Martin Scorsese
O ano de 1961
foi há muito
tempo. Quase 50
anos atrás. Mas
a sensação de
assistir ao
filme "A
Aventura"
("L'Avventura",
Itália/França,
1960) pela
primeira vez
ainda está
comigo, como se
tivesse sido
ontem.
Onde foi que o
assisti? No Art
Theater na
Eighth Street?
Ou foi no
Beekman? Não me
lembro, mas
recordo-me da
energia que
correu pelo meu
corpo na
primeira vez que
ouvi o tema
musical de
abertura -
sinistro,
staccato, tirado
de cordas, tão
simples, tão
austero, como as
trompas que
anunciam o
próximo tercio
durante uma
tourada. E, a
seguir, o filme.
Um cruzeiro no
Mediterrâneo,
sol brilhante,
em imagens em
preto e branco
diferentes de
tudo o que eu já
havia visto -
compostas com
tanta precisão,
acentuando e
expressando o
que? Um tipo
muito estranho
de desconforto.
Os personagens
eram ricos,
bonitos de certa
forma, mas,
poder-se-ia
dizer,
espiritualmente
feios. Quem eram
eles para mim? O
que eu seria
para eles?
Eles chegam a
uma ilha.
Separam-se,
espalham-se,
tomam sol,
discutem. E, de
repente, a
mulher
interpretada por
Lea Massari, que
parece ser a
heroína,
desaparece. Das
vidas dos outros
personagens, e
do próprio
filme. Um outro
grande diretor
fez quase
exatamente a
mesma coisa por
volta da mesma
época, em um
tipo bem
diferente de
filme. Mas
enquanto
Hitchcock
mostrou à
platéia o que
aconteceu a
Janet Leigh em
em "Psicose"
("Psycho", EUA,
1960),
Michelangelo
Antonioni jamais
explicou o que
aconteceu com a
Anna
interpretada por
Massari. Ela
afogou-se?
Despencou do
penhasco?
Escapou dos
amigos e começou
uma vida nova?
Jamais
descobrimos.
Em vez disso, a
atenção do filme
volta-se para a
amiga de Anna,
Claudia,
interpretada por
Monica Vitti, e
o seu namorado
Sandro, cujo
papel é
interpretado por
Gabriele
Ferzetti. Eles
começam a
procurar por
Anna, e o filme
parece ser uma
espécie de
história de
detetive. Mas
logo a nossa
atenção é
deslocada da
mecânica da
busca pela
câmera e a
maneira como
esta se
movimenta. Nunca
se sabe onde ela
estará, ou o que
seguirá. Da
mesma forma as
atenções dos
personagens
mudam de foco:
para a luz, o
calor, a
sensação de
lugar. E, a
seguir, passam a
concentrar-se
uns nos outros.
Assim, o filme
transforma-se em
uma história de
amor. Mas isso
também se
dissolve.
Antonioni nos
torna
conscientes de
algo muito
estranho e
desconfortável,
algo que nunca
tinha sido visto
no cinema. Os
seus personagens
fluem pela vida,
de impulso a
impulso, e tudo
acaba se
revelando um
pretexto: a
busca foi um
pretexto para
estarem juntos,
e estar juntos
foi um outro
tipo de
pretexto, algo
que moldou as
suas vidas e
conferiu a estas
uma espécie de
sentido.
Quando mais vejo
"A Aventura" - e
voltei a
assistir ao
filme diversas
vezes -, mais
percebo que a
linguagem visual
de Antonioni nos
mantinha focados
no ritmo do
mundo: os ritmos
visuais de luz e
sombra, de
formas
arquitetônicas,
de pessoas
posicionadas
como figuras em
um cenário que
sempre parecia
assustadoramente
vasto. E havia
também o tempo
do filme, que
parecia estar em
sincronia com o
ritmo temporal,
movendo-se
vagarosamente,
inexoravelmente,
permitindo
aquilo que
depois percebi
serem as
limitações
emocionais dos
personagens - a
frustração de
Sandro, a
auto-depreciação
de Claudia -,
calmamente
tomando conta
deles e
empurrando-os
para uma outra
"aventura", e
depois para uma
outra, e uma
outra. Assim
como o tema da
abertura, que
mantinha-se
oscilando entre
o clímax e a
dissipação.
Clímax e
dissipação.
Interminavelmente.
Enquanto todos
os outros filmes
que eu havia
assistido
progrediam para
um clima de
tensão, "A
Aventura" rumava
para a calma. Os
personagens não
tinham nem o
desejo nem a
capacidade para
expressar uma
autoconsciência
real. Eles só
contavam com
aquilo que
parecia ser uma
autoconsciência,
encobrindo uma
veleidade e uma
letargia que
eram ao mesmo
tempo infantis e
muito reais. E
na cena final,
tão desolada,
tão eloqüente,
uma das
passagens mais
marcantes do
cinema,
Antonioni
percebeu algo de
extraordinário:
a dor de
simplesmente
estar vivo. E o
mistério.
"A Aventura" me
aplicou um dos
choques mais
profundos que já
experimentei no
cinema, maior do
que em
"Acossado" ("À
Bout de
Souffle",
França, 1960) ou
"Hiroshima, Meu
Amor"
("Hiroshima, Mon
Amour",
França/Japão,
1959) (feito por
dois outros
mestres
modernos,
Jean-Luc Godard
e Alain Resnais,
ambos ainda
vivos e
trabalhando). Ou
"A Doce Vida"
("La Dolce
Vita",
Itália/França,
1960). À época
havia dois
campos. O das
pessoas
fascinadas pelo
filme de Fellini
e o das
encantadas por
"A Aventura". Eu
sabia que estava
decididamente do
lado de
Antonioni, mas
se à época
alguém me
perguntasse, não
sei se seria
capaz de
explicar por
quê. Eu adorava
os filmes de
Fellini e
admirava "A Doce
Vida", mas fui
desafiado por "A
Aventura". O
filme de Fellini
me tocou e me
entreteve, mas o
de Antonioni
mudou a minha
percepção sobre
o cinema e o
mundo à minha
volta, tornando
ambos ilimitados
(demorou dois
anos para que eu
voltasse a me
envolver com a
obra de Fellini,
e experimentasse
o mesmo tipo de
epifania com
"Oito e
Meio"/"Otto e
Mezzo", Itália,
1963).
