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As ilusões renovadas de um eterno recomeço

11/08/2008

 

Com As Duas Vidas de Mattia Pascal, o diretor Mario Monicelli faz uma leitura pessoal do romance do autor italiano

Luiz Zanin Oricchio

Em princípio, não haveria melhor diretor para adaptar Pirandello do que Mario Monicelli. Satíricos, ambos, mas com um travo de melancolia na maneira como se riem da vida. Para falar a verdade, o mal-estar é maior em Pirandello que em Monicelli, o que talvez explique certo descompasso deste filme que, se não deixa de ser bom, não se equipara aos melhores de Monicelli. E tampouco extrai do romance de Pirandello todas as potencialidades nele contidas.

A história é bem conhecida. Em As Duas Vidas de Mattia Pascal (Versátil, R$ 37,50), o personagem (vivido por Marcello Mastroianni) é dado como morto e nada faz para desfazer o engano. Pelo contrário. Aproveita-se dessa morte equivocada e parte para outro modo de vida. No caso, ele busca o charme dos cassinos de Montecarlo, onde se revela jogador compulsivo.

Claro, o enredo é rico de implicações psicológicas. Joga com a fantasia recorrente de recomeçar do zero, ter uma vida novinha em folha, sem os determinantes de uma existência já rotineiramente cumprida. Todos têm uma família, profissão, emprego, filhos, um grupo de amigos, uma casa, talvez um cão. Tudo isso pode ser um lastro; pode também ser um peso. Para começar do zero é preciso morrer. Simbolicamente, porque apenas um suposto desaparecimento físico daria ao sujeito a possibilidade de se comportar como se tivesse nascido de novo. É o que o engano de identificação de um cadáver proporciona ao nosso Mattia Pascal.

Essa fantasia é ela própria um engano, porque ninguém recomeça do zero a não ser que se despoje de si mesmo, mas isso Mattia ainda não pode perceber logo que readquire sua bem-vinda liberdade pessoal. Por falar nisso, há outro escritor, do lado oposto do Atlântico, que pensou a mesma coisa em outros termos - Dashiell Hammett.

Em uma passagem das mais interessantes de O Falcão Maltês, o detetive Sam Spade conta a estranha história de um homem que andava pela rua quando um andaime caiu ao seu lado e quase o atingiu. A proximidade da morte faz com que tome consciência do absurdo da vida que levava. Larga tudo. Emprego, mulher, casa, a roupa do corpo. E vai refazer a existência em outra parte do país, bem longe dali. Alguém o encontra anos depois e fica surpreso. Como havia se comportado o nosso homem, que queria reinventar a sua existência? Da maneira a mais rotineira possível. Havia arranjado um emprego na mesma profissão anterior. Sua nova casa era réplica da antiga. Havia se casado de novo...e com uma mulher muito parecida com aquela que havia deixado para trás. Fugindo de si, havia sucumbido à determinação da sua personalidade e, segundo seu plano geral, reconstruíra à perfeição a prisão da qual escapara.

Assim também é o nosso Mattia Pascal e o risível da sua recém-conquistada liberdade não escapa ao olho clínico de Monicelli, alguém acostumado a filmar tragédias como se fossem comédias. Pontuado por uma trilha interessante de Nicola Piovani, o filme funciona como se fosse às vezes um suspense, outras, como se se tratasse de uma farsa.

Mastroianni também se presta muito bem a essa duplicidade de interpretações. Grande ator dramático, era também dono de veia cômica, adotando, quando necessário, o tom bufo de quem vê neste mundo antes de tudo uma divertida comédia que deve ser aproveitada enquanto é tempo. Não por acaso, era o ator-fetiche de Fellini, diretor que amava misturar os registros em suas obras. Fellini saltava de uma seqüência dramática para a comédia rasgada e desta para a ironia sem qualquer pudor ou preparação prévia. Mastroianni o acompanhava, muito à vontade, nesse malabarismo de sentimentos.

É esse também o Mastroianni que dá vida ao Mattia Pascal de Monicelli. Nesse filme que tem muitas qualidades, exacerba-se talvez a veia cômica, deixando-se um pouco ao lado, ou ao fundo, seu aspecto mais metafísico, filosófico, meditativo do original - tudo o que está em Pirandello, afinal de contas. É uma opção do diretor, quem sabe da produção. Mesmo porque Mattia Pascal foi pensado no formato de minissérie o que, na versão para cinema, redunda em filme longo demais - nada menos que 178 minutos.

Mas, enfim, com as restrições que se possam fazer, sempre é um prazer acompanhar esse pobre Mattia Pascal em sua ilusão de começar uma vida zero quilômetro, sem qualquer débito para com o passado. De certa forma, podemos pensar o personagem como um ser único, um pateta individual, ou como alegoria mais geral num tempo em que alguns países se mostram dispostos a viver no eterno presente, liberados por fim do fardo da História.

