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Cinema mudo

Michelangelo Antonioni
 

Diretor da "Cahiers du Cinéma", Frodon diz que os 2 não deixam herdeiros, mas grande cinema sobreviverá

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

O diretor de Redação da mítica "Cahiers du Cinéma", a principal revista de cinema do mundo, acha que Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni não deixaram herdeiros.

Em entrevista à Folha, Jean-Michel Frodon, que está a frente da publicação desde 2003, diz que Bergman teve a rara habilidade de ser mestre em dois domínios diferentes: o cinema e o teatro.

O crítico francês também acha que a investigação plástica de Antonioni, principalmente em relação às cores, não teve seqüência com outros cineastas.

Ainda que reconheça a enorme perda de dois dos principais cineastas da história do cinema na última segunda-feira, Frodon considera que existem grandes mestres da geração deles em atividade, como Alain Resnais e Jean-Luc Godard.

Frodon (1953) edita a revista que apontou nos anos 50 o então jovem cineasta sueco como uma grande promessa do cinema [leia texto de Godard na pág. 7]. Era uma ousadia na época.

A "Cahiers" também reservou espaço generoso para Antonioni, que então se afastava do neo-realismo italiano. O que se seguiu é história.

 


FOLHA - As mortes de Bergman e Antonioni representam de alguma forma o fim do "grande cinema"?
JEAN-MICHEL FRODON -
Não, de jeito nenhum! Cada geração reconhece e lê os seus grandes mestres. É claro que os dois então entre os maiores nomes da geração que apareceu entre os anos 50 e 70.
São artistas imensos, mas acredito que dentro de 15 anos estaremos falando de cineastas de hoje com a mesma nostalgia, como, por exemplo, Martin Scorsese, Hou Hsiao-hsien ou Abbas Kiarostami...
 

FOLHA - Ingmar Bergman deixou herdeiros?
FRODON -
Ele deixou o desejo de filmar, a confiança no cinema como meio para filmar coisas que se acreditava impossíveis.
Desse ponto de vista, tem um papel muito importante para as gerações que vieram depois dele. Mas não deixou uma uma escola ou mesmo discípulos. Wim Wenders, Brian de Palma, André Téchiné e Nagisa Oshima não teriam feito seus filmes da mesma forma sem Bergman.
Mas eles produzem seus próprios filmes, não fazem cinema como Bergman.
 

FOLHA - E Antonioni? Deixou herdeiros?
FRODON -
Eu não creio que exista hoje um cineasta "antonioniano"...
 

FOLHA - Nem no cinema oriental? Wong Kar-wai e outros não se inspiraram nele?
FRODON -
Não acho. O que há em comum entre Wong Kar-wai e Antonioni é o desenho, o grafismo, não o cinema. Antonioni era pintor, desenhista. E Wong Kar-wai é também um grande desenhista.
Mas é diferente a forma como lidam com as histórias, com o corpo, com o tempo.
Não acho que se deva procurar comparações. Elas são importantes, mas para mim é mais importante compreender o que diferencia os cineastas, e não o que os une.
Para Wong Kar-wai, que eu conheço muito bem, acho que a cultura chinesa tem uma dimensão muito importante, completamente diferente da visão de mundo de Antonioni, que era muito européia.
Basta ver como ele enxergou a China quando fez um documentário lá ["China", de 1972].
Ele teve uma visão de pintor renascentista, não entendeu nada. Mas viu coisas muito belas com seu olhar.
 

FOLHA - Outros teriam hoje a capacidade de Bergman de atuar também com ópera, televisão ou teatro?
FRODON -
Ele foi mestre de dois domínios artísticos diferentes, ainda que ligados: o cinema e a dramaturgia, que envolve tanto o teatro quanto a ópera.
Conheço muito pouco seu trabalho de teatro, só vi algumas montagens. Mas acho que hoje poucas pessoas poderiam trabalhar de forma tão convincente com teatro e com cinema.
Pode-se dizer, por exemplo, que Kiarostami sabe trabalhar com cinema, fotografia e vídeo.
No caso de teatro e cinema, também houve Orson Welles, talvez Marcel Pagnol ou Rainer Werner Fassbinder. Mas a lista é muito curta.
 

