Todos os Corpos de Pasolini, de Luiz Nazario, traz uma análise da extensa obra do cineasta que previu os desastres do mundo contemporâneo Ubiratan Brasil
Em junho, mais de 700 intelectuais europeus assinaram abaixo-assinado proposto pelo prefeito de Roma, Walter Veltroni, pedindo a reabertura do processo sobre o assassinato ainda não totalmente esclarecido do escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini, ocorrido em novembro de 1975. Passados quase 32 anos, o crime acontecido em circunstâncias ainda nebulosas (então único assassino, Giuseppe Pelosi confessou depois que não agira sozinho) movimenta dramaticamente a memória de um dos grandes pensadores do século passado.
“Numa época em que a violência de massa se tornou a realidade cotidiana de todos os países do mundo, com criminalidade e neofascismo galopantes; em que a corrupção do neoliberalismo ficou evidente para qualquer um; e em que o consumismo assumiu, sem disfarces, a destruição dos valores humanos e a dilapidação das reservas naturais do planeta, a obra de Pasolini demonstra sua incandescente atualidade: ainda nos anos de 1970, ele alertou o mundo, ao preço da própria vida, para o inumano que hoje domina toda a economia, toda a política”, escreve o historiador e jornalista Luiz Nazario, um dos mais profundos conhecedores da obra pasoliniana no Brasil. Ele é autor de Todos os Corpos de Pasolini, conjunto de artigos lançado agora pela Perspectiva (378 páginas, R$ 68) e que oferece uma esclarecedora análise sobre uma obra de inesgotável valor artístico: mais de 16 mil páginas de poemas, romances, contos, crônicas, ensaios, peças, roteiros e cartas, ao lado de 26 filmes, e traduções, desenhos, pinturas, músicas, entrevistas e performances.
Crítico radical da sociedade de seu tempo, Pasolini (1922-1975) foi um dos primeiros a enxergar a virada irreversível do mundo. Nazario observa que o cineasta, autor de filmes seminais como Teorema, O Evangelho Segundo Mateus e Gaviões e Passarinhos, experimentou em seu corpo a mutação antropológica da humanidade pela homologação cultural. De fato, entre suas várias facetas, a do diagnosticador dos tempos que viriam é a mais conhecida.
Ciente de que o mundo é movido por forças contrastantes, Pasolini pregava contra o conformismo estéril. Ele acreditava também que a arte exige conhecimento prévio e técnico, não sendo ato de pura vontade nem dom natural. Diante de um material tão rico, Nazario, autor da primeira biografia do cineasta no Brasil (Orfeu na Sociedade Industrial, publicado em 1982 pela Brasiliense), preferiu dividir seu livro em temas, a fim de dissecar todos os aspectos da obra pasoliniana. Há até um capítulo especialmente sobre a recepção que os filmes de Pasolini tiveram no Brasil e outro com uma entrevista inédita em livro com Gianni Scalia, crítico literário que foi grande amigo de Pasolini. Sobre o trabalho, Nazario conversou, por telefone, com o Estado.
Já é possível avaliar o legado da obra de Pasolini?
Acho que ainda é difícil, porque as obras completas foram publicadas há muito pouco tempo. Assim, temos aspectos específicos sobre a poesia, cinema e literatura, mas um livro que englobe realmente tudo ainda não existe.
O que você diria sobre o cinema?
A obra cinematográfica é marcante e isso partindo de uma pessoa que não tinha formação de cinema - ele era escritor que decidiu fazer cinema aos 40 anos, inventando a linguagem que ele próprio ia criando. Isso teve um impacto muito grande na teoria sobre o cinema que ele criou, uma obra muito complexa.
Até que ponto o neo-realismo influenciou a obra de Pasolini?
No início, a influência era grande, especialmente nos primeiros dois filmes, Desajuste Social e Mamma Roma. Ali, a influência está na escolha dos atores amadores que era uma característica do neo-realismo, além da composição dos cenários, marcados pela pobreza.
Ele falava que fazia cinema para uma elite, desconsiderando o sentido tradicional da palavra.
Sim, uma elite intelectual, ou seja, pessoas que ele considerava ainda não terem sido contaminadas pelo consumismo e que pensavam por si próprias, sem ser teleguiadas pelas outras mídias ou televisão.
E essa elite compreendia seu cinema?
É difícil responder. Acho que não. Alguns poucos entenderam pelo fato de ele ser muito criticado pelos intelectuais - Pasolini era literalmente bombardeado por nomes como Umberto Eco. Havia, no entanto, uma mínima compreensão do que ele pretendia dizer.
Isso comprova que Pasolini estava à frente do seu tempo?
Exatamente, ele só foi reconhecido realmente muito tempo depois de sua morte. Para se ter uma idéia, só colocaram uma placa identificando a casa onde ele nasceu, em Bolonha, há dois anos. Pasolini já era reconhecido mundialmente, mas na cidade onde ele nasceu havia ainda essa rejeição.
É possível afirmar que, especialmente nos últimos anos de sua cinematografia, Pasolini foi um exemplo de cineasta político?
