Com As Duas Vidas de Mattia Pascal, o diretor Mario Monicelli faz uma
leitura pessoal do romance do autor italiano
Luiz Zanin Oricchio
Em princípio, não haveria melhor diretor para adaptar Pirandello do que
Mario Monicelli. Satíricos, ambos, mas com um travo de melancolia na maneira
como se riem da vida. Para falar a verdade, o mal-estar é maior em
Pirandello que em Monicelli, o que talvez explique certo descompasso deste
filme que, se não deixa de ser bom, não se equipara aos melhores de
Monicelli. E tampouco extrai do romance de Pirandello todas as
potencialidades nele contidas.
A história é bem conhecida. Em As Duas Vidas de Mattia Pascal (Versátil, R$
37,50), o personagem (vivido por Marcello Mastroianni) é dado como morto e
nada faz para desfazer o engano. Pelo contrário. Aproveita-se dessa morte
equivocada e parte para outro modo de vida. No caso, ele busca o charme dos
cassinos de Montecarlo, onde se revela jogador compulsivo.
Claro, o enredo é rico de implicações psicológicas. Joga com a fantasia
recorrente de recomeçar do zero, ter uma vida novinha em folha, sem os
determinantes de uma existência já rotineiramente cumprida. Todos têm uma
família, profissão, emprego, filhos, um grupo de amigos, uma casa, talvez um
cão. Tudo isso pode ser um lastro; pode também ser um peso. Para começar do
zero é preciso morrer. Simbolicamente, porque apenas um suposto
desaparecimento físico daria ao sujeito a possibilidade de se comportar como
se tivesse nascido de novo. É o que o engano de identificação de um cadáver
proporciona ao nosso Mattia Pascal.
Essa fantasia é ela própria um engano, porque ninguém recomeça do zero a não
ser que se despoje de si mesmo, mas isso Mattia ainda não pode perceber logo
que readquire sua bem-vinda liberdade pessoal. Por falar nisso, há outro
escritor, do lado oposto do Atlântico, que pensou a mesma coisa em outros
termos - Dashiell Hammett.
Em uma passagem das mais interessantes de O Falcão Maltês, o detetive Sam
Spade conta a estranha história de um homem que andava pela rua quando um
andaime caiu ao seu lado e quase o atingiu. A proximidade da morte faz com
que tome consciência do absurdo da vida que levava. Larga tudo. Emprego,
mulher, casa, a roupa do corpo. E vai refazer a existência em outra parte do
país, bem longe dali. Alguém o encontra anos depois e fica surpreso. Como
havia se comportado o nosso homem, que queria reinventar a sua existência?
Da maneira a mais rotineira possível. Havia arranjado um emprego na mesma
profissão anterior. Sua nova casa era réplica da antiga. Havia se casado de
novo...e com uma mulher muito parecida com aquela que havia deixado para
trás. Fugindo de si, havia sucumbido à determinação da sua personalidade e,
segundo seu plano geral, reconstruíra à perfeição a prisão da qual escapara.
Assim também é o nosso Mattia Pascal e o risível da sua recém-conquistada
liberdade não escapa ao olho clínico de Monicelli, alguém acostumado a
filmar tragédias como se fossem comédias. Pontuado por uma trilha
interessante de Nicola Piovani, o filme funciona como se fosse às vezes um
suspense, outras, como se se tratasse de uma farsa.
Mastroianni também se presta muito bem a essa duplicidade de interpretações.
Grande ator dramático, era também dono de veia cômica, adotando, quando
necessário, o tom bufo de quem vê neste mundo antes de tudo uma divertida
comédia que deve ser aproveitada enquanto é tempo. Não por acaso, era o
ator-fetiche de Fellini, diretor que amava misturar os registros em suas
obras. Fellini saltava de uma seqüência dramática para a comédia rasgada e
desta para a ironia sem qualquer pudor ou preparação prévia. Mastroianni o
acompanhava, muito à vontade, nesse malabarismo de sentimentos.
É esse também o Mastroianni que dá vida ao Mattia Pascal de Monicelli. Nesse
filme que tem muitas qualidades, exacerba-se talvez a veia cômica,
deixando-se um pouco ao lado, ou ao fundo, seu aspecto mais metafísico,
filosófico, meditativo do original - tudo o que está em Pirandello, afinal
de contas. É uma opção do diretor, quem sabe da produção. Mesmo porque
Mattia Pascal foi pensado no formato de minissérie o que, na versão para
cinema, redunda em filme longo demais - nada menos que 178 minutos.
Mas, enfim, com as restrições que se possam fazer, sempre é um prazer
acompanhar esse pobre Mattia Pascal em sua ilusão de começar uma vida zero
quilômetro, sem qualquer débito para com o passado. De certa forma, podemos
pensar o personagem como um ser único, um pateta individual, ou como
alegoria mais geral num tempo em que alguns países se mostram dispostos a
viver no eterno presente, liberados por fim do fardo da História.
