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Pasolini: Um escritor sem barreiras |
24/09/2008
Divulgação
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Pier Paolo Pasolini
no fi lme Contos de Canterbury, de 1972 |
Mariarosaria
Fabris
Não é fácil
dar conta da produção de Pier Paolo
Pasolini, um dos mais fecundos intelectuais
italianos de século XX. Poeta, ficcionista,
ensaísta, crítico literário, teatrólogo,
lingüista, argumentista, roteirista,
cineasta, teórico de cinema, interessou-se
ainda pelas artes plásticas, escreveu
inúmeros artigos em jornais e revistas e
manteve uma intensa correspondência com
amigos e leitores. Embora no exterior,
Pasolini tenha sido mais conhecido como
cineasta, foi como literato que surgiu no
panorama cultural italiano. Enquanto
escritor, sua obra abarca três momentos: as
décadas de 40, 50 e 60-70.
Os anos 40 foram marcados pelas longas
temporadas que passou na mítica Casarsa
delle Delizie (Friul), terra natal de sua
mãe, retratada em dois romances elaborados
no período, mas editados posteriormente:
A hora depois do sonho (1962) e Amado meu;
precedido de atos impuros (1982).
Publicou seus primeiros poemas em italiano e
friulano, dedicou-se ao desenho e à pintura,
redigiu contos, resenhas, ensaios
lingüísticos, críticas de arte para várias
revistas culturais, dentre as quais Il
Setaccio, de Bolonha. Em fins de 1949,
foi afastado da escola em que lecionava e do
Partido Comunista Italiano, por corrupção de
menores e prática de atos obscenos em
público, fugindo de Casarsa para Roma
(janeiro de 1950).
A década de 50 foi o cerne de sua produção
literária, quando deu à luz Meninos da
vida (1955) e Una vita violenta
(1959) e escreveu também boa parte dos
textos que integrarão Ali dos olhos azuis
(1965), em que focalizou os bolsões de
miséria que persistiam na periferia de Roma,
enquanto a Itália se encaminhava para o boom
econômico. Consagrou-se ainda como poeta com
Le ceneri di Gramsci (1957) e
L’usignolo della Chiesa cattolica
(1958). Com um grupo de intelectuais amigos,
fundou a revista Officina (1958-59),
reuniu seus ensaios de crítica literária em
Passione e ideologia (1960) e moveu
seus primeiros passos no cinema, colaborando
na elaboração de argumentos, diálogos e
roteiros. Começou a dedicar-se ao teatro,
traduzindo a Oréstia (1959): a
trilogia de Ésquilo está na base do
desenvolvimento trágico de seus primeiros
filmes – Desajuste social (1961) e
Mamma Roma (1962) –, em que o fado
preside o destino dos homens.
Poeta cívico
Nos anos 60-70,
continuou a atividade poética, publicando
La religione del mio tempo (1961),
Poesia in forma di rosa (1964),
Trasumanar e organizzar (1971) e La
nuova gioventù (1975), em que recolheu
suas poesias em friulano. Trasumanar e
organizzar é particularmente interessante
para o leitor brasileiro, pois, em sua
terceira parte, contém cinco poemas
dedicados ou ligados à nossa terra, que
Pasolini visitou, numa rápida passagem, em
março de 1970: “Il piagnisteo di cui parlava
Marx”, “Comunicato all’Ansa (Recife)”, “La
restaurazione di sinistra (III)”, “Atene” e,
principalmente, “Gerarchia”, no qual o Rio
de Janeiro se transforma numa espécie de
grande tela sobre a qual o autor projeta os
próprios desejos de pansexualismo.
Nesse volume de poesias o escritor deixa de
lado a literariedade para afirmar-se como
poeta cívico, em composições que têm o mesmo
tom provocatório de sua intensa participação
política e ensaística em periódicos e em
outros campos de debate público, reunida,
depois de sua morte, em Escritos póstumos
(1975), Lettere luterane (1977), Le
belle bandiere (1977), Descrizioni di
descrizioni (1979) e Caos: crônicas
políticas (1979).