Se você se refere a Salò, acredito que sim. Trata-se de um filme muito complexo, inclusive para se analisar. Existe ali um aspecto interessante sobre a época retratada no filme, porque ele passou a juventude em Israel e tem alguns aspectos que abordo no livro sobre a descoberta da sexualidade. Como todo italiano que viveu aquele período (anos 1940), Pasolini teve um grande vigor sexual. Mas, ao mesmo tempo, era a época opressora do fascismo, então as duas coisas estão muito misturadas no filme. Embora fosse de esquerda, Pasolini demonstra uma certa nostalgia do período.
É possível identificar uma clara divisão em sua obra cinematográfica, com uma primeira fase marcada por Accatone, Mamma Roma e depois outra, mais pessoal, com Teorema e Pocilga?
Acredito que toda obra dele é muito pessoal - só o fato de ele colocar a própria mãe como a mãe de Cristo e todos amigos como apóstolos, além de intelectuais trabalhando como figurantes em O Evangelho Segundo Mateus já indica que é um filme muito pessoal. Ali, Pasolini se posicionou como um Cristo da sociedade contemporânea, ou seja, destinado a ser linchado.
Ao seguir por caminhos novos, Pasolini procurava negar o que já tinha feito anteriormente?
Cada fase da sua obra fílmica corresponde a uma mudança biológica, pois ele assume posições cada vez mais radicais diante das transformações na sociedade italiana. Pasolini é muito flexível a mudanças sociais e sua obra reflete isso. É, por exemplo, o que acontece no início dos anos 1970, quando roda a Trilogia da Vida, em que mostra sexo com luz, explícito, além dos primeiros nus frontais masculinos do cinema comercial: é sua reação à explosão da pornografia a partir de filmes como Garganta Profunda, que arrecadou milhões, fazendo com que esse erotismo pornográfico passasse a dominar as telas do mundo. Temendo ser confundido com essa onda, Pasolini abjura e anuncia que vai fazer um filme anti-sexo, que é o Salò. O que não considero certo é o pensamento de que esse filme é seu testamento, o que não é verdade.
Seguindo essa linha de raciocínio, como você classificaria Édipo Rei e Medéia, em sua obra?
Esses estavam perto da chamada fase mítica, que começa com o Cristo do Evangelho e da qual fazem parte Medéia e Édipo Rei, embora o Cristo seja mitologia cristã. Quando teve uma grave crise de úlcera, durante o restabelecimento, Pasolini começou a ler Platão e ficou entusiasmado a ponto de ler muitos livros sobre mitologia. Com isso, teve a idéia de adaptá-las, mas sempre com referências contemporâneas - Medéia, por exemplo, trata da questão do Terceiro Mundo, muito em voga na época.
A falta de experiência no cinema sempre foi compensada por uma sólida cultura adquirida?
Exatamente. E também pelo relacionamento que mantinha com artistas consagrados - em Medéia, por exemplo, ele escalou Maria Callas, que nunca havia feito cinema. Na verdade, ela não foi uma escolha pessoal (um produtor sugeriu) e ele inicialmente até rejeitou, pois preferia atores profissionais. Mas quando eles se conheceram em Paris, Pasolini apaixonou-se por Callas, o que a convenceu a aceitar o papel.
Como explicar seu cinema tão intelectualizado?
Na verdade, ele vivia uma vida dupla: de dia, com os maiores intelectuais e, à noite, com os marginais. O genial é que Pasolini conseguia unir esses dois mundos que jamais se uniriam. Fazer, por exemplo, Totò, que era um ator aristocrático, contracenar com Ninetto Davoli, que era uma espécie de marginal. Aliás, a primeira vez em que Totò recebeu Davoli em sua casa, mandou desinfetar o sofá. Parece que só Pasolini conseguia unir Orson Welles com prostitutos, que trabalhavam como figurantes. Enfim, ele conseguia que um monstro sagrado do cinema e os marginais convivessem no mesmo universo.
Como era, aliás, essa relação com os atores?
A maioria guardou experiências positivas com o Pasolini porque ele era muito dedicado, principalmente com os marginais, os pobres, aqueles que nunca tinham feito cinema. Pasolini era paciente, explicava como funcionava no cinema, o que tinham de fazer. Já com os profissionais, ele não tinha uma relação muito boa, pois eles preferiam trabalhar com atores mais experientes.
Já a sua relação com a televisão foi tímida.
Sim, ele sempre detestou a televisão, embora tivesse realizado documentários que passaram na telinha. Não acredito que ele tenha planejado fazer filme especialmente para a televisão.
O que você diria sobre a fase corsária de Pasolini, já nos anos 1970?
Sim, a partir de Teorema, que é o grande filme do Pasolini, pois capta o espírito do seu tempo. Esse período também foi muito efervescente - para mim, um dos melhores períodos também dos críticos de Pasolini, de polêmica de jornais sobre a atualidade italiana contra o consumismo.
Sobre as discussões a respeito do assassinato, você acredita que se chegará a um veredicto definitivo?
Depois de tanto tempo, vai ser impossível encontrar traços ou provas concretas. Tudo foi apagado. Ficará sempre o mistério, embora agora parece mais claro que Pelosi não teria matado Pasolini sozinho. Como ele é muito louco, problemático, também não se pode confiar muito no que fala.
Pasolini ficou como um crítico radical da sociedade?
Sim, eu o colocaria ao nível de um Sartre entre os grandes pensadores contemporâneos.
(©
Estadão)
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