(©
Estadão)
Descompassos do homem moderno
Reunidas em um volume, novelas do escritor Luigi Pirandello mostram
decomposição do indivíduo envolto em máscaras
Aurora Bernardini
Para o escritor siciliano Luigi Pirandello (1867-1936 ), prêmio Nobel em
1934, "entender o jogo" tanto pode significar para o indivíduo
descortinar (driblar) a equívoca ambiência social que o envolve, bem
como, adotando uma personalidade ilusória, tentar fugir dos limites de
sua condição, limites estes porém que, quando imprecisos, podem fazer
com que ele resvale na loucura. É por essas três vertentes que se
desenrolam algumas das narrativas que compõem essas sintomáticas 40
Novelas de Luigi Pirandello (Companhia das Letras, 492 págs., R$ 30,80),
escritas entre 1894 e 1934 e que irão confluir para peças teatrais de
grande repercussão. Aliás, foi esse critério adotado para a organização
da coletânea pelo tradutor Maurício Santana Dias que mostra, no
prefácio, como as 40 novelas escolhidas redundaram em 30 peças
elaboradas pelo autor um pouco mais tarde. Isso explica, por exemplo, o
caráter marcadamente dramático que as acomuna, seja ele de cunho
circunstancial, psicológico ou mesmo filosófico.
"Enquanto o mundo se embebia de Saint-Simon, Marx e Bernard Shaw, a
Itália tendia a ser individualista e não coletiva, filosófica e
psicológica e não social", diz Carol McLeanton em seu The Age of
Pirandello. "E era uma vergonha a condição das mulheres na sociedade
italiana que, ao negar-lhes os direitos humanos elementares (elas
passariam a votar só em 1948), as obrigava a uma subordinação em que só
podiam trapacear e afogar seus melhores sentimentos." Prova disso é - na
época das heroínas de Ibsen, das vitoriosas sufragistas inglesas,
americanas e das populistas russas - a preocupação feminina constante
que se vislumbra nesses contos pirandellianos de "fisgar" um marido,
refugiar-se na maternidade ou esquivar-se, pelo sacrifício, pela
"perdição" ou pela trapaça da condenação tacanha e inexorável da moral
corrente. As primeiras duas, prerrogativas das mulheres de extração mais
baixa e a última, apanágio das artistas e de algumas mulheres cuja
circunstância as levou a serem um pouco mais autônomas: "A grande Pompea
(a cantora lírica de Tirocínio) naturalmente não o deixou escapar.
Porém, considerando a própria constituição física e prevendo que, com o
passar do tempo, ele talvez perdesse o apetite por tanta abundância,
encontrou logo meios de pôr à sua disposição uma graciosa filhinha."
Esse tom farsesco, levado adiante por Pirandello com uma maestria toda
especial quando da narrativa passa à cena, cede aos poucos espaço para o
que o autor, no tratado O Humorismo, chamou de "sentimento do
contrário". Não se trata de "rir de volta para a vida", como propunha
Isak Dinesen, mas, "devido à reflexão inserida no germe do sentimento,
feito um visgo maligno, trata-se de despertar as idéias e as imagens em
contraste com esse sentimento". Algo como o que Giordano Bruno
caracterizou como "In tristitia hilaris". Resulta disso uma espécie de
decomposição, de livre movimento da forma e da percepção que faz com que
o indivíduo veja e sinta sua própria máscara exterior (o disfarce que
ele veste para viver), mas ao mesmo tempo não deixe de criar uma máscara
interior. Enfim, é a desunião interna do homem moderno, obviamente, com
a superação do cômico e, às vezes, com a passagem poética para o
terrível, o horror. Em A Mosca e especialmente em Com a Morte em Cima, o
terrível funde-se ao patético. Mas há ainda uma outra dimensão, crucial
nesse conjunto de narrativas que, com o drama psicológico
pós-dostoievskiano, foi responsável pelo reconhecimento mundial de
Pirandello: a das personagens. Nas narrativas Personagens, Tragédia de
Uma Personagem e Conversas com Personagens (o germe de Seis Personagens
em Busca de Autor), trata-se, entre outras, de questões filosóficas em
que "o pensamento vê a si mesmo", a consciência é "o espelho interior em
que o pensamento se mira" e a volubilidade em que as personagens se vêem
"expressa a sua essencialidade".
As personagens que mudam de ser a cada nova forma levam a se ter
consciência da possibilidade de muitas alternativas. É nesse processo de
busca - que o pragmatista Richard Rorty, em seu testamento (Filosofia
como Política Cultural) chamou de "redenção", que o leitor/espectador se
torna um ser autônomo: "No Ocidente, o intelectual esperou essa redenção
primeiro de Deus, depois da filosofia e, finalmente, da literatura. Isso
porque a literatura permite travar conhecimento com uma grande variedade
de seres a que foi dado o nome de Deus ou de Verdade, respectivamente
pela religião e pela filosofia."