(© Estadão)

 


Descompassos do homem moderno

Reunidas em um volume, novelas do escritor Luigi Pirandello mostram decomposição do indivíduo envolto em máscaras

Aurora Bernardini

Para o escritor siciliano Luigi Pirandello (1867-1936 ), prêmio Nobel em 1934, "entender o jogo" tanto pode significar para o indivíduo descortinar (driblar) a equívoca ambiência social que o envolve, bem como, adotando uma personalidade ilusória, tentar fugir dos limites de sua condição, limites estes porém que, quando imprecisos, podem fazer com que ele resvale na loucura. É por essas três vertentes que se desenrolam algumas das narrativas que compõem essas sintomáticas 40 Novelas de Luigi Pirandello (Companhia das Letras, 492 págs., R$ 30,80), escritas entre 1894 e 1934 e que irão confluir para peças teatrais de grande repercussão. Aliás, foi esse critério adotado para a organização da coletânea pelo tradutor Maurício Santana Dias que mostra, no prefácio, como as 40 novelas escolhidas redundaram em 30 peças elaboradas pelo autor um pouco mais tarde. Isso explica, por exemplo, o caráter marcadamente dramático que as acomuna, seja ele de cunho circunstancial, psicológico ou mesmo filosófico.

"Enquanto o mundo se embebia de Saint-Simon, Marx e Bernard Shaw, a Itália tendia a ser individualista e não coletiva, filosófica e psicológica e não social", diz Carol McLeanton em seu The Age of Pirandello. "E era uma vergonha a condição das mulheres na sociedade italiana que, ao negar-lhes os direitos humanos elementares (elas passariam a votar só em 1948), as obrigava a uma subordinação em que só podiam trapacear e afogar seus melhores sentimentos." Prova disso é - na época das heroínas de Ibsen, das vitoriosas sufragistas inglesas, americanas e das populistas russas - a preocupação feminina constante que se vislumbra nesses contos pirandellianos de "fisgar" um marido, refugiar-se na maternidade ou esquivar-se, pelo sacrifício, pela "perdição" ou pela trapaça da condenação tacanha e inexorável da moral corrente. As primeiras duas, prerrogativas das mulheres de extração mais baixa e a última, apanágio das artistas e de algumas mulheres cuja circunstância as levou a serem um pouco mais autônomas: "A grande Pompea (a cantora lírica de Tirocínio) naturalmente não o deixou escapar. Porém, considerando a própria constituição física e prevendo que, com o passar do tempo, ele talvez perdesse o apetite por tanta abundância, encontrou logo meios de pôr à sua disposição uma graciosa filhinha."

Esse tom farsesco, levado adiante por Pirandello com uma maestria toda especial quando da narrativa passa à cena, cede aos poucos espaço para o que o autor, no tratado O Humorismo, chamou de "sentimento do contrário". Não se trata de "rir de volta para a vida", como propunha Isak Dinesen, mas, "devido à reflexão inserida no germe do sentimento, feito um visgo maligno, trata-se de despertar as idéias e as imagens em contraste com esse sentimento". Algo como o que Giordano Bruno caracterizou como "In tristitia hilaris". Resulta disso uma espécie de decomposição, de livre movimento da forma e da percepção que faz com que o indivíduo veja e sinta sua própria máscara exterior (o disfarce que ele veste para viver), mas ao mesmo tempo não deixe de criar uma máscara interior. Enfim, é a desunião interna do homem moderno, obviamente, com a superação do cômico e, às vezes, com a passagem poética para o terrível, o horror. Em A Mosca e especialmente em Com a Morte em Cima, o terrível funde-se ao patético. Mas há ainda uma outra dimensão, crucial nesse conjunto de narrativas que, com o drama psicológico pós-dostoievskiano, foi responsável pelo reconhecimento mundial de Pirandello: a das personagens. Nas narrativas Personagens, Tragédia de Uma Personagem e Conversas com Personagens (o germe de Seis Personagens em Busca de Autor), trata-se, entre outras, de questões filosóficas em que "o pensamento vê a si mesmo", a consciência é "o espelho interior em que o pensamento se mira" e a volubilidade em que as personagens se vêem "expressa a sua essencialidade".

As personagens que mudam de ser a cada nova forma levam a se ter consciência da possibilidade de muitas alternativas. É nesse processo de busca - que o pragmatista Richard Rorty, em seu testamento (Filosofia como Política Cultural) chamou de "redenção", que o leitor/espectador se torna um ser autônomo: "No Ocidente, o intelectual esperou essa redenção primeiro de Deus, depois da filosofia e, finalmente, da literatura. Isso porque a literatura permite travar conhecimento com uma grande variedade de seres a que foi dado o nome de Deus ou de Verdade, respectivamente pela religião e pela filosofia."