Esse é também o período em que redigiu,
dentre outras, as peças teatrais Orgia
(1966-68), Pilade (1966-67),
Aff abulazione (1966-69), Bestia da
stile (1966-75), Porcile
(1967-68) e Calderón, (1967-73),
começando a lançar as idéias do que chamou
teatro da Palavra, idéias que, em
1968, se consubstanciaram no Manifesto
por um novo teatro, onde propugnava um
teatro que reunisse autor, atores e
espectadores no cumprimento de um rito
cultural.
As tragédias
deveriam ter sido sete, mas Teorema,
cuja primeira versão data de 1966, foi sendo
transformada de peça (inédita) em roteiro
cinematográfico, filme e, por fim, em
romance. Em algumas peças, a referência à
mitologia grega foi direta; em outras, mais
velada, mas quase sempre lida à luz da
psicanálise: é sintomático que seja a
linguagem do inconsciente a predominar, com
a projeção da tragédia (particular e
histórica) do homem contemporâneo nos mitos
do passado.
Em 1963, Pasolini havia começado a elaborar
La divina mimesis, obra continuada
entre 1964 e 1966 ou 1967, mas deixada
incompleta, e publicada só em 1975. Tendo
como modelo da Divina comédia, o
autor desdobra-se em Dante Alighieri e em
seu guia, o poeta latino Virgílio, trazendo
também para o campo fi ccional o embate
travado com aquela Itália que ele via
dominada pelo neocapitalismo.
Livro-laboratório
A relação de
Pasolini com a literatura começou a
esgarçar-se depois de Teorema (1968),
pois havia passado a dedicar-se cada vez
mais ao cinema. Já em 1965, tinha
apresentado a famosa comunicação “O cinema
de poesia”, na qual propunha a afi rmação da
dimensão subjetiva no discurso narrativo.
Tomando emprestada à teoria literária a
noção de discurso indireto livre (que ele
havia amplamente empregado desde seus
primeiros romances), o cineasta criava a
subjetiva indireta livre, fazendo derivar o
termo também de um procedimento
cinematográfico tradicional, o de câmera
subjetiva, que corresponde ao ponto de vista
da personagem. Essa comunicação gerou
debates tão acalorados quanto os provocados,
em 1964, pela conferência “Nuove questioni
linguistiche”, na qual anunciava que, pela
primeira vez, o italiano podia ser
considerado língua nacional. Os dois ensaios
integrarão Empirismo hereje (1972).
Em 1992, é lançado Petrolio, seu
último romance, que começou a escrever em
1972 e deixou incompleto. A publicação
causou uma grande polêmica. Texto
fragmentário, Petrolio, nas intenções
do autor, era uma espécie de
livro-laboratório, no qual pretendia ir além
dos limites da literatura.
Cinema -
Vozes literárias na tela
Logo após seu surgimento em 1895, o cinema
sentiu a necessidade de contar histórias,
enquanto tentava estruturar uma linguagem
própria. Para tanto, recorreu a outras
artes, dentre as quais a literatura, pedindo
emprestados romances, novelas, contos,
poemas épicos e dramáticos para seus
argumentos, roteiros e diálogos, além da
própria noção de discurso narrativo. A
indústria cinematográfica italiana também
escolheu como seu caminho principal o cinema
narrativo e, em 1907, lançava o primeiro
filme derivado de uma obra literária,
Ilfornaretto di Venezia, baseado no
drama homônimo de Francesco Dall’Ongaro e
produzido pela Cines de Roma. Como essa,
outras realizações do período foram
extraídas de textos românticos.
As adaptações literárias, contudo, exigiam
um conhecimento específico da arte de narrar
e, a partir de 1909, aos produtores
cinematográficos pareceu natural passar a
engajar escritores. As relações entre ambos
não foram fáceis. Primeiramente, porque nem
sempre os escritores entenderam as
diferenças de linguagem e de códigos
narrativos entre a literatura e a sétima
arte. Ademais, viam como uma espécie de
aviltamento de seu talento a atividade de
redigir intertítulos (na fase do cinema
mudo) ou roteiros originais e de adaptar
obras próprias ou alheias.