FOLHA - Antonioni antecipou o cinema digital com "O Mistério de Oberwald" (1981), feito em vídeo?
FRODON -
Ele era muito interessado pela pesquisa plástica da imagem. Para mim, a pesquisa mais importante e extraordinária nesse sentido foi "Dilema de uma Vida" (ou "Deserto Vermelho"), pelo trabalho com cores, utilizando-as para contar uma história.
Em seguida ele enxergou, não sozinho, mas antes de muitos outros, as possibilidades do vídeo, principalmente em termos de cor. Era alguém que tinha a dimensão do pintor. Acho que é um tipo de exploração que não teve seqüência no cinema.
O único que fez algo da mesma natureza foi Kurosawa.
 

FOLHA - Quais são os principais filmes de Bergman?
FRODON -
Sua filmografia é tão longa e genial... Para citar só alguns, diria "Monika e o Desejo".
Acho que ele é muito importante, o primeiro filme verdadeiramente de juventude, moderno, da história do cinema.
Mostrou em 1953 essa revolta sem palavras. Antecipa o que se tornaria um arquétipo do cinema nos anos seguintes. Veio antes de James Dean, de Marlon Brando, do rock and roll, da nouvelle vague e dos cinemas novos de todo o mundo...
É exemplar de algo que também havia em Antonioni, mas em outro sentido: utilizar as lições do neo-realismo italiano não para olhar a sociedade, mas para mergulhar na alma humana. Depois desse filme, há uma lista enorme de obras-primas...
É um pouco banal listar todos os títulos, mas acho que os seus dois últimos filmes são subestimados: "Sarabanda" (2003) e "Na Presença de um Palhaço" (1997).
Para mim, são duas obras-primas, com inacreditável liberdade, profundidade e leveza. Têm humor negro e grande generosidade ao mesmo tempo.
Espero que ainda sejam reavaliados.
 

FOLHA - E os principais de Antonioni?
FRODON -
Acho que "A Aventura" é o filme que simboliza a revolução moderna. É extraordinário, para rever sempre.
"O Dilema de uma Vida" é uma aventura estética única. "Blow-Up" está na origem de muita coisa feita no cinema americano nos anos 70 e 80, influenciou Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Steven Spielberg e David Cronenberg.
Também gosto muito de "Identificação de uma Mulher" (82), que é emocionante e permanece misterioso até hoje.
 

FOLHA - Se tivesse que nomear, quem seriam os principais cineastas vivos hoje?
FRODON -
Da mesma geração de Antonioni e Bergman, eu citaria Jacques Rivette. Jean-Luc Godard está preparando três filmes ao mesmo tempo... Chris Marker. Alain Resnais prepara um filme. Eric Rohmer também tem um filme recente.
Fora da França, Manoel de Oliveira é um caso à parte, pois, apesar de idoso, é um jovem cineasta... Nos EUA, citaria Coppola, Clint Eastwood e Scorsese.
Na China, citaria Hou Hsiao-hsien. Sem dúvida, Aleksandr Sokúrov e Kiarostami. E, de uma certa forma, Woody Allen, Cronenberg, David Lynch. Não citei Pedro Almodóvar, mas também é um grande cineasta.

(© Folha de S. Paulo)

 


Michel Ciment comenta o legado de Bergman e Antonioni

Ciment, da rival "Positif", diz que Bergman foi polimorfo e Antonioni, de um registro só; também ataca os festivais hoje

DA REDAÇÃO

Ao lado da revista "Cahiers du Cinéma", criada em 1952, sua rival "Positif" (fundada um ano depois) também defendeu o jovem Ingmar Bergman nos anos 50 e acompanhou a ascensão de Michelangelo Antonioni.

Seu diretor de Redação, Michel Ciment, que esteve presente na maior parte da existência da revista, não concorda com o homólogo da "Cahiers" quanto à qualidade do cinema atual.

Ciment (1928) disse à Folha que a indústria cinematográfica não permite mais a ousadia formal dos dois mestres mortos na última semana.

