"O Eclipse" retrata reunião fictícia entre diva do teatro e criador do cinema em SP
Escrita por Jandira Martini, que também interpreta a protagonista, espetáculo discute os limites entre arte e entretenimento
MARCOS DÁVILA COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
No dia 24 de julho de 1907, enquanto os paulistanos se alvoroçavam para ver o eclipse lunar, abria-se a cortina para a diva italiana Eleonora Duse (1858-1924) no Theatro Sant'Anna, na rua Boa Vista. Dali a alguns dias, o empresário espanhol Francisco Serrador (1872-1941) estrearia um cinematógrafo, recente invenção dos irmão Lumière, no mesmo palco. Do imaginado encontro entre os dois personagens históricos, mais o cozinheiro imigrante Pietro, que preparava massas no hotel em que a diva ficou hospedada, a atriz Jandira Martini criou a comédia dramática "O Eclipse", que estréia hoje, às 21h, no teatro Jaraguá, com direção de Jô Soares. Grande parte da inspiração veio do livro "Sous les Étoiles -Souvenirs de Théâtre" (editado em 1933 pela Librairie Gallimard), no qual o diretor de teatro francês Lugnè Poe descreve a viagem que fez com Eleonora Duse a São Paulo para encenar a peça "Hedda Gabler", de Ibsen. A partir de informações do livro e de pesquisas em jornais da época, Jandira, que também interpreta a diva, criou essa reunião fictícia. "Ela, que era chamada "a divina entre as divinas", tinha consciência de que estava se ordenando uma grande modificação nas comunicações de massa. Daí surgiu a idéia do confronto entre o teatro e o cinema", diz a autora. Embora seja "praticamente desconhecida" no Brasil, como ressalta Jandira, a influência de Eleonora Duse no teatro moderno não foi pequena: "O Stanislavski criou seu método inspirado por ela, que era absolutamente moderna. Ela acabou com a grande voz, o grande gesto. Era completamente antagônica à Sarah Bernhardt, que tinha aquela coisa exagerada". E é justamente esse teatro das grandes divas que, na peça, aparece em seu momento de eclipse. Para o humorista e apresentador Jô Soares, que dirige o espetáculo, "Duse já sabe que o cinema vai ser uma arte importante, popular e com "a" maiúsculo". A ação se dá na galeria do hotel e rotisserie Sportsman, na rua São Bento, onde Duse ficou hospedada. Lá, ela conhece o imigrante italiano Pietro (Roney Facchini), que preparava as massas para os hóspedes, e trava seu embate com o empresário Francisco Serrador (Maurício Guilherme), que fundou o primeiro cinema de São Paulo, o Bijou-Theatre, na avenida São João. Os limites entre a arte e o entretenimento são discutidos na peça. "O cinema surgiu por meio de negociantes que começaram a ver que se você colocava um trem passando na tela e cobra- va um níquel, as pessoas iam ver", afirma Jô Soares. "O que motivou isso foi o entretenimento." Para Jandira, é "essencial" em teatro o confronto do ser humano. O ECLIPSE
Quando: estréia hoje, 21h. Sex., 21h30, sáb., 21h e dom., às 19h Onde: teatro Jaraguá (r. Martins Fontes, 71, tel. 0/xx/11/3255-4380 Quanto: R$ 60 Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
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Folha de S. Paulo)
O Eclipse e a diva italiana que temeu a chegada do cinemaPeça de Jandira Martini faz metáfora sobre um estilo de arte que se esgota Um eclipse da Lua atraiu estrangeiros e brasileiros a São Paulo no dia 24 de julho de 1907. Na ocasião, estava na cidade a grande atriz italiana Eleonora Duse (1858-1924), mas não atraída pelo fênomeno astronômico. Com sua companhia, apresentava Hedda Gabler, de Ibsen, uma das quatro peças do repertório que mostrou na cidade entre os dias 20 de julho a 3 de agosto, no Theatro Sant''Anna. No mesmo palco, no dia 4, Francisco Serrador - empresário que mais tarde criaria uma grande rede de cinemas - estrearia seu novo e moderno cinematógrafo.
Para olhares menos atentos, a informação acima poderia não passar de mera curiosidade. Fascinada por Eleonora Duse - leu diversas biografias, cartas -, Jandira Martini viu nesse acaso matéria-prima teatral. E mais. E escreveu a peça O Eclipse, um encontro imaginado, na noite de 24 de julho, entre Eleonora Duse, Francisco Serrador e um imigrante italiano, misto de cozinheiro e faz-tudo, cuja presença no hotel onde Duse ficou, em São Paulo, foi registrada num diário de viagem. Sob a direção de Jô Soares, com a autora no papel da diva italiana, Roney Facchini como o cozinheiro e Maurício Guilherme interpretando Serrador, o espetáculo estréia hoje no Teatro Jaraguá, exatamente 101 anos após aquele eclipse.
O que há de comum entre essas pessoas? ''Os três têm sonhos e lutam por sua realização. São batalhadores'', diz Jandira. Ela conta que o fascínio por Eleonora, por si só, não a motivaria a escrever uma peça. ''Não gosto de biografia no palco. Mas o fato de ela estar no Brasil já começa a interessar'', argumenta. O estímulo tornou-se maior quando a autora se deu conta que a diva chega aqui num momento difícil de sua vida. Havia se separado de seu grande amor, Gabriele D''Annunzio, autor de peças como La Gioconda e Francesca de Rimini escritas especialmente para ela. ''Ele a traía o tempo todo, mas isso ela podia perdoar. Mas não o fato de ele ter dado para outra atriz um papel que deveria ser dela.''
No campo da arte, Eleonora também ousou ao abandonar os grandes gestos teatrais da época e exercita-se numa interpretação mais contida, incompreendida por parte do público e da crítica. ''Alguns diziam: ela fala igual a gente, assim, qualquer um pode ser atriz'', observa Jandira. Na peça, tudo isso vem à tona a partir das discussões da diva ora com o cozinheiro, ora com o empresário. ''Ele é fã de Eleonora, a quem nunca pôde ver no palco de sua pátria. Subitamente, se vê diante de seu ídolo e não resiste sem falar com ela'', diz Facchini.
Como tantos outros, esse imigrante veio na esperança de ficar rico e trazer a família, mas já está afastado da mulher e dos filhos há cinco anos e ainda não conseguiu juntar dinheiro o suficiente para trazê-los. Rechaçado pela irascível Eleonora, acaba por conseguir estabelecer com ele um vínculo afetivo - na ficção, é claro. Se o encontro com o cozinheiro é emocional, as discussões com Serrador são de outra ordem. ''Esse eclipse é também uma metáfora de um estilo de arte que se esgota - o teatro das divas - e uma outra que chega, o cinema'', diz Jandira. ''Embora Eleonora em seu discurso defenda o teatro e despreze o cinematógrafo, ela percebe a mudança que está por vir.''
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Estadão) |