Em 1913, com o aporte do prestígio de
Gabriele D’Annunzio ao sucesso de Cabíria,
novas perspectivas na relação entre
literatura e cinema se consolidaram.
D’Annunzio, ao contrário de outros colegas
de profissão, cultivava a própria aura de
criador mesmo quando escrevia para a
indústria cinematográfica. Embora sua
contribuição ao filme de Giovanni Pastrone
tenha sido mínima, ela foi mitificada a
ponto de ser-lhe atribuída a autoria da
obra. “Apagada” a identidade do diretor, o
poeta tornou-se o autor material de
Cabíria. Essa mudança do papel do
intelectual dentro do cinema levou às
primeiras reflexões teóricas sobre a
paternidade de um filme.
Cinema
sonoro ■ Foi nesse novo contexto que se
iniciou a colaboração de Luigi Pirandello
com a nova arte. Foram mais de 40 as
realizações cinematográficas (e,
posteriormente, televisivas) que se
inspiraram em romances, novelas, peças e
argumentos originais de sua autoria.
Bastaria lembrar La canzone dell’amore
(1930), extraída da novela In
silenzio, com a qual Giovanni Righelli
inaugurava o cinema sonoro na Itália. Em
anos mais recentes, em Kaos (1984),
Paolo e Vittorio Taviani levaram para a tela
sete das Novelas para um ano e Marco
Bellocchio dirigiu Henrique IV
(1983-1984), adaptação da peça homônima, e
A ama de leite (2000), instigante
transposição cinematográfica de uma das
menos brilhantes novelas pirandellianas.
Nessa, a exemplo dos irmãos Taviani, o
diretor deu à transposição cinematográfica
uma dimensão ideológica estranha ao
original. A relação de Pirandello com o
cinema, porém, foi mais ampla, pois o
escritor expressou suas idéias sobre a
sétima arte também em algumas entrevistas e,
principalmente, no romance Si gira,
transformado depois em Cadernos de
Serafino Gubbio operador, em que ele se
interroga sobre a desumanização do homem
diante da câmera.
A presença do crítico e literato Emilio
Cecchi no comando da produtora Cines, na
década de 30, modificou as relações entre
escritores e cinema. Ao serem envolvidos
mais ativamente na realização de obras
cinematográficas, os literatos deixaram de
lado o constrangimento e a vergonha por
trabalharem para a indústria cinematográfi
ca. Nesse período, é interessante destacar a
figura do escritor Mario Soldati, que, em
sua colaboração com o cinema, conheceu de
perto as várias fases de uma produção: foi
argumentista, roteirista e diretor. Além
disso, quase todas as realizações que
dirigiu no início dos anos 40 baseavam-se em
textos literários, o que vinha estreitar
ainda mais os laços entre cinema e
literatura em seu trabalho. Seu filme mais
representativo foi, sem dúvida, Piccolo
mondo ântico (1941), no qual adaptou a
obra homônima de Antonio Fogazzaro, dandolhe
existência autônoma e respeitando, ao mesmo
tempo, o espírito do romance. Soldati
pertencia ao grupo dos chamados
calligrafi (beletristas) – dentre os
quais Alberto Lattuada, Renato Castellani e
Luigi Chiarini –, que realizavam filmes de
técnica apurada, quase sempre de inspiração
literária, o que lhes permitia não focalizar
temas atuais, subtraindo-se, assim, à
retórica e à banalidade do cinema fascista.