Assim como Frodon, o veterano jornalista da "Positif" também não enxerga herdeiros dos dois cineastas. O crítico concorda, no entanto, que existem grandes nomes em atividade e, assim como Frodon, cita Alain Resnais, Jean-Luc Godard e Hou Hsiao-hsien, entre outros. (Marcos Strecker)

 


FOLHA - As mortes de Bergman e Antonioni representam de alguma forma o fim do "grande cinema"?
MICHEL CIMENT -
Sou cético com relação às afirmações definitivas. Ainda há grandes cineastas vivos na França, como Alain Resnais, Jean-Luc Godard e Eric Rohmer, e no estrangeiro também.
Por outro lado, acho que é o fim dos grandes cineastas que apareceram nos anos 40 e 50 e que impuseram a noção de autor ao cinema, como na literatura e na pintura.
Para mim, também Federico Fellini, Orson Welles, Akira Kurosawa e Luchino Visconti representavam um grande cinema que podia conciliar o público e a crítica.
Temos hoje grandes cineastas como Hou Hsiao-hsien e Abbas Kiarostami, mas são cineastas para um público mais restrito.
 

FOLHA - Há ainda espaço no cinema para a mesma pretensão intelectual que Bergman e Antonioni demonstravam?
CIMENT -
Hoje é muito mais difícil. A forma como os filmes são produzidos e distribuídos, o que envolve a TV, levou a uma prudência estética e também em relação aos temas que impediria, hoje, um filme como "Persona" (66), de Bergman, ou "A Aventura", de Antonioni.
 

FOLHA - Bergman ou Antonioni deixaram herdeiros?
CIMENT -
Vários grandes artistas não deixaram herdeiros diretos. Vimos em um momento o cinema argentino fazendo um cinema como o de Antonioni... ou o cinema português.
Mas acho isso catastrófico, não devemos imitar os grandes estilistas porque isso vira uma paródia. Bergman e Antonioni criaram um cinema tão pessoal que os herdeiros só poderiam produzir uma caricatura.
Os que exercem mais influência são diretores como um Jean Renoir, por exemplo, ou John Ford, porque tinham uma expressão menos egocêntrica.
 

FOLHA - Woody Allen sempre se declarou influenciado por Bergman, trabalhou com o fotógrafo de Bergman, Sven Nykvist...
CIMENT -
Woody Allen tem duas grandes influências: Bergman e Fellini. É um americano voltado para a Europa.
E Bergman era também um grande autor cômico, não devemos esquecer que nos anos 50 filmou comédias brilhantes, como as de Ernst Lubitsch.
 

FOLHA - A influência do teatro foi fundamental para o cinema de Bergman?
CIMENT -
Não acho que foi fundamental. Vi algumas montagens dele, devo dizer que não fiquei impressionado. Tenho a impressão de que o fundamental em seu teatro era a atuação.

Quando diretores de teatro fazem cinema, tornam-se grandes diretores de atores, como Elia Kazan, Visconti ou George Cukor. O cinema de Bergman era muito mais inovador e revolucionário do que o seu teatro.

FOLHA - Temas de Bergman como dilemas morais ou culpa ainda são possíveis hoje?
CIMENT -
Acho que menos do que na época de Bergman e Antonioni. Esses temas são menos centrais do que há 50 anos, quando vivíamos o triunfo do existencialismo. Vi recentemente um documentário de Aleksandr Sokúrov sobre Soljenitsin, e esses temas estão muito presentes.
O que vai de fato ficar de Bergman e Antonioni é a inovação formal, a estética e o problema dos casais, da relação entre as pessoas.
 

FOLHA - Quais foram os principais filmes de Bergman?
CIMENT -
É muito difícil responder isso para Bergman. É um pouco como Shakespeare em relação ao teatro. Bergman se renovava constantemente, tinha uma produção variada.
Não é possível apontar "o" grande filme dele. Para sua tendência expressionista, eu citaria "Noites de Circo" (1953). Para sua expressão ascética, citaria "Persona". Para sua tendência oitocentista, "Fanny e Alexander". E para suas reflexões sobre o relacionamento, sobre os casais, apontaria "Cenas de um Casamento".
 

FOLHA - E os principais filmes de Antonioni?
CIMENT -
Para ele é mais fácil. "O Grito" (1957), para sua primeira fase, e "A Aventura", para o seu segundo período.
Talvez também "Identificação de uma Mulher" (82) para a sua segunda fase.
 

