Daniele Luchetti fala de Meu Irmão É Filho Único e avalia tendências
Luiz Carlos Merten
Algo de novo está se passando no cinema italiano. Após a morte dos grandes mestres, não surgia nada de particularmente excitante no cinema da Itália. Algum Marco Bellochio, algum Marco Tullio Giordana e Bernardo Bertolucci e, claro, Nanni Moretti e, ocasionalmente, Roberto Benigni. Em Cannes, no ano passado, Mio Fratello È Figlio Unico, de Daniele Luchetti, fez sucesso de público e crítica numa das mostras paralelas. Este ano, havia dois concorrentes italianos na competição, e ambos foram premiados - Il Divo, de Paolo Sorrentino, e Gomorra, de Matteo Garrone. Embora diferentes em técnica e estilo, compartilham o mesmo ator, o extraordinário Toni Servillo.
Meu Irmão É Filho Único estréia hoje nos cinemas da cidade. Prepare-se para um forte impacto. Um filme sobre família e política, que faz a síntese entre Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti, e La Meglio Gioventù, de Giordana. Numa entrevista por telefone, Luchetti aprova a definição. Rocco e La Terra Trema são seus filmes favoritos de Visconti - e ele considera o grande autor uma referência indispensável para quem faz cinema na Itália. No que se refere a La Meglio Gioventù, Luchetti faz uma confissão. "O filme me foi oferecido, antes de parar nas mãos de Marco Tullio, mas eu queria mudar muita coisa, compactar outras. Preferi abandonar o projeto e foi melhor assim, porque Marco Tullio fez um filme que me emocionou muito. Seria presunção de minha parte achar que poderia tê-lo feito melhor"
Quanto ao fato de haver uma nova corrente, ele diz que é conseqüência da mobilização da categoria nos últimos dez anos. "Temos uma lei que obriga as emissoras de TV, públicas e privadas, a investir em produções próprias para cinema. Antes, somente importávamos enlatados norte-americanos. Agora temos nossas séries, formamos técnicos e atores. Servillo é este grande ator que você fala, mas chegou ao cinema com a bagagem que adquiriu como ator de teatro e de televisão, fazendo uma série policial de grande apelo popular."
Luchetti é um pouco mais velho do que Garrone e Sorrentino. Nasceu em 1960, Garrone é de 68, Sorrentino, de 70. Ele também estreou antes - com Domani Accadrà, em 1988 -, depois de ter sido assistente de Moretti. De cara, ganhou o David Di Donatello, o Oscar do cinema italiano. Ele não procurava especificamente uma história de família, mas queria refletir sobre as mudanças de comportamentos em relação aos anos 60. Os jovens hoje são estimulados a ser individualistas e competitivos. Não crêem em utopias. Foi quando descobriu o romance Il Fasciocomunista, de Antonio Pennacchi, que havia sido editado pela Mondadori. "O próprio Antonio é um personagem extraordinário. Foi coroinha, fascista, comunista e hoje é escritor. O filme muda muita coisa em relação ao livro. As relações familiares, com a garota que os dois irmãos amam. Mas há um núcleo muito forte que se manteve - a família e a política."
O cinema italiano - pensem em Visconti, em Valerio Zurlini (Dois Destinos) - é um cinema da família, mas também existe uma importante tradição política que percorre os anos 60 e se consolida nos 70. "Mas sempre houve o que para mim era um problema. Os diretores tendiam a desumanizar os fascistas, a criar estereótipos pensando somente em seus discursos. Antonio Pennacchi, por ter sido fascista, fala de dentro. Me agradou essa possibilidade de ser verdadeiro, de tentar entender os pontos de vista dos dois irmãos." Eles se chamam Accio e Manrico e crescem numa pequena cidade interiorana, Latina. A família espera por condições decentes de habitação - como Rosario Parondi e seus cinco filhos chegados a Milão em Rocco.
Accio vai para o seminário e parece destinado a virar padre, como Antonio Pennachi. Mas ele se liga a um contrabandista de tendências direitistas. Seu irmão arranja emprego numa fábrica e vira líder sindical. Manrico apaixona-se por Francesca, mas Accio também cai de amores pela garota. Como na obra-prima de Visconti, os dois irmãos - lá, Rocco e Simone - ameaçam levar a família à desintegração. Luchetti conta, mesmo correndo o risco de ser injusto com Riccardo Scamarcio, que faz Manrico, que a força do filme - sua empatia com o público - vem de Elio Germano, o intérprete de Accio, vencedor do David Di Donattelo. "O personagem é um bronco e, inicialmente, eu incorri no erro de buscar um ator pelo physique du rôle. Quando conheci Germano, dei-me conta de que seria mais interessante (e complexo) fazer com que o ator fosse alguém completamente diverso. Em vez do bronco brigão, alguém capaz de expressar a inteligência, a sensibilidade. Foi a melhor decisão que tomei na minha vida."