Cineasta - A
cultura como mediação poética
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DIVULGAÇÃO |
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Cena do
filme As mil e uma noites, de 1974,
de Pier Paolo Pasolini, com os
atores Ninetto Davoli e Luigina
Rocchi |
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OS PRIMEIROS
FILMES DE PIER PAOLO PASOLINI – Desajuste
social (1961), Mamma Roma (1962),
“A ricota” (episódio de Relações
humanas, 1963), uma das partes de La
rabbia (1963), Comizi d’amore
(1964), Sopraluoghi in Palestina per il
fi lm “Vangelo secondo Matteo” (1964) e
O evangelho segundo São Mateus (1964)
– caracterizam-se por manter certo vínculo
com o Neo Realismo.
Dois conjuntos de obras são representativos
da superação dessa fase naturalista:
o constituído por Gaviões e passarinhos
(1966) e pelos episódios “A terra
vista da lua” (As bruxas, 1966) e
“O que são as nuvens?” (Capricho à
italiana, 1968), em que o tom de fábula
passa a predominar, graças também às teorias
teatrais de Bertolt Brecht que iluminam
essas realizações; o integrado por fi lmes
baseados em peças clássicas gregas –
Édipo rei (1967), Medéia, a
feiticeira do amor (1970), Anotações
para uma Oréstia africana (1970) –,
quando o cineasta, não conseguindo mais
ancorar se na realidade, faz da cultura a
mediação necessária para sua inspiração
poética.
A fase mítica da trilogia grega corre
paralela à realização de Appunti per un
fi lm sull’India (1968), Teorema
(1968), “La sequenza del fi ore di carta”
(episódio de Amore e rabbia, 1969),
Pocilga (1969) e Le mura di Sana
(1971), período em que o cinema pasoliniano
começa a tornar-se impopular, no sentido de
não ser mais mimético, mas de salientar
exatamente aquele rito cultural que o
naturalismo de certas obras cinematográficas
tendia a camuflar.
Com a chamada trilogia da vida, Pasolini
parece retomar seu contato com o mundo
popular, um mundo popular ideal, suspenso no
tempo, portador de uma vitalidade que a
sociedade burguesa não tinha conseguido
sufocar. Deixando de lado a visão do próprio
diretor, alguns críticos, no entanto,
passaram a interrogar as obras e mostrar
como a pulsão de morte que caracterizará
Saló (1975) – com a qual o cineasta
abjura Decameron (1971), Os contos
de Canterbury (1972) e As mil e uma
noites (1974) – já está contida nas
realizações que o antecedem e, estabelecendo
uma linha de continuidade entre os quatro
filmes, preferem agrupá-los sob a etiqueta
de tetralogia da morte. (M.F.)
Realidade do
pós-guerra
Na segunda
metade dos anos 40, a afirmação do
neo-realismo tornou a modificar as relações
entre literatura e cinema. Com o fim da
guerra, os cineastas, em seu papel de
cronistas por excelência, num primeiro
momento, sobrepujaram os literatos, pois a
urgência de gravar a memória dos
acontecimentos recém-vividos parecia exigir
um registro direto, sem a intermediação da
palavra escrita. Passado esse primeiro
momento, literatura e cinema voltaram a
dialogar: no entanto, mais do que em
adaptação, preferia-se falar em inspiração.
Embora muitas vezes ainda buscassem sua
fonte de inspiração num conto ou num
romance, os autores cinematográficos
reescreviam a história, a contavam a partir
de seu ponto de vista, a interpretavam à luz
dos acontecimentos que estavam vivenciando.
Foi o caso de Cesare Zavattini quando, sob a
direção de Vittorio De Sica, levou para a
tela seu romance Totò il buono, sob o
título de Milagre em Milão (1950). O
apólogo surreal sobre a sociedade, que se
desenrolava numa cidade imaginária,
transformava-se numa fábula ambientada numa
metrópole de verdade, com referências bem
concretas à realidade do pósguerra, pois era
necessário estar em sintonia com o momento
social que o país estava vivendo. Mais
radical ainda havia sido a apropriação da
obra de Luigi Bartolini para a realização de
Ladrões de bicicleta (1948), da qual
sobrou apenas o título e a idéia do roubo do
veículo, elementos que permitiram a De Sica
e Zavattini levar adiante seu conceito de
cinema: o dos pequenos fatos de crônica, da
poética do dia-a-dia.