FOLHA - Antonioni antecipou o cinema digital com "O Mistério de Oberwald" (1981)?
CIMENT -
Não acho. Bergman era um gênio polimorfo, que podia adaptar Mozart, por exemplo. Já Antonioni funcionava com um só registro, o da ausência, da não-comunicação, que vai dos seus primeiros filmes até "Identificação de uma Mulher".
Tudo que ele fez fora desse registro foi um fracasso. "O Mistério de Oberwald" é uma peça filmada, medíocre. Seu documentário sobre a China também é medíocre. Ele era grande em um só domínio.
Infelizmente, foi forçado a fazer filmes no fim da sua vida, como "Eros" [de 2004, em que dirige o segmento "A Mão"].
Isso foi dramático para sua imagem.
 

FOLHA - O cinema oriental, como o de Wong Kar-wai, se inspirou em Antonioni?
CIMENT -
Wong Kar-wai certamente não, porque faz um cinema baseado na edição ágil, rápida. Talvez em relação a uma certa melancolia.
Todos os cineastas da melancolia são inspirados em Antonioni. Andrei Tarkóvski e Wim Wenders o são, sem dúvida. Mas de modo indireto, já que são grandes cineastas.
No cinema oriental, apontaria Hou Hsiao-hsien e Tsai Ming-liang.
 

FOLHA - Quais são os grandes nomes do cinema atual?
CIMENT -
Fora da França, acho que o grego Theo Angelopoulos.
Nos EUA, Terence Malick é incontestavelmente um dos grandes cineastas. Também há os irmãos Coen, Tim Burton...
Talvez Gus van Sant. O cinema americano é o único atualmente que dialoga ao mesmo tempo com os intelectuais e cinéfilos e com o público.
Mesmo se Woody Allen não faz o mesmo sucesso de Steven Spielberg, ainda tem milhões de espectadores.
Para mim o grande drama do cinema contemporâneo é que os filmes são cada vez mais produzidos para os festivais de cinema. Às vezes não conseguem atingir um grande público.
São planejados para ficarem prontos em maio, a tempo de concorrerem no Festival de Cannes. Acho isso dramático.
A beleza do cinema é ser como o teatro de antigamente ou como o romance, a pintura. Deveria ser consumido e apreciado por um grande público.

(© Folha de S. Paulo)


A vigilância do desejo

Em texto de 1980, o crítico Roland Barthes destaca "a incerteza do sentido" na cinematografia de Antonioni

ROLAND BARTHES

Em sua tipologia, Nietzsche distingue duas figuras: o sacerdote e o artista. Sacerdotes temos hoje para dar e vender: de todas as religiões e até sem religião; mas e artistas?

Gostaria, caro Antonioni, que você me emprestasse por um instante algumas características de sua obra para que eu possa fixar as três forças ou, se preferir, as três virtudes, que, a meu ver, constituem o artista.
Denomino-as já: vigilância, sabedoria e -a mais paradoxal de todas- fragilidade.

Ao contrário do sacerdote, o artista surpreende-se e admira; seu olhar pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o ressentimento.

Porque você é artista é que sua obra está aberta para o Moderno. Muitos tomam o Moderno como uma bandeira de luta contra o velho mundo, seus valores comprometidos; mas, para você, o Moderno não é o termo estático de uma oposição fácil; o Moderno é, ao contrário, uma dificuldade ativa em seguir as mudanças do Tempo, não mais apenas no nível da grande História, mas por dentro dessa pequena história cuja medida é a existência de cada um de nós.

Iniciada no imediato pós-guerra, sua obra foi-se encaminhando, de momento em momento, num movimento de dupla vigilância, para o mundo contemporâneo e para você mesmo.

Cada um de seus filmes foi, na sua escala pessoal, uma experiência histórica, ou seja, o abandono de um problema antigo e a formulação de uma nova questão.

Isso quer dizer que você viveu e tratou a história destes últimos 30 anos com sutileza, não como a matéria de um reflexo artístico ou de um engajamento ideológico, mas como uma substância cujo magnetismo você tinha de captar de obra em obra.

Para você, conteúdos e formas são igualmente históricos; os dramas, como você disse, são indiferentemente psicológicos e plásticos. [...]

Utopista

Sua preocupação com a época não é a de um historiador, de um político ou de um moralista, mas sim a de um utopista que procura perceber em pontos precisos o mundo novo, porque deseja esse mundo e quer já fazer parte dele.