Aurora Bernardini é professora de pós-graduação em Teoria Literária e
Literatura Comparada (USP)
(©
Estadão)
Um tenor 'sem noção' e os seus ídolos
Opera Fanatic flagra Stefan Zucker em contato às vezes constrangedor com
grandes cantoras líricas italianas do passado
João Luiz Sampaio
Stefan Zuker é louco por ópera... ou um louco apaixonado por ópera? É bem
provável que haja espaço para as duas possibilidades - ao menos é a sensação
que se tem ao observá-lo no documentário Opera Fanatic, de Jan
Schmidt-Garre, lançado agora em DVD importado (Arthaus Musik). A diretora o
conheceu em Nova York e ele sugeriu que fizessem um documentário com as
grandes divas italianas do passado. Jan aceitou, em termos: ela o
acompanharia nas entrevistas e documentaria seus encontros com as cantoras.
E Zuker acabou virando o principal personagem de um filme que leva para a
tela monumentos do canto lírico como Magda Olivero (foto), Fedora Barbieri, Leyla
Gencer, Giulietta Simionato e Carla Gavazzi, entre outras.
Zuker é uma figuraça. Segundo o Guiness, é o "tenor de voz mais aguda do
mundo" - e é bem provável que seja esse o maior feito da sua carreira. Ama a
ópera, relembra com detalhe, por exemplo, a interpretação de cada uma das
entrevistadas para cada papel que fizeram. Nas entrevistas, quer saber
coisas bem específicas - e, às vezes, um tanto constrangedoras. A Fedora
Barbieri, então se aproximando da casa dos 80 anos, ele pergunta: "É verdade
que meios-sopranos costumam ter vida sexual mais ativa que outros cantores?"
Desbocada, Barbieri não pensa duas vezes: "Eu conheço sopranos que não saíam
da cama..." Já após o bate-papo com Leyla Gencer, ele diz que a entrevista
foi como uma experiência erótica - e a distinta senhora, constrangidíssima,
prontamente encerra a conversa. Isso para não falar do comentário, que ele
faz a toda hora, de que, com certeza, na época de suas entrevistadas a
beleza não era importante na hora de contratar um cantor, o que o leva à
seguinte conclusão, após relembrar a história de uma cantora que, nos anos
50, se recusava a depilar as axilas: "O mundo da ópera precisa de mais
cantoras com pêlos embaixo do braço." (?!)
O approach de Zucker nem sempre dá certo. Marcella Pobbe, por exemplo se
irrita com as perguntas do tenor; Barbieri permanece longos momentos
encarando com olhar de surpresa o seu entrevistador; Leyla Gencer fica
visivelmente incomodada com as suas "investidas" e a insistência em falar do
magnetismo que ela "exala". Mas há muito de interessante nos depoimentos.
Cada uma, no final das contas, fala o que quer, ignorando as perguntas
originais - Gigliola Frazzoni dubla uma gravação de La Fanciulla del West;
Simionato afirma, categoricamente - se pudesse voltar no tempo, jamais seria
cantora de ópera; Marcela Pobbe reclama que Zucker pergunta pouco sobre seus
triunfos; Carla Gavazzi, com aparência pacata, em uma paisagem bucólica do
interior da Itália, larga o verbo sobre algumas das colegas e suas técnicas.
De certa forma, a falta de pudores de Zucker arrebenta com qualquer
cerimonial que normalmente se coloca em entrevistas com grandes lendas. E o
retrato que delas surge acaba sendo bastante humano.
No final das contas, no entanto, o personagem principal é Zucker. Há um quê
de patético nessa figura, se tem sempre a sensação de que sua ingenuidade é
explorada ao máximo pela diretora. Ela explica que, quando conheceu o tenor
e o ouviu falar apaixonadamente de sua idéia para um documentário sobre
grandes cantoras do passado, imediatamente viu no seu encontro com seus
ídolos um excelente tema para um documentário, um "outro" documentário,
sobre o fanatismo. O que ela registra é a paixão de um homem que ama a ópera
acima de tudo e mistura o respeito a suas entrevistadas com a familiaridade
de quem viveu ao som de suas gravações. A ópera tem mesmo dessas coisas.
Ouvimos um cantor e é como se estivéssemos perto dele, compartilhando as
dores, os amores interrompidos, a proximidade da morte, esses temas que
povoam a ópera e invadem facilmente nosso imaginário. A proximidade que vem
dessas experiências é a vida de Zucker. Em certo momento, ele relembra a
mãe, dando a entender que foi ela quem lhe ensinou a cantar, e quase lhe vem
as lágrimas. A partir daí, o pitoresco começa a dar lugar a uma simpatia
muito grande na câmera da diretora. A "loucura" de Zucker é viver em função
da música, ou ter a música como eixo condutor de suas experiências. Há,
claro, gradações mas, no fundo, no fundo, a loucura de Zucker é a de todos
nós que amamos a ópera. Há loucuras piores por aí.
(©
Estadão)
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