As pessoas com
as quais
Antonioni estava
lidando,
bastante
similares
àquelas dos
romances de F.
Scott Fitzgerald
(cuja obra,
segundo descobri
mais tarde,
Antonioni
apreciava
bastante), eram
as mais
estranhas
possíveis no que
dizia respeito à
minha vida. Mas
no final isso
pareceu não ter
importância.
Fiquei
hipnotizado por
"A Aventura" e
pelos filmes
subsequentes de
Antonioni, e foi
o fato de eles
não se
resolverem em
qualquer sentido
convencional que
me fez voltar
tantas vezes a
assisti-los.
Eles
apresentavam
mistérios - ou,
melhor dizendo,
o mistério, a
respeito de quem
somos, o que
somos, uns para
os outros, para
nós mesmos, para
a nossa época.
Seria possível
dizer que
Antonioni estava
fitando
diretamente os
mistérios da
alma. Foi por
isso que sempre
retornei à sua
obra. Eu queria
continuar
experimentando
essas imagens,
vagando por
elas. E ainda o
faço.
Antonioni
parecia abrir
novas
possibilidades a
cada filme. Os
últimos sete
minutos de "O
Eclipse"
("L'Eclisse",
França/Itália,
1962), o
terceiro filme
de uma trilogia
informal que
teve início com
"A Aventura" (o
segundo filme
foi "A
Noite"/"La
Notte",
Itália/França,
1961), foram
ainda mais
assustadores e
eloqüentes do
que o filme
anterior. Alain
Delon e Vitti
marcam um
encontro, e
nenhum dos dois
comparece.
Começamos a ver
coisas - as
linhas de uma
faixa de
cruzamento de
pedestres, um
pedaço de
madeira
flutuando em um
barril -, e
passamos a
perceber que
estamos vendo os
locais nos quais
os personagens
estiveram,
vazios das suas
presenças.
Gradualmente
Antonioni nos
coloca face a
face com o tempo
e o espaço, nada
mais, nada
menos. E eles
olham de volta
para nós. Uma
experiência
assustadora, e
libertadora. As
possibilidades
do cinema
subitamente
tornaram-se
ilimitadas.
Todos nós
testemunhamos
maravilhas nos
filmes de
Antonioni -
aqueles que
vieram depois, e
o trabalho
extraordinário
feito por ele
antes de "A
Aventura", em
filmes como "A
Dama sem
Camélias" ("La
Signora Senza
Camelie",
Itália, 1953),
"As Amigas" ("Le
Amiche", Itália,
1955), "O Grito"
("Il Grido",
Itália, 1957) e
"Crimes da Alma"
("Cronaca di un
Amore", Itália,
1950), que eu
descobri mais
tarde. Tantas
maravilhas - a
paisagem pintada
(literalmente
pintada, muito
antes do
surgimento da
técnica CGI, as
imagens geradas
por
computadores) de
"O Dilema de Uma
Vida", (também
conhecido no
Brasil como "O
Deserto
Vermelho"; "Il
Deserto Rosso",
Itália, 1964) e
"Depois Daquele
Beijo" ("Blow
Up",
Itália/Inglaterra,
1966), e a
história
fotográfica de
detetive neste
último filme,
que acaba
conduzindo as
coisas para cada
vez mais longe
da verdade; o
final expansor
da mente de
"Zabriskie
Point" (EUA,
1970), tão
criticado ao ser
lançado, no qual
a heroína
imagina uma
explosão que faz
com que os
detritos do
mundo ocidental
caiam pela tela
em velocidade
super lenta e em
cores vívidas
(para mim
Antonioni e
Godard foram,
entre outras
coisas, grandes
pintores
modernos de
verdade); e a
notável última
tomada de
"Profissão:
Repórter" ("The
Passenger",
Itália/França/Espanha/EUA,
1975), na qual a
câmera
desloca-se
lentamente para
fora da janela,
em direção a um
pátio,
distanciando-se
do drama vivido
pelo personagem
interpretado por
Jack Nicholson e
aproximando-se
do drama maior
expresso pelo
vento, pelo
calor, pela luz
e pelo mundo que
segue o seu
curso.
O meu caminho
cruzou-se com o
de Antonioni
algumas vezes no
decorrer dos
anos. Certa vez
passamos juntos
o jantar do Dia
de Ação de
Graças, após um
período muito
difícil na minha
vida, e me
empenhei em
dizer-lhe o
quanto
significava para
mim o fato de
ele estar
conosco. Mais
tarde, depois
que ele teve um
derrame e perdeu
a capacidade de
falar, tentei
ajudá-lo a
realizar o
projeto de "The
Crew" - um
maravilhoso
roteiro escrito
com o seu
colaborador
freqüente Mark
Peploe,
diferente de
tudo o que ele
já fizera, e
sinto muito que
o filme jamais
tenha
acontecido.
Mas, no que se
refere a
Antonioni, eu
conhecia muita
mais as suas
imagens do que o
homem em si.
Imagens que
continuam a me
assombrar e
inspirar. A
expandir o meu
entendimento do
que é estar vivo
no mundo.
The New York
Times
Tradução:
UOL
(©
UOL Mídia Global)
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