A vigilância do artista, que é a sua, é uma vigilância amorosa, uma vigilância do desejo.

O que chamo de sabedoria do artista não é uma virtude antiga, muito menos um discurso medíocre, mas, ao contrário, o saber moral, a acuidade de discernimento que lhe possibilita nunca confundir sentido e verdade.

Quantos crimes a humanidade já cometeu em nome da Verdade!
E, no entanto, essa verdade sempre só era um sentido. Quantas guerras, quantas repressões, quantos terrores, quantos genocídios para o triunfo de um sentido! O artista, porém, sabe que o sentido de uma coisa não é sua verdade; esse saber é uma sabedoria, uma louca sabedoria, poderíamos dizer, pois o retira da comunidade, do rebanho de fanáticos e arrogantes.

Nem todos os artistas, porém, têm essa sabedoria: alguns hipostasiam o sentido. Essa operação terrorista geralmente se chama realismo.
Por isso, quando você declara (numa conversa com Godard) "sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam totalmente realistas", está demonstrando um sentimento justo do sentido; não o impõe, mas não o abole.

Essa dialética dá a seus filmes (vou usar de novo a mesma palavra) uma grande sutileza: sua arte consiste em sempre deixar o caminho do sentido aberto e como que indeciso, por escrúpulo.

É nisso que você realiza com muita precisão a tarefa do artista de que nosso tempo precisa: nem dogmática nem insignificante.

Assim, nos primeiros curtas-metragens sobre os lixeiros de Roma [...], a descrição crítica de uma alienação social vacila, sem se apagar, em proveito de um sentimento mais patético, mais imediato, do corpo no trabalho.

No filme "O Grito", o sentido forte da obra é, se assim se pode dizer, a própria incerteza do sentido: a perambulação de um homem que em nenhum lugar consegue confirmar sua identidade e a ambigüidade da conclusão (suicídio ou acidente) levam o espectador a duvidar do sentido da mensagem.

Essa fuga ao sentido, que não é sua abolição, lhe permite abalar as fixidades psicológicas do realismo: em "O Dilema de uma Vida", a crise já não é de sentimentos, como em "O Eclipse", pois os sentimentos aí são seguros (a heroína ama o marido).

Tudo se urde e dói numa segunda zona, onde os afetos -o mal-estar dos afetos- escapa a essa armação do sentido que é o código das paixões.
Por fim -para abreviar- seus últimos filmes levam essa crise do sentido ao cerne da identidade dos acontecimentos ("Blow-Up") ou das pessoas ("Profissão: Repórter").

No fundo, ao longo de sua obra, há uma crítica constante, ao mesmo tempo dolorosa e exigente, dessa marca forte do sentido, que se chama destino.

Braque e Matisse

Essa vacilação -eu diria, com mais precisão, essa síncope- do sentido segue caminhos técnicos propriamente cinematográficos (cenário, planos, montagem), que não me cabe analisar, pois não tenho competência para tanto; estou aqui, parece-me, para dizer em que a sua obra envolve, além do cinema, todos os artistas do mundo contemporâneo: você trabalha para tornar sutil o sentido daquilo que o homem diz, conta, vê ou sente, e essa sutileza do sentido, essa convicção de que o sentido não pára grosseiramente na coisa dita, mas vai indo cada vez mais longe, fascinado pelo extra-sentido, é a convicção, creio, de todos os artistas cujo objeto não é esta ou aquela técnica, mas um fenômeno estranho, a vibração.
O objeto representado vibra, em detrimento do dogma. Penso nestas palavras do pintor Braque: "O quadro está acabado quando apagou a idéia".

Penso em Matisse desenhando uma oliveira, de sua cama e, ao cabo de certo tempo, observando os vazios existentes entre os galhos, para descobrir que, com essa nova visão, escapava à imagem habitual do objeto desenhado, ao clichê "oliveira".

Matisse descobria assim o princípio da arte oriental, que quer sempre pintar o vazio, ou melhor, que capta o objeto figurável no momento raro em que o pleno de sua identidade cai bruscamente num novo espaço, o do Interstício.

De certa maneira, sua arte também é uma arte do Interstício ("A Aventura" seria a demonstração cabal dessa afirmação), portanto, de certa maneira também, sua arte tem alguma relação com o Oriente. [...]

