Crítica/"Quase a Mesma Coisa"
Em livro para iniciados, o autor italiano vê a arte de traduzir como "negociação" e defende a fidelidade ao idioma original NOEMI JAFFE COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Se, como dizia Freud, a melancolia, por oposição ao luto, é a dor pela perda de um objeto que não se conhece, então a atividade de tradução é mesmo uma das mais melancólicas possíveis. O tradutor se aventura permanentemente num território de completa alteridade e, mesmo quando chega a conhecer seu objeto, está condenado a perdê-lo no momento de traduzi-lo. Traduzir é necessariamente perder. Se já é impossível traduzir o que se pensa para o que se diz, o que uma pessoa diz para o que outra pessoa entende, imagine-se então verter toda uma cultura, uma tradição, uma ambiência, uma visão de mundo para outra completamente diferente. Umberto Eco, em seu último livro, "Quase a Mesma Coisa", consola um pouco a tarefa do tradutor e reduz a idéia de "perda" para a idéia mais simpática de "negociação". Traduzir, para o autor, é negociar. Perde-se aqui, ganha-se acolá. Se não podemos chegar à língua babélica ou adâmica, em que todos se compreendem magicamente, e se também não nos satisfazemos com a multiplicidade infinita de incompreensões (coisa que nenhum tradutor Altavista consegue resolver), a solução, para Eco, seria aprendermos sempre a lidar e a ajustar as nossas diferenças. Afinal, como ser fiel (conceito que Eco discute em profundidade) numa tradução do italiano para o português, se, por exemplo, as palavras "sobrinho", "sobrinha", "neto" e "neta", em italiano, são todas representadas por uma única palavra: "nipote"?
Restrições Por que, em português, que, assim como o italiano, também deriva do latim, resolveu-se desdobrar em quatro aquilo que na Itália restringiu-se a apenas um? Eco responde a esse abismo cultural, dizendo que a tradução se refere a "mundos possíveis", mundos que necessariamente implicam um contexto narrativo, sintático e temporal, e mundos relativos, não absolutos, sempre sujeitos a novas mudanças. Se dizem que a palavra "saudade" só existe em português, será que os falantes de outras línguas não têm esse sentimento? Como traduzi-la: sentir falta, sentir a ausência, fazer falta? Como traduzir uma expressão como "Dá-lhe 70!" para outra língua qualquer, sem perder toda a brasilidade sintetizada nesta única expressão?
Exemplos Umberto Eco nos fala da substância da língua, de perdas e compensações, de fontes, sistemas, reversibilidades e efeitos, sempre exemplificando com suas próprias traduções e com traduções que outros fizeram de textos seus, para buscar alternativas para problemas aparentemente insolúveis. Tantas considerações interessantes, entretanto, restringem-se, pela singularidade do campo semiótico, a um grupo reduzido de leitores especializados. A apresentação do livro e o próprio livro, como objeto, dão a entender que se trata de um panorama do processo de tradução bem mais abrangente do que aquilo que é realmente abordado em suas páginas. Mais um problema de tradução entre o conteúdo e a aparência. QUASE A MESMA COISA Autor: Umberto Eco Tradução: Eliana Aguiar Editora: Record Quanto: R$ 50 (492 págs.) Avaliação: bom
(©
Folha de S. Paulo)
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