Luchino Visconti, antes de estrear como
cineasta, já havia escrito Ângelo.
Publicado postumo em 1993, esse romance
inacabado foi concebido por volta de 1937 e
representa uma das poucas experiências
literárias do diretor. Em Ângelo, a
crítica detectou a presença de Giovanni
Verga, o mesmo escritor que, no início dos
anos 40, voltava a ser descoberto por toda
uma geração de intelectuais de esquerda, a
qual sentia a necessidade de opor à retórica
da cultura ofi cial fascista uma cultura
enraizada na realidade social e popular do
país.
Em 1941,
Visconti adquiriu os direitos
cinematográficos de Os Malavoglia,
atraído pela plasticidade e pelo “ritmo
íntimo e musical” (como ele mesmo escrevia)
do romance de Verga, mas apenas sete anos
mais tarde conseguiu realizar a obra que
dele derivou: A terra treme. Numa
leitura gramsciana, a esse filme de 1948
poderiam ser atribuídos os mesmos limites
que haviam sido apontados na obra do
escritor siciliano. Antonio Gramsci não
considerava Verga um autor popular, por sua
céptica impassibilidade de observador, sinal
evidente do distanciamento que, durante
séculos, havia caracterizado a relação entre
intelectuais e povo na Itália. Em A terra
treme, o esteticismo das imagens foi
interpretado como o reflexo do imobilismo
social ao qual o diretor, como Verga,
parecia condenar suas personagens. Em 1948,
contudo, Visconti não poderia ter seguido a
lição de Gramsci, dado que o
comentário deste sobre o autor siciliano
integra Literatura e vida nacional,
publicado apenas em 1950. Em 1954, porém, ao
filmar Sedução da carne, o
aproveitamento dos ensinamentos gramscianos
foi outro.
Criação autônoma
Ao inspirar-se
na novela Senso, de Camillo Boito, em
que a condessa Lívia Serpieri narra de forma
fria e distanciada sua aventura
extraconjugal com um jovem ofi cial
austríaco, Visconti transformava o adultério
numa envolvente história de amor, marcada
pela fatalidade do destino de seus
protagonistas, representantes de um mundo
agonizante: o do Império austro-húngaro e da
nobreza. Dessa forma, privilegiava o gênero
melodramático (o fi lme se inicia, não por
acaso, com Il trovatore, de Giuseppe
Verdi), prestando sua homenagem a Antonio
Gramsci, para quem a ópera vinha suprir,
dentro da cultura italiana, a falta de uma
literatura popular como a que se havia
desenvolvido na França. Ademais, Sedução
da carne valia-se da interpretação
gramsciana também na releitura do
Risorgimento, visto pelo diretor sem
nenhuma ênfase retórica, ao contrário da
visão apresentada pela história oficial e
pelo cinema, em geral. A não-participação de
camadas populares no processo de unificação
do país explicitava-se, no filme, na
reconstituição das zonas de guerra, com os
camponeses concentrados em seu labor
cotidiano e indiferentes ao deslocamento das
tropas que se preparavam para o combate.
Esse filme de
Visconti é um bom exemplo de como a
interpretação de uma obra literária pode ser
enriquecida por outras leituras, na
composição de uma nova narração, que assim
se transforma em criação autônoma em relação
ao texto de partida. Uma operação idêntica
foi levada a cabo, 30 anos mais tarde, pelos
irmãos Taviani no episódio “La giara” (que
integra Kaos), quando emprestaram a
Dom Lolló, um dos protagonistas da novela e
da peça pirandellianas, alguns traços do
avarento Mazzaró da novela Os bens,
de Verga.
Isso traz de volta a discussão sobre a
paternidade de uma obra cinematográfica.