Caro Antonioni, tentei dizer com minha linguagem intelectual as razões que fazem de você, para além do cinema, um dos artistas de nosso tempo.

Esse cumprimento não é simples, você sabe, pois ser artista hoje é uma situação não mais sustentada pela bela consciência de uma grande função sagrada ou social; já não é assumir, serenamente, um lugar no Panteão burguês dos Luminares da Humanidade; é, no momento de cada obra, precisar enfrentar em si mesmo os espectros da subjetividade moderna -pois já não se é sacerdote-, que são o desalento ideológico, a consciência social pesada, a atração e a aversão pela arte fácil, o tremor da responsabilidade, o incessante escrúpulo que dilacera o artista entre a solidão e o gregarismo.

Cabe-lhe hoje, portanto, aproveitar este momento tranqüilo, harmonioso, reconciliado, em que toda uma coletividade está de acordo no reconhecimento, na admiração, no amor à sua obra. Pois amanhã recomeça o trabalho duro.

Este texto foi escrito para a entrega do prêmio "Archiginnedio d"Oro", em 1980, e publicado na íntegra na "Cahiers du Cinéma" (maio/1980) e reproduzido em Roland Barthes, "Inéditos Vol. 3 - Imagem e Moda" (ed. Martins Fontes).

Tradução de Ivone Benedetti.

(© Folha de S. Paulo)


Arquétipos da paixão

Liv Ullmann e Monica Vitti foram eternizadas nas telas por Bergman e Antonioni

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Lembra o dicionário que musas são divindades que inspiram.

Para o artista, elas funcionam como o alento que dá fôlego, vigor à sua criação. Para nós, que gozamos arte, as musas são os pontos fortes que nos fazem respirar mais profundamente ou, em situações extremas, prender a respiração.

Diversamente das estrelas, que estão na tela para serem contempladas como num firmamento distante e fora do alcance, as musas são espelhos da nossa humanidade.

Em suas cenas, não adquirem a distância do mito. Pelo contrário, são antes seres decaídos, submetidos às dores da existência.

Os grandes criadores do cinema fizeram questão de fazer da musa esse objeto ordinário em torno do qual giram a câmera a fim de desvendar seus segredos, expor seus mistérios.

Godard teve a sua em Anna Karina, assim como Buñuel a teve em Catherine Deneuve, John Cassavettes em Gena Rowlands e Woody Allen em Mia Farrow.

Nem sempre a relação é de homem para mulher, como atesta a função-musa de Jean Pierre Léaud para Truffaut, a de Marcello Mastroianni para Fellini e a de Tony Leung para Wong Kar-wai (se bem que, nestes casos, a musa se confunde com o alter-ego).

Potência da imagem

O que define a musa para um cineasta é menos sua beleza como forma de encantamento (para isso basta ser estrela) do que a potência de sua imagem.

Ou, ainda mais, o quanto as características físicas e estéticas de um ator servem às ambições expressivas de um autor. É dentro desse campo de possibilidades que se podem identificar Liv Ullmann como a musa de Ingmar Bergman e Monica Vitti como a de Michelangelo Antonioni, os dois gênios da arte cinematográfica desaparecidos na última semana.

O primeiro signo distintivo da musa é a repetição.

Depois que ela entra em cena, funciona como um arquétipo da paixão.
Os personagens mudam, mas a imagem se reproduz infinitamente como um fantasma ou uma multiplicação numa sala de espelhos (a cena de "A Dama de Xangai" da destruição da imagem-estrela de Rita Hayworth fazia parte de seu devir-musa para Orson Welles).

Mesmo quando elas estão ausentes nos créditos, sua presença se faz sentir na semelhança com a imagem de outros atores em cena. Não é mera coincidência que as musas nos filmes sejam também companheiras ou amantes na vida pessoal dos cineastas.

E, como todo fantasma que se recusa a desaparecer, um dia elas retornam, num grande papel derradeiro.

Outro signo, também característico da paixão amorosa que os artistas devotam a suas musas, é o mistério.

E elas se tornam musas em suas obras a partir do momento em que todo o esforço da criação investe na sondagem de seus segredos, na análise simultaneamente microscópica e telescópica que a câmera oferece aos olhos do espectador através da magnitude do primeiro plano.

