos extraídos de Os noivos conferem às desventuras de um jovem casal uma conotação social bem marcada: a de uma crítica irônica à alienação imposta pelos “servos do capital” (modernos senhores de baraço e cutelo, como o Dom Rodrigo manzoniano) à classe operária.

Os círculos de Sade

O romance do marquês de Sade, Os cento e vinte dias de Sodoma ou o elogio da libertinagem (1782-85), do qual Pasolini partiu para realizar Saló (1975), é antes uma citação do que uma transposição. Com efeito o filme divide-se em três círculos – o da mania (perversões), o da merda (coprofi lia) e o do sangue (tortura e morte). Segundo o cineasta, essa estrutura surgiu quando ele percebeu que Sade, “ao escrever, estava pensando seguramente em Dante”.

Se, no Inferno dantesco, presente e passado se fundem, pois a corporeidade das almas dos condenados, nas quais ainda palpitam as paixões, faz com que o passado tornado presente se projete para um tempo eterno, Pasolini, em seu filme, tenta alcançar essa mesma exemplaridade, “invertendo” a ordem de apresentação e projetando os anos 40 na contemporaneidade. Assim, a República Social Italiana ou República de Saló, momento de estertor do regime fascista, transforma-se na Itália dos anos 60-70, dominada, a seu ver, pelo novo fascismo. (M.F.)

Mariarosaria Fabris é professora aposentada da USP. Mestre em Língua e Literatura Italiana e Doutora em Artes (Cinema), é autora de Nelson Pereira dos Santos: um olhar neorealista?(1994) e O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (1996).

(© EntreLivros)

 

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