Embora o filme se passe nos anos 60 - e uma parte importante é no emblemático ano de 68 -, Luchetti não quis fazer um filme de época. Aliás, ele diz que não gosta muito dos filmes em ?costume? de Visconti, mesmo que Sedução da Carne, O Leopardo, Os Deuses Malditos e Morte em Veneza sejam reconhecidos por muitos críticos como obras-primas. "A luta política permanece sempre um fundo para o drama humano. É a história de dois irmãos que se amam e respeitam, mas brigam e não conseguem se comunicar." As poucas concessões ao espírito da época se fazem por meio dos carros e de algumas canções (Ma Che Freddo Fa, Riderà e Chariot). Embora seja um projeto que amadureceu muito no processo de roteiro e pré-produção, Luchetti diz que a improvisação foi fundamental. "Tinha atores jovens mas já conhecidos, Germano e Scamarcio, contracenando com veteranos de muita experiência, como Luca Zingaretti e Angela Finocchiaro, que ganhou o David de melhor atriz coadjuvante. O que fiz foi preparar a todos para que desistissem de usar ?truques? de interpretação. Eliminei as indicações de quadro e movimento no interior do plano e, com a cumplicidade do diretor de fotografia e do câmera, deixei o elenco com toda liberdade para criar as cenas. Filmamos como se os eventos fossem reais. A conseqüência foi essa sensação de coisa verdadeira, além de um frescor e um comprometimento pessoal de todos que me permitiu dispor de um material muito rico para montagem."
'Meu Irmão é Filho Único', de Daniele Lucchetti, venceu 4 prêmios David de Donatello, o principal da Itália
Neusa Barbosa, da Reuters
SÃO PAULO - O título Meu Irmão é Filho Único sugere uma comédia italiana à moda antiga. Mas o filme assinado pelo diretor Daniele Lucchetti avança além do humor para retratar uma família operária dividida por questões ideológicas e morais entre os anos 1960 e 2000. O filme estréia em São Paulo e Rio de Janeiro nesta sexta-feira, 1.
Aos 48 anos, Lucchetti é, ao lado de Nanni Moretti, um dos principais diretores italianos da atualidade. Ele venceu quatro prêmios David de Donatello, o principal da Itália, para Meu Irmão é Filho Único, seu 12.º filme. Os prêmios foram de melhor ator (Elio Germano), atriz coadjuvante (Angela Finocchiaro), montagem e roteiro.
O roteiro, aliás, foi adaptado do livro Il Fasciocomunista, de Antonio Pennacchi, pelo próprio diretor com a parceria da dupla Sandro Petraglia e Stefano Rulli, autores do script da minissérie A Melhor Juventude (2003), de Marco Tullio Giordana, exibida na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Nada melhor do que uma história em torno de dois irmãos para simbolizar a divisão que no começo dos anos 60 agitava a Itália. Na família Benassi, moradora de Latina, cidade-modelo perto de Roma criada por ninguém menos que Benito Mussollini, Manrico (Riccardo Scamarcio) é o filho mais velho. Bonito, carismático, operário e de esquerda, assim como o pai (Massimo Popolizio), ele é querido por todo mundo.
O filho caçula, Accio (quando adulto, interpretado por Elio Germano, de Respiro), é o contrário. Rebelde e teimoso, tenta muitos caminhos e fracassa não por incapacidade mas por sua maneira muito pessoal de ver as coisas.
Quando garoto, Accio pensava em tornar-se padre, mas acaba expulso do seminário por mau comportamento. Universidade e Exército também não são para ele. O rapaz termina seduzido pelo discurso falsamente grandioso das brigadas neofascistas de sua cidade, sufocada pela pobreza e a falta de horizontes.
Comunistas e sindicalistas, líderes de greves, o pai e o irmão reagem violentamente a esta escolha. A mãe (Angela Finocchiaro) e a irmã Violetta (Alba Rohrwacher) também não compreendem Accio. Mas, como nas melhores comédias italianas, todo mundo briga e a família continua morando sob o mesmo teto.
De maneira consistente, o diretor passa em revista algumas das décadas mais incendiárias da história recente da Itália. Examina inclusive a radicalização da esquerda italiana em direção ao terrorismo, em movimentos como as Brigadas Vermelhas. Ao mesmo tempo, mantém o foco no intimismo, expondo os sentimentos complexos que mantêm sempre em contato os dois irmãos, por mais opostos que sejam.
Evitando o maniqueísmo, o filme não perde o ritmo. E o que é melhor, a história prossegue sempre temperada por ironia e humor que atenuam, mas não banalizam, os assuntos densos que aborda.