"Bravo, bravo"

O crítico italiano Aldo Tassone, grande especialista na obra de Antonioni, relatou ao "Libération", na edição da última quarta-feira, detalhes da relação de Antonioni e Vitti que sugerem essa ambigüidade entre relação afetiva e inspiração artística.

"Ele a conheceu quando ela dublava uma voz em "O Grito". Ela me contou que no estúdio de gravação uma mão se pousou em seu ombro como um pássaro. Era Antonioni, que disse a ela simplesmente: "Bravo, bravo".

Depois, eles fizeram quatro filmes e viveram juntos a seu modo. Ele havia comprado dois andares de um palácio em Roma. Cada um tinha o seu, mas uma escada interna os reunia. Não se tratava de fato de um casal, mas de um par de amigos magníficos. Monica, com suas cores, sua exuberância; Michelangelo, com sua elegância discreta e austera. Um dia, aconteceu um terrível incêndio no prédio. Michelangelo só pensou em salvar Monica, que já se encontrava do lado de fora. Então, ele se postou diante do prédio em chamas, o qual encarava como se fosse um plano prestes a filmar."

Ao contrário de nós, amantes ordinários, os amantes artistas têm na obra a oportunidade de eternizar a imagem-arquétipo pela qual se tornaram obcecados.

O caso de Liv Ullmann repete esses padrões na carreira de Bergman.
Antes de ela aparecer, outras atrizes e atores serviram ao mestre sueco em seus extraordinários mergulhos na alma.

Mas foi na opacidade do rosto de Ullmann que Bergman conseguiu ver além, naquele que talvez seja seu filme mais profundo: "Persona".

É o título que marca a estréia de Ullmann na obra do cineasta sueco, da qual em seguida a atriz só eventualmente estará ausente.

Sempre retornará nos pontos altos ("Cenas de um Casamento", "Gritos e Sussurros", "Face a Face", "Sonata de Outono") ou como fantasma (o papel de Ewa Fröling, a mãe de "Fanny e Alexandre").

Esses espectros que rondam até a hora da morte não deixam de voltar já no crepúsculo, como comprovam as presenças de Ullmann em "Sarabanda" e de Monica Vitti em "O Mistério de Oberwald".

Nesses dois trabalhos dos fins das trajetórias criativas de seus autores, as atrizes não encarnam mais personagens, elas são filmadas como imagens, puras projeções do espírito e realização absoluta do maior desejo do sujeito apaixonado: deixaram de ser objetos de desejo para se integrar e entregar completamente a um sujeito.

(© Folha de S. Paulo)


Vida e obra de Antonioni

- 29.set.1912
Nasce em Ferrara (Itália)
- 1935
Forma-se em economia pela Universidade de Bolonha
- 1939
Muda-se para Roma e passa a trabalhar na revista "Cinema", editada por Vittorio, filho do ditador Mussolini
- 1940
Passa a estudar no Centro Experimental de Cinema, em Roma
- 1942
Trabalha como roteirista em "Un Pilota Ritorna" (Um Piloto Retorna), de Rossellini. Casa-se com Letizia Balboni
- 1943
Primeiro filme, o documentário "Gente del Po", que só seria lançado em 1947
- 1957
Sai "O Grito"
- 1960
"A Aventura", o primeiro da "trilogia da incomunicabilidade" e primeiro com atuação de sua mulher, Monica Vitti (não foram formalmente casados)
- 1961
Lança "A Noite"
- 1962
"O Eclipse", que fecha a trilogia. Ganha o Prêmio Especial do Júri em Cannes
- 1964
"O Dilema de uma Vida" ("Deserto Vermelho"), seu primeiro em cores
- 1966
Lança "Blow-Up", que lhe rendeu indicações a Oscar de direção e roteiro
- 1970
Lança "Zabriskie Point", feito nos EUA
- 1975
Lança "Profissão: Repórter"
- 1985
Um derrame afeta parcialmente sua mobilidade e inibe sua fala
- 1986
Casa-se com Enrica
- 1994
Recebe um Oscar honorário como um dos "mestres do estilo visual"
- 1995
Lança "Além das Nuvens", que Wim Wenders co-dirige sob sua supervisão
- 30.jul.2007
Morre em Roma

(© Folha de S. Paulo)

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