Baseada no romance Meninos da vida,
La notte brava (1959), de Mauro
Bolognini, em algumas seqüências, traz uma
marca autoral tão forte de Pier Paolo
Pasolini (que também assina o argumento e o
roteiro), que é difícil resistir à tentação
de classifi cá-la como uma espécie de obra
inaugural de sua filmografia. O reverso da
medalha é representado por Federico Fellini,
o qual, ao filmar obras literárias, imprimiu
um estilo tão pessoal que, às vezes, se
tornou necessário declarar sua autoria já no
título dos filmes. Foi o caso de Casanova
de Fellini (1976), adaptação de
Storie della mia vita, de Giacomo
Casanova.
O cajado da voz
Como Soldati
e Pasolini, outros autores italianos
transitaram entre a literatura e o cinema:
de Alberto Bevilacqua, que dirigiu quatro de
suas obras levadas para a tela – La
califfa (1970), Questa specie d’amore
(1972), Attenti al buff one
(1975) e La donna delle meraviglie
(1978) –, a Andrea De Carlo, que deu
ao filme Treno di panna (1988) uma
estrutura própria, diferente daquela do
romance homônimo.
Tampouco devem ser esquecidos diretores como
Mauro Bolognini e Valerio Zurlini, em
virtude do grande número de obras literárias
que levaram para a tela. De Bolognini, vale
destacar O belo Antonio (1960), Un
bellissimo novembre (1968),
L’assoluto naturale (1969) e Metello
(1970), extraídos de textos de Vitaliano
Brancati, Ercole Patti, Goff redo Parise e
Vasco Pratolini, respectivamente. De
Zurlini, podem ser arroladas suas versões
para obras de Pratolini – Quando o amor é
mentira (1954) e Dois destinos
(1962) – e de Dino Buzzati, do qual adaptou
O deserto dos tártaros (1976). Deve
ser lembrada, ainda, sua penúltima
realização, A primeira noite de
tranqüilidade (1972), cujo roteiro
deriva da última parte de uma trilogia
romanesca de sua autoria (inédita e
inacabada) sobre a saga de uma família
italiana de colonizadores no Norte da
África, a partir de fins do século XIX.
O exemplo mais significativo do
amadurecimento das relações entre literatura
e cinema, talvez, possa ser retirado de
outra obra dos Taviani, Pai patrão
(1976-1977), inspirada na autobiografia de
Gavino Ledda. No plano final do prólogo do
filme, Ledda entrega um cajado ao ator que
interpreta seu pai; em seguida, sai de cena,
enquanto o personagem dá início à ação
propriamente dita. A entrega do cajado
adquire o valor simbólico de entrega da voz
autoral aos cineastas por parte do escritor,
pois é a eles que a história passa a
pertencer, para que possam transformá-la
numa nova obra. (M.F.)
Antonioni -
Cinema de idéias
Michelagelo Antonioni não se valeu muito de
textos literários para seus filmes. Quando o
fez, tratou-se de obras que lhe permitiram
aquela mesma exploração das profundezas
da superfície do mundo, que, segundo a
crítica, caracterizou toda sua filmografia.
Por isso, recusando o registro direto do que
pretendia filmar, o cineasta esteve mais
interessado em representar o incessante jogo
entre a aparência e a essência que angustia
o homem contemporâneo, o que o levou a
traduzir em imagens idéias de Cesare Pavese
e Luigi Pirandello.
Em As amigas (1954), esteve mais
interessado em focalizar os ritos e as
neuroses da burguesia de Turim, com seu
vazio existencial, do que em reproduzir na
tela as mitologias de Pavese, ligadas à
infância e ao rincão natal. Assim, o
desaparecimento de uma personagem, que
permitirá à outra assumir sua identidade,
acaba tendo uma conotação metafísica
estranha à novela Tra donne sole, na
qual se inspirou livremente.