Aurora Bernardini é professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP)

(© Estadão)


Um tenor 'sem noção' e os seus ídolos

Opera Fanatic flagra Stefan Zucker em contato às vezes constrangedor com grandes cantoras líricas italianas do passado

João Luiz Sampaio

Stefan Zuker é louco por ópera... ou um louco apaixonado por ópera? É bem provável que haja espaço para as duas possibilidades - ao menos é a sensação que se tem ao observá-lo no documentário Opera Fanatic, de Jan Schmidt-Garre, lançado agora em DVD importado (Arthaus Musik). A diretora o conheceu em Nova York e ele sugeriu que fizessem um documentário com as grandes divas italianas do passado. Jan aceitou, em termos: ela o acompanharia nas entrevistas e documentaria seus encontros com as cantoras. E Zuker acabou virando o principal personagem de um filme que leva para a tela monumentos do canto lírico como Magda Olivero (foto), Fedora Barbieri, Leyla Gencer, Giulietta Simionato e Carla Gavazzi, entre outras.

Zuker é uma figuraça. Segundo o Guiness, é o "tenor de voz mais aguda do mundo" - e é bem provável que seja esse o maior feito da sua carreira. Ama a ópera, relembra com detalhe, por exemplo, a interpretação de cada uma das entrevistadas para cada papel que fizeram. Nas entrevistas, quer saber coisas bem específicas - e, às vezes, um tanto constrangedoras. A Fedora Barbieri, então se aproximando da casa dos 80 anos, ele pergunta: "É verdade que meios-sopranos costumam ter vida sexual mais ativa que outros cantores?" Desbocada, Barbieri não pensa duas vezes: "Eu conheço sopranos que não saíam da cama..." Já após o bate-papo com Leyla Gencer, ele diz que a entrevista foi como uma experiência erótica - e a distinta senhora, constrangidíssima, prontamente encerra a conversa. Isso para não falar do comentário, que ele faz a toda hora, de que, com certeza, na época de suas entrevistadas a beleza não era importante na hora de contratar um cantor, o que o leva à seguinte conclusão, após relembrar a história de uma cantora que, nos anos 50, se recusava a depilar as axilas: "O mundo da ópera precisa de mais cantoras com pêlos embaixo do braço." (?!)

O approach de Zucker nem sempre dá certo. Marcella Pobbe, por exemplo se irrita com as perguntas do tenor; Barbieri permanece longos momentos encarando com olhar de surpresa o seu entrevistador; Leyla Gencer fica visivelmente incomodada com as suas "investidas" e a insistência em falar do magnetismo que ela "exala". Mas há muito de interessante nos depoimentos. Cada uma, no final das contas, fala o que quer, ignorando as perguntas originais - Gigliola Frazzoni dubla uma gravação de La Fanciulla del West; Simionato afirma, categoricamente - se pudesse voltar no tempo, jamais seria cantora de ópera; Marcela Pobbe reclama que Zucker pergunta pouco sobre seus triunfos; Carla Gavazzi, com aparência pacata, em uma paisagem bucólica do interior da Itália, larga o verbo sobre algumas das colegas e suas técnicas. De certa forma, a falta de pudores de Zucker arrebenta com qualquer cerimonial que normalmente se coloca em entrevistas com grandes lendas. E o retrato que delas surge acaba sendo bastante humano.

No final das contas, no entanto, o personagem principal é Zucker. Há um quê de patético nessa figura, se tem sempre a sensação de que sua ingenuidade é explorada ao máximo pela diretora. Ela explica que, quando conheceu o tenor e o ouviu falar apaixonadamente de sua idéia para um documentário sobre grandes cantoras do passado, imediatamente viu no seu encontro com seus ídolos um excelente tema para um documentário, um "outro" documentário, sobre o fanatismo. O que ela registra é a paixão de um homem que ama a ópera acima de tudo e mistura o respeito a suas entrevistadas com a familiaridade de quem viveu ao som de suas gravações. A ópera tem mesmo dessas coisas. Ouvimos um cantor e é como se estivéssemos perto dele, compartilhando as dores, os amores interrompidos, a proximidade da morte, esses temas que povoam a ópera e invadem facilmente nosso imaginário. A proximidade que vem dessas experiências é a vida de Zucker. Em certo momento, ele relembra a mãe, dando a entender que foi ela quem lhe ensinou a cantar, e quase lhe vem as lágrimas. A partir daí, o pitoresco começa a dar lugar a uma simpatia muito grande na câmera da diretora. A "loucura" de Zucker é viver em função da música, ou ter a música como eixo condutor de suas experiências. Há, claro, gradações mas, no fundo, no fundo, a loucura de Zucker é a de todos nós que amamos a ópera. Há loucuras piores por aí.

(© Estadão)

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