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O fim de uma era?

AFP

Michelangelo Antonioni
 

Com as mortes de Bergman e Antonioni, dois dos maiores representantes da escola européia, já se fala em fechamento de ciclo, em epílogo da era do chamado “cinema de arte”, cujo declínio já se fazia sentir havia anos

Luiz Zanin Oricchio

Eles se foram juntos, e a tentação é dizer que as mortes de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni assinalam o fim de uma era.

Há motivos para pensar dessa maneira. Praticamente contemporâneos, o sueco e o italiano exerceram enorme influência sobre o cinema do século 20, ainda que nunca tenham sido particularmente populares. Seus filmes os levaram muito além das fronteiras dos seus países. Encarnaram, talvez como nenhum outro criador do seu tempo, uma maneira intelectual de expressar-se através dessa arte de sons e imagens. E, como o cinema foi de fato a arte do século 20, a repercussão dos seus trabalhos foi imensa, muito embora não tenham sido grandes sucessos de bilheteria. Ora, mas não é apenas o êxito comercial que determina o valor de uma obra. Quantos exemplares foram vendidos na época de publicação de Ulisses, de Joyce? Qual foi a tiragem de A Interpretação dos Sonhos, de Freud? Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, figurou nas listas de best-sellers?

Bergman e Antonioni iniciam carreira ainda nos anos 40, mas despontam para a cena mundial apenas na década seguinte. Bergman, após um começo tido como convencional, trabalhando como um remador de Ben-Hur na Svensk Filmindustri, como roteirista, e lá mesmo rodando seus primeiros filmes. Antonioni, como documentarista muito ligado em princípio ao neo-realismo e, ele também, participando de roteiros que seriam filmados por colegas - como é o caso de Abismo de Um Sonho, de Federico Fellini.

Naquele momento, em que os efeitos materiais imediatos do pós-guerra pareciam cessar, os dois afinam seus instrumentos com os (vastos) meios culturais disponíveis. Bergman dando seguimento à grande escola nórdica de Carl T. Dreyer e ao pensamento de Kierkegaard. Antonioni, estudando conseqüências do aburguesamento da sociedade européia e da reificação do homem. Ambos partilham o ambiente do existencialismo, de Sartre a Camus, da náusea ao sentimento de estranheza de estar no mundo.

Respirando esse ar rarefeito, ambos se instalam, como se estivessem em casa, no inconsciente coletivo das décadas de 50 a 70, quando produzem um número extraordinário de obras-primas - Noites de Circo (1953), Morangos Silvestres (1957), a trilogia Através de Um Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio (1961-1962), Persona (1966), Gritos e Sussurros (1973), para Bergman; O Grito (1957) e a trilogia A Aventura, A Noite e O Eclipse (1959-1961), O Deserto Vermelho (1963), Blow Up (1967), Passageiro - Profissão: Repórter (1975), para Antonioni. É como se dialogassem e discutissem através dos seus filmes, num ambiente de intertextualidade cinematográfica que não iria mais se repetir, pelo menos nesse nível, depois daquela época.

Esse espaço de “discussão”, claro, não era ocupado apenas por esses dois pesos pesados, mesmo porque estavam vivíssimos e ativos outros de porte semelhante como Federico Fellini (1920-2003) e Luchino Visconti (1906-1976), além de Godard, Truffaut e Rohmer, na França, e mais os diretores dos “novos cinemas” que brotavam em toda parte, do Brasil ao Japão, da Alemanha à Argentina, dos Estados Unidos à Inglaterra, e assim entravam no jogo. Do ponto de vista artístico, foi uma época e tanto. E uma época que buscava se interpretar e se refletir através do cinema. Naqueles anos, fazer cinema, pelo menos como o de Bergman, Antonioni e outros, era empreender uma tarefa de prospecção e compreensão da vida do mesmo nível que a melhor literatura, a filosofia contemporânea, a pintura mais sofisticada.

Para sustentar essa posição artística, seria preciso não apenas optar por um conjunto temático que se impunha ao tempo (a impossibilidade da relação, a coisificação do homem contemporâneo, a mesquinhez do destino humano, etc.) mas tensionar o campo das formas expressivas. Os closes de Bergman são inevitáveis para quem, como ele, procura desesperadamente a “alma” das suas personagens. Os espaços vazios de Antonioni, que lembram a pintura de De Chirico, são igualmente inevitáveis para quem busca expressar a rarefação do homem na sociedade industrial de então. Um filme como Gritos e Sussurros se resolve, em boa parte, pelo trabalho de composição de cores, do branco contra o vermelho. Profissão: Repórter se condensa e se adensa no plano-seqüência final