Essa liberdade o fez dar vida ao que foi
considerado o mais convincente Mattia Pascal
do cinema, em O passageiro – profissão:
repórter (1975). O repórter televisivo
David Locke, ao defrontar-se com a morte de
David Robertson no hotel no qual ambos estão
hospedados, tem diante de si a mesma chance
de mudança que a vida havia oferecido ao
protagonista de O falecido Mattia Pascal,
de Pirandello, quando o cadáver encontrado
nas águas do moinho de sua cidadezinha natal
é considerado como sendo o dele. A evasão,
no entanto, revelar-se-á impossível para o
personagem pirandelliano e para o
protagonista de O passageiro.
Suicídio
civil
Em virtude da
morte fi ctícia, Mattia Pascal, em vez de
ter uma nova existência como Adriano Meis,
teve uma não-existência – uma morte civil,
sem papéis, portanto, sem identidade –, da
qual só saiu voltando a ser o que era antes.
Locke, ao fazer da morte de Robertson a sua
morte, ao renunciar à própria identidade
para assumir a de outro, comete uma espécie
de suicídio civil, porque se anula para
transformar seu corpo no invólucro que
deverá cumprir um destino que não é o seu.
Se Mattia Pascal, ao simular o suicídio de
Adriano Meis, pôde voltar a assumir sua
antiga (e verdadeira) identidade e esperar
por sua “terceira, última e definitiva
morte”, Locke, ao postergar a morte
“oficial” de Robertson, escamoteia sua
pulsão ao suicídio. É na impossibilidade de
evasão total da sociedade que reside o
parentesco de David Locke com Mattia Pascal.
É a consciência dessa impossibilidade que
leva o homem contemporâneo a desdobrar sua
personalidade na trágica oposição entre o
viver (espontaneidade vital) e o ver-se
viver (exigências sociais). (M.F.)
Visconti -
Sintonia literária
A relação de Luchino Visconti com a
literatura foi sempre intensa. A análise de
sua filmografia revela que a maior parte de
seus argumentos derivou de textos literários
de autores estrangeiros e italianos. Dentre
estes, Giovanni Verga, Camillo Boito,
Giovanni Testori, Giuseppe Tomasi di
Lampedusa, Gabriele D’Annunzio. Esse leque,
no entanto, é muito mais amplo ao se
constatar que seus filmes não pretenderam
ser uma mera ilustração, mas uma releitura,
ou antes, uma reescrita das obras em que o
diretor milanês se baseou, reescrita essa na
qual freqüentemente afloravam textos de
outros autores.
Assim, só para ficar no âmbito da literatura
italiana, o argumento de A terra treme
(1948) baseava-se em Os Malavoglia,
de Verga; o de Sedução da carne
(1954), na novela Senso, de Boito,
além de contar com a colaboração de Giorgio
Bassani no roteiro; o de Rocco e seus irmãos
(1960), em alguns dos contos de Il ponte
della Ghisolfa, de Testori; os de O
leopardo (1963) e O inocente
(1976), nos romances homônimos de Tomasi di
Lampedusa e D’Annunzio, respectivamente; o
roteiro original de Vagas estrelas da
Ursa (1965) inspirava-se na obra poética
de Giacomo Leopardi (como atesta o título).
Diálogo com Verga
O autor
italiano com que Visconti mais dialogou foi
Verga. Aparentemente, o escritor siciliano
estaria só na base do roteiro de A terra
treme, quando, na verdade, é possível
apontar sua presença também em Rocco e
seus irmãos e O leopardo. O
diretor, num texto intitulado “Rocco, uma
continuação de A terra treme”, classificava
a obra de 1960 como o segundo episódio da
realização de 1948, uma vez que o núcleo
principal daquele filme seria o mesmo de
Os Malavoglia: a luta pela sobrevivência
e por bens materiais. O tom melodramático
que, num constante crescendo, vai tomando
conta da narração, no entanto, acaba
afastando Rocco e seus irmãos da
óptica do escritor siciliano, o qual, para
“dissecar” o mundo popular em seus aspectos
sociais, o fazia com o distanciamento
crítico próprio do Verismo.
