O diretor de
Redação da
mítica "Cahiers
du Cinéma", a
principal
revista de
cinema do mundo,
acha que Ingmar
Bergman e
Michelangelo
Antonioni não
deixaram
herdeiros.
Em entrevista
à Folha,
Jean-Michel
Frodon, que está
a frente da
publicação desde
2003, diz que
Bergman teve a
rara habilidade
de ser mestre em
dois domínios
diferentes: o
cinema e o
teatro.
O crítico
francês também
acha que a
investigação
plástica de
Antonioni,
principalmente
em relação às
cores, não teve
seqüência com
outros
cineastas.
Ainda que
reconheça a
enorme perda de
dois dos
principais
cineastas da
história do
cinema na última
segunda-feira,
Frodon considera
que existem
grandes mestres
da geração deles
em atividade,
como Alain
Resnais e
Jean-Luc Godard.
Frodon (1953)
edita a revista
que apontou nos
anos 50 o então
jovem cineasta
sueco como uma
grande promessa
do cinema [leia
texto de Godard
na pág. 7]. Era
uma ousadia na
época.
A "Cahiers"
também reservou
espaço generoso
para Antonioni,
que então se
afastava do
neo-realismo
italiano. O que
se seguiu é
história.
Michel Ciment
comenta o legado
de Bergman e
Antonioni
Ciment, da
rival "Positif",
diz que Bergman
foi polimorfo e
Antonioni, de um
registro só;
também ataca os
festivais hoje
DA REDAÇÃO
Ao lado da
revista "Cahiers
du Cinéma",
criada em 1952,
sua rival
"Positif"
(fundada um ano
depois) também
defendeu o jovem
Ingmar Bergman
nos anos 50 e
acompanhou a
ascensão de
Michelangelo
Antonioni.
Seu diretor de
Redação, Michel
Ciment, que
esteve presente
na maior parte
da existência da
revista, não
concorda com o
homólogo da
"Cahiers" quanto
à qualidade do
cinema atual.
Ciment (1928)
disse à Folha
que a indústria
cinematográfica
não permite mais
a ousadia formal
dos dois mestres
mortos na última
semana.
Assim como
Frodon, o
veterano
jornalista da
"Positif" também
não enxerga
herdeiros dos
dois cineastas.
O crítico
concorda, no
entanto, que
existem grandes
nomes em
atividade e,
assim como
Frodon, cita
Alain Resnais,
Jean-Luc Godard
e Hou
Hsiao-hsien,
entre outros.
(Marcos
Strecker)
FOLHA - As
mortes de
Bergman e
Antonioni
representam de
alguma forma o
fim do "grande
cinema"?
MICHEL CIMENT -
Sou cético com
relação às
afirmações
definitivas.
Ainda há grandes
cineastas vivos
na França, como
Alain Resnais,
Jean-Luc Godard
e Eric Rohmer, e
no estrangeiro
também.
Por outro lado,
acho que é o fim
dos grandes
cineastas que
apareceram nos
anos 40 e 50 e
que impuseram a
noção de autor
ao cinema, como
na literatura e
na pintura.
Para mim, também
Federico
Fellini, Orson
Welles, Akira
Kurosawa e
Luchino Visconti
representavam um
grande cinema
que podia
conciliar o
público e a
crítica.
Temos hoje
grandes
cineastas como
Hou Hsiao-hsien
e Abbas
Kiarostami, mas
são cineastas
para um público
mais restrito.
FOLHA - Há ainda espaço no cinema para a mesma pretensão
intelectual que
Bergman e
Antonioni
demonstravam?
CIMENT -
Hoje é muito
mais difícil. A
forma como os
filmes são
produzidos e
distribuídos, o
que envolve a
TV, levou a uma
prudência
estética e
também em
relação aos
temas que
impediria, hoje,
um filme como
"Persona" (66),
de Bergman, ou
"A Aventura", de
Antonioni.
FOLHA -
Bergman ou
Antonioni
deixaram
herdeiros?
CIMENT -
Vários
grandes artistas
não deixaram
herdeiros
diretos. Vimos
em um momento o
cinema argentino
fazendo um
cinema como o de
Antonioni... ou
o cinema
português.
Mas acho isso
catastrófico,
não devemos
imitar os
grandes
estilistas
porque isso vira
uma paródia.
Bergman e
Antonioni
criaram um
cinema tão
pessoal que os
herdeiros só
poderiam
produzir uma
caricatura.
Os que exercem
mais influência
são diretores
como um Jean
Renoir, por
exemplo, ou John
Ford, porque
tinham uma
expressão menos
egocêntrica.
FOLHA -
Woody Allen
sempre se
declarou
influenciado por
Bergman,
trabalhou com o
fotógrafo de
Bergman, Sven
Nykvist...
CIMENT -
Woody Allen
tem duas grandes
influências:
Bergman e
Fellini. É um
americano
voltado para a
Europa.
E Bergman era
também um grande
autor cômico,
não devemos
esquecer que nos
anos 50 filmou
comédias
brilhantes, como
as de Ernst
Lubitsch.
FOLHA -
A influência do
teatro foi
fundamental para
o cinema de
Bergman?
CIMENT -
Não acho que
foi fundamental.
Vi algumas
montagens dele,
devo dizer que
não fiquei
impressionado.
Tenho a
impressão de que
o fundamental em
seu teatro era a
atuação.
Quando diretores
de teatro fazem
cinema,
tornam-se
grandes
diretores de
atores, como
Elia Kazan,
Visconti ou
George Cukor. O
cinema de
Bergman era
muito mais
inovador e
revolucionário
do que o seu
teatro.
FOLHA -
Temas de Bergman
como dilemas
morais ou culpa
ainda são
possíveis hoje?
CIMENT -
Acho que
menos do que na
época de Bergman
e Antonioni.
Esses temas são
menos centrais
do que há 50
anos, quando
vivíamos o
triunfo do
existencialismo.
Vi recentemente
um documentário
de Aleksandr
Sokúrov sobre
Soljenitsin, e
esses temas
estão muito
presentes.
O que vai de
fato ficar de
Bergman e
Antonioni é a
inovação formal,
a estética e o
problema dos
casais, da
relação entre as
pessoas.
FOLHA -
Quais foram os
principais
filmes de
Bergman?
CIMENT -
É muito
difícil
responder isso
para Bergman. É
um pouco como
Shakespeare em
relação ao
teatro. Bergman
se renovava
constantemente,
tinha uma
produção
variada.
Não é possível
apontar "o"
grande filme
dele. Para sua
tendência
expressionista,
eu citaria
"Noites de
Circo" (1953).
Para sua
expressão
ascética,
citaria
"Persona". Para
sua tendência
oitocentista,
"Fanny e
Alexander". E
para suas
reflexões sobre
o
relacionamento,
sobre os casais,
apontaria "Cenas
de um
Casamento".
FOLHA -
E os principais
filmes de
Antonioni?
CIMENT -
Para ele é
mais fácil. "O
Grito" (1957),
para sua
primeira fase, e
"A Aventura",
para o seu
segundo período.
Talvez também
"Identificação
de uma Mulher"
(82) para a sua
segunda fase.
FOLHA -
Antonioni
antecipou o
cinema digital
com "O Mistério
de Oberwald"
(1981)?
CIMENT -
Não acho.
Bergman era um
gênio polimorfo,
que podia
adaptar Mozart,
por exemplo. Já
Antonioni
funcionava com
um só registro,
o da ausência,
da
não-comunicação,
que vai dos seus
primeiros filmes
até
"Identificação
de uma Mulher".
Tudo que ele fez
fora desse
registro foi um
fracasso. "O
Mistério de
Oberwald" é uma
peça filmada,
medíocre. Seu
documentário
sobre a China
também é
medíocre. Ele
era grande em um
só domínio.
Infelizmente,
foi forçado a
fazer filmes no
fim da sua vida,
como "Eros" [de
2004, em que
dirige o
segmento "A
Mão"].
Isso foi
dramático para
sua imagem.
FOLHA -
O cinema
oriental, como o
de Wong Kar-wai,
se inspirou em
Antonioni?
CIMENT -
Wong Kar-wai
certamente não,
porque faz um
cinema baseado
na edição ágil,
rápida. Talvez
em relação a uma
certa
melancolia.
Todos os
cineastas da
melancolia são
inspirados em
Antonioni.
Andrei Tarkóvski
e Wim Wenders o
são, sem dúvida.
Mas de modo
indireto, já que
são grandes
cineastas.
No cinema
oriental,
apontaria Hou
Hsiao-hsien e
Tsai Ming-liang.
FOLHA -
Quais são os
grandes nomes do
cinema atual?
CIMENT -
Fora da
França, acho que
o grego Theo
Angelopoulos.
Nos EUA, Terence
Malick é
incontestavelmente
um dos grandes
cineastas.
Também há os
irmãos Coen, Tim
Burton...
Talvez Gus van
Sant. O cinema
americano é o
único atualmente
que dialoga ao
mesmo tempo com
os intelectuais
e cinéfilos e
com o público.
Mesmo se Woody
Allen não faz o
mesmo sucesso de
Steven
Spielberg, ainda
tem milhões de
espectadores.
Para mim o
grande drama do
cinema
contemporâneo é
que os filmes
são cada vez
mais produzidos
para os
festivais de
cinema. Às vezes
não conseguem
atingir um
grande público.
São planejados
para ficarem
prontos em maio,
a tempo de
concorrerem no
Festival de
Cannes. Acho
isso dramático.
A beleza do
cinema é ser
como o teatro de
antigamente ou
como o romance,
a pintura.
Deveria ser
consumido e
apreciado por um
grande público.
(©
Folha de S. Paulo)
Em texto
de 1980,
o
crítico Roland
Barthes destaca
"a incerteza do
sentido" na
cinematografia
de Antonioni
ROLAND BARTHES
Em sua tipologia, Nietzsche distingue duas figuras: o sacerdote e o
artista. Sacerdotes temos hoje para dar e vender: de todas as religiões
e até sem religião; mas e artistas?
Gostaria, caro Antonioni, que você me emprestasse por um instante
algumas características de sua obra para que eu possa fixar as três
forças ou, se preferir, as três virtudes, que, a meu ver, constituem o
artista.
Denomino-as já: vigilância, sabedoria e -a mais paradoxal de todas-
fragilidade.
Ao contrário do sacerdote, o artista surpreende-se e admira; seu olhar
pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o
ressentimento.
Porque você é artista é que sua obra está aberta para o Moderno. Muitos
tomam o Moderno como uma bandeira de luta contra o velho mundo, seus
valores comprometidos; mas, para você, o Moderno não é o termo estático
de uma oposição fácil; o Moderno é, ao contrário, uma dificuldade ativa
em seguir as mudanças do Tempo, não mais apenas no nível da grande
História, mas por dentro dessa pequena história cuja medida é a
existência de cada um de nós.
Iniciada no imediato pós-guerra, sua obra foi-se encaminhando, de
momento em momento, num movimento de dupla vigilância, para o mundo
contemporâneo e para você mesmo.
Cada um de seus filmes foi, na sua escala pessoal, uma experiência
histórica, ou seja, o abandono de um problema antigo e a formulação de
uma nova questão.
Isso quer dizer que você viveu e tratou a história destes últimos 30
anos com sutileza, não como a matéria de um reflexo artístico ou de um
engajamento ideológico, mas como uma substância cujo magnetismo você
tinha de captar de obra em obra.
Para você, conteúdos e formas são igualmente históricos; os dramas, como
você disse, são indiferentemente psicológicos e plásticos. [...]
Utopista
Sua preocupação com a época não é a de um historiador, de um
político ou de um moralista, mas sim a de um utopista que procura
perceber em pontos precisos o mundo novo, porque deseja esse mundo e
quer já fazer parte dele.
A vigilância do artista, que é a sua, é uma vigilância amorosa, uma
vigilância do desejo.
O que chamo de sabedoria do artista não é uma virtude antiga, muito
menos um discurso medíocre, mas, ao contrário, o saber moral, a acuidade
de discernimento que lhe possibilita nunca confundir sentido e verdade.
Quantos crimes a humanidade já cometeu em nome da Verdade!
E, no entanto, essa verdade sempre só era um sentido. Quantas guerras,
quantas repressões, quantos terrores, quantos genocídios para o triunfo
de um sentido! O artista, porém, sabe que o sentido de uma coisa não é
sua verdade; esse saber é uma sabedoria, uma louca sabedoria, poderíamos
dizer, pois o retira da comunidade, do rebanho de fanáticos e
arrogantes.
Nem todos os artistas, porém, têm essa sabedoria: alguns hipostasiam o
sentido. Essa operação terrorista geralmente se chama realismo.
Por isso, quando você declara (numa conversa com Godard) "sinto a
necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam totalmente
realistas", está demonstrando um sentimento justo do sentido; não o
impõe, mas não o abole.
Essa dialética dá a seus filmes (vou usar de novo a mesma palavra) uma
grande sutileza: sua arte consiste em sempre deixar o caminho do sentido
aberto e como que indeciso, por escrúpulo.
É nisso que você realiza com muita precisão a tarefa do artista de que
nosso tempo precisa: nem dogmática nem insignificante.
Assim, nos primeiros curtas-metragens sobre os lixeiros de Roma [...], a
descrição crítica de uma alienação social vacila, sem se apagar, em
proveito de um sentimento mais patético, mais imediato, do corpo no
trabalho.
No filme "O Grito", o sentido forte da obra é, se assim se pode dizer, a
própria incerteza do sentido: a perambulação de um homem que em nenhum
lugar consegue confirmar sua identidade e a ambigüidade da conclusão
(suicídio ou acidente) levam o espectador a duvidar do sentido da
mensagem.
Essa fuga ao sentido, que não é sua abolição, lhe permite abalar as
fixidades psicológicas do realismo: em "O Dilema de uma Vida", a crise
já não é de sentimentos, como em "O Eclipse", pois os sentimentos aí são
seguros (a heroína ama o marido).
Tudo se urde e dói numa segunda zona, onde os afetos -o mal-estar dos
afetos- escapa a essa armação do sentido que é o código das paixões.
Por fim -para abreviar- seus últimos filmes levam essa crise do sentido
ao cerne da identidade dos acontecimentos ("Blow-Up") ou das pessoas
("Profissão: Repórter").
No fundo, ao longo de sua obra, há uma crítica constante, ao mesmo tempo
dolorosa e exigente, dessa marca forte do sentido, que se chama destino.
Braque e Matisse
Essa vacilação -eu diria, com mais precisão, essa síncope- do
sentido segue caminhos técnicos propriamente cinematográficos (cenário,
planos, montagem), que não me cabe analisar, pois não tenho competência
para tanto; estou aqui, parece-me, para dizer em que a sua obra envolve,
além do cinema, todos os artistas do mundo contemporâneo: você trabalha
para tornar sutil o sentido daquilo que o homem diz, conta, vê ou sente,
e essa sutileza do sentido, essa convicção de que o sentido não pára
grosseiramente na coisa dita, mas vai indo cada vez mais longe,
fascinado pelo extra-sentido, é a convicção, creio, de todos os artistas
cujo objeto não é esta ou aquela técnica, mas um fenômeno estranho, a
vibração.
O objeto representado vibra, em detrimento do dogma. Penso nestas
palavras do pintor Braque: "O quadro está acabado quando apagou a
idéia".
Penso em Matisse desenhando uma oliveira, de sua cama e, ao cabo de
certo tempo, observando os vazios existentes entre os galhos, para
descobrir que, com essa nova visão, escapava à imagem habitual do objeto
desenhado, ao clichê "oliveira".
Matisse descobria assim o princípio da arte oriental, que quer sempre
pintar o vazio, ou melhor, que capta o objeto figurável no momento raro
em que o pleno de sua identidade cai bruscamente num novo espaço, o do
Interstício.
De certa maneira, sua arte também é uma arte do Interstício ("A
Aventura" seria a demonstração cabal dessa afirmação), portanto, de
certa maneira também, sua arte tem alguma relação com o Oriente. [...]
Caro Antonioni, tentei dizer com minha linguagem intelectual as razões
que fazem de você, para além do cinema, um dos artistas de nosso tempo.
Esse cumprimento não é simples, você sabe, pois ser artista hoje é uma
situação não mais sustentada pela bela consciência de uma grande função
sagrada ou social; já não é assumir, serenamente, um lugar no Panteão
burguês dos Luminares da Humanidade; é, no momento de cada obra,
precisar enfrentar em si mesmo os espectros da subjetividade moderna
-pois já não se é sacerdote-, que são o desalento ideológico, a
consciência social pesada, a atração e a aversão pela arte fácil, o
tremor da responsabilidade, o incessante escrúpulo que dilacera o
artista entre a solidão e o gregarismo.
Cabe-lhe hoje, portanto, aproveitar este momento tranqüilo, harmonioso,
reconciliado, em que toda uma coletividade está de acordo no
reconhecimento, na admiração, no amor à sua obra. Pois amanhã recomeça o
trabalho duro.
Este texto foi escrito para a entrega do prêmio
"Archiginnedio d"Oro", em 1980, e publicado na íntegra na "Cahiers du
Cinéma" (maio/1980) e reproduzido em Roland Barthes, "Inéditos Vol. 3 -
Imagem e Moda" (ed. Martins Fontes).
Tradução de Ivone Benedetti.
(©
Folha de S. Paulo)
Liv
Ullmann e Monica
Vitti foram
eternizadas nas
telas por
Bergman e
Antonioni
CÁSSIO STARLING
CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Lembra o
dicionário que
musas são
divindades que
inspiram.
Para o artista,
elas funcionam
como o alento
que dá fôlego,
vigor à sua
criação. Para
nós, que gozamos
arte, as musas
são os pontos
fortes que nos
fazem respirar
mais
profundamente
ou, em situações
extremas,
prender a
respiração.
Diversamente das
estrelas, que
estão na tela
para serem
contempladas
como num
firmamento
distante e fora
do alcance, as
musas são
espelhos da
nossa
humanidade.
Em suas cenas,
não adquirem a
distância do
mito. Pelo
contrário, são
antes seres
decaídos,
submetidos às
dores da
existência.
Os grandes
criadores do
cinema fizeram
questão de fazer
da musa esse
objeto ordinário
em torno do qual
giram a câmera a
fim de desvendar
seus segredos,
expor seus
mistérios.
Godard teve a
sua em Anna
Karina, assim
como Buñuel a
teve em
Catherine
Deneuve, John
Cassavettes em
Gena Rowlands e
Woody Allen em
Mia Farrow.
Nem sempre a
relação é de
homem para
mulher, como
atesta a
função-musa de
Jean Pierre
Léaud para
Truffaut, a de
Marcello
Mastroianni para
Fellini e a de
Tony Leung para
Wong Kar-wai (se
bem que, nestes
casos, a musa se
confunde com o
alter-ego).
Potência da
imagem
O que define
a musa para um
cineasta é menos
sua beleza como
forma de
encantamento
(para isso basta
ser estrela) do
que a potência
de sua imagem.
Ou, ainda mais,
o quanto as
características
físicas e
estéticas de um
ator servem às
ambições
expressivas de
um autor. É
dentro desse
campo de
possibilidades
que se podem
identificar Liv
Ullmann como a
musa de Ingmar
Bergman e Monica
Vitti como a de
Michelangelo
Antonioni, os
dois gênios da
arte
cinematográfica
desaparecidos na
última semana.
O primeiro signo
distintivo da
musa é a
repetição.
Depois que ela
entra em cena,
funciona como um
arquétipo da
paixão.
Os personagens
mudam, mas a
imagem se
reproduz
infinitamente
como um fantasma
ou uma
multiplicação
numa sala de
espelhos (a cena
de "A Dama de
Xangai" da
destruição da
imagem-estrela
de Rita Hayworth
fazia parte de
seu devir-musa
para Orson
Welles).
Mesmo quando
elas estão
ausentes nos
créditos, sua
presença se faz
sentir na
semelhança com a
imagem de outros
atores em cena.
Não é mera
coincidência que
as musas nos
filmes sejam
também
companheiras ou
amantes na vida
pessoal dos
cineastas.
E, como todo
fantasma que se
recusa a
desaparecer, um
dia elas
retornam, num
grande papel
derradeiro.
Outro signo,
também
característico
da paixão
amorosa que os
artistas devotam
a suas musas, é
o mistério.
E elas se tornam
musas em suas
obras a partir
do momento em
que todo o
esforço da
criação investe
na sondagem de
seus segredos,
na análise
simultaneamente
microscópica e
telescópica que
a câmera oferece
aos olhos do
espectador
através da
magnitude do
primeiro plano.
"Bravo,
bravo"
O crítico
italiano Aldo
Tassone, grande
especialista na
obra de
Antonioni,
relatou ao
"Libération", na
edição da última
quarta-feira,
detalhes da
relação de
Antonioni e
Vitti que
sugerem essa
ambigüidade
entre relação
afetiva e
inspiração
artística.
"Ele a conheceu
quando ela
dublava uma voz
em "O Grito".
Ela me contou
que no estúdio
de gravação uma
mão se pousou em
seu ombro como
um pássaro. Era
Antonioni, que
disse a ela
simplesmente:
"Bravo, bravo".
Depois, eles
fizeram quatro
filmes e viveram
juntos a seu
modo. Ele havia
comprado dois
andares de um
palácio em Roma.
Cada um tinha o
seu, mas uma
escada interna
os reunia. Não
se tratava de
fato de um
casal, mas de um
par de amigos
magníficos.
Monica, com suas
cores, sua
exuberância;
Michelangelo,
com sua
elegância
discreta e
austera. Um dia,
aconteceu um
terrível
incêndio no
prédio.
Michelangelo só
pensou em salvar
Monica, que já
se encontrava do
lado de fora.
Então, ele se
postou diante do
prédio em
chamas, o qual
encarava como se
fosse um plano
prestes a
filmar."
Ao contrário de
nós, amantes
ordinários, os
amantes artistas
têm na obra a
oportunidade de
eternizar a
imagem-arquétipo
pela qual se
tornaram
obcecados.
O caso de Liv
Ullmann repete
esses padrões na
carreira de
Bergman.
Antes de ela
aparecer, outras
atrizes e atores
serviram ao
mestre sueco em
seus
extraordinários
mergulhos na
alma.
Mas foi na
opacidade do
rosto de Ullmann
que Bergman
conseguiu ver
além, naquele
que talvez seja
seu filme mais
profundo:
"Persona".
É o título que
marca a estréia
de Ullmann na
obra do cineasta
sueco, da qual
em seguida a
atriz só
eventualmente
estará ausente.
Sempre retornará
nos pontos altos
("Cenas de um
Casamento",
"Gritos e
Sussurros",
"Face a Face",
"Sonata de
Outono") ou como
fantasma (o
papel de Ewa
Fröling, a mãe
de "Fanny e
Alexandre").
Esses espectros
que rondam até a
hora da morte
não deixam de
voltar já no
crepúsculo, como
comprovam as
presenças de
Ullmann em
"Sarabanda" e de
Monica Vitti em
"O Mistério de
Oberwald".
Nesses dois
trabalhos dos
fins das
trajetórias
criativas de
seus autores, as
atrizes não
encarnam mais
personagens,
elas são
filmadas como
imagens, puras
projeções do
espírito e
realização
absoluta do
maior desejo do
sujeito
apaixonado:
deixaram de ser
objetos de
desejo para se
integrar e
entregar
completamente a
um sujeito.
(©
Folha de S. Paulo)
Vida e obra de
Antonioni
- 29.set.1912
Nasce em
Ferrara (Itália)
- 1935
Forma-se em
economia pela
Universidade de
Bolonha
- 1939
Muda-se para
Roma e passa a
trabalhar na
revista
"Cinema",
editada por
Vittorio, filho
do ditador
Mussolini
- 1940
Passa a
estudar no
Centro
Experimental de
Cinema, em Roma
- 1942
Trabalha
como roteirista
em "Un Pilota
Ritorna" (Um
Piloto Retorna),
de Rossellini.
Casa-se com
Letizia Balboni
- 1943
Primeiro
filme, o
documentário
"Gente del Po",
que só seria
lançado em 1947
- 1957
Sai "O
Grito"
- 1960
"A
Aventura", o
primeiro da
"trilogia da
incomunicabilidade"
e primeiro com
atuação de sua
mulher, Monica
Vitti (não foram
formalmente
casados)
- 1961
Lança "A
Noite"
- 1962
"O Eclipse",
que fecha a
trilogia. Ganha
o Prêmio
Especial do Júri
em Cannes
- 1964
"O Dilema de
uma Vida"
("Deserto
Vermelho"), seu
primeiro em
cores
- 1966
Lança
"Blow-Up", que
lhe rendeu
indicações a
Oscar de direção
e roteiro
- 1970
Lança
"Zabriskie
Point", feito
nos EUA
- 1975
Lança
"Profissão:
Repórter"
- 1985
Um derrame
afeta
parcialmente sua
mobilidade e
inibe sua fala
- 1986
Casa-se com
Enrica
- 1994
Recebe um
Oscar honorário
como um dos
"mestres do
estilo visual"
- 1995
Lança "Além
das Nuvens", que
Wim Wenders
co-dirige sob
sua supervisão
- 30.jul.2007
Morre em
Roma
(©
Folha de S. Paulo)