Se, nessa obra, a presença de Verga era
reconhecida, o mesmo não aconteceu com O
leopardo. Nas seqüências iniciais, logo
depois da interrupção da reza do terço, o
príncipe Fabrizio Salina dirige-se ao
jardim: lá, seus empregados encontraram o
cadáver de um soldado do exército dos
Bourbons, que jaz de costas, com o rosto
voltado para o céu. Dessa forma, ao texto de
Lampedusa, Visconti sobrepõe a parte final
de um conto menos conhecido do autor
siciliano, “Carne vendida”, onde é descrita
a morte de um jovem soldado da infantaria.
Um “esquecimento” que se explica porque,
desde o início dos anos 40, o diretor estava
tão por dentro do universo de Verga a ponto
de senti-lo como próprio. (M.F.)
Clássicos -
Citações sem aspas
Dois clássicos da literatura italiana,
Divina comédia – que Dante Alighieri
elaborou entre 1307 e 1320 – e Os noivos,
de Alessandro Manzoni (cuja versão defi
nitiva data de 1840-42), foram levados
várias vezes para a tela. As primeiras
versões de Os noivos são de 1908, ano em que
o romance foi filmado por Mario Morais e
Giuseppe De Liguoro. O mesmo De Liguoro, em
1911, com Inferno, fez a primeira
adaptação da Divina comédia,
inspirando-se nas gravuras de Gustave Doré
que a ilustravam.
É bastante comum que textos literários que
estão na base de alguns filmes não sejam
arrolados explicitamente nos créditos.
Tratam-se de citações sem aspas e sem
atribuição de autoria, que - atestam muito
mais a assimilação de uma série de leituras,
principalmente dos clássicos, do que uma
mera apropriação.
Em Storia di una capinera (1993), à
focalização da sociedade siciliana que
Giovanni Verga ofereceu no romance homônimo,
Franco Zeffirelli acrescentou a descrição
que Manzoni fez da peste, em Os noivos.
A essa mesma obra também haviam recorrido os
roteiristas de um dos episódios de
Boccaccio 70 (1961), dirigido por Mario
Monicelli: “Renzo e Luciana” aparentemente
deriva apenas do conto “L’avventura di due
sposi”, de Italo Calvino. Porém, os
elementos extraídos de Os noivos
conferem às desventuras de um jovem casal
uma conotação social bem marcada: a de uma
crítica irônica à alienação imposta pelos
“servos do capital” (modernos senhores de
baraço e cutelo, como o Dom Rodrigo
manzoniano) à classe operária.
Os círculos de Sade
O romance do
marquês de Sade, Os cento e vinte dias de
Sodoma ou o elogio da libertinagem
(1782-85), do qual Pasolini partiu para
realizar Saló (1975), é antes uma
citação do que uma transposição. Com efeito
o filme divide-se em três círculos – o da
mania (perversões), o da merda (coprofi lia)
e o do sangue (tortura e morte). Segundo o
cineasta, essa estrutura surgiu quando ele
percebeu que Sade, “ao escrever, estava
pensando seguramente em Dante”.
Se, no Inferno dantesco, presente e
passado se fundem, pois a corporeidade das
almas dos condenados, nas quais ainda
palpitam as paixões, faz com que o passado
tornado presente se projete para um tempo
eterno, Pasolini, em seu filme, tenta
alcançar essa mesma exemplaridade,
“invertendo” a ordem de apresentação e
projetando os anos 40 na contemporaneidade.
Assim, a República Social Italiana ou
República de Saló, momento de estertor do
regime fascista, transforma-se na Itália dos
anos 60-70, dominada, a seu ver, pelo novo
fascismo. (M.F.)
Mariarosaria
Fabris é
professora aposentada da USP. Mestre em
Língua e Literatura Italiana e Doutora em
Artes (Cinema), é autora de Nelson
Pereira dos Santos: um olhar neorealista?(1994)
e O neo-realismo cinematográfico
italiano: uma leitura (1996).
(©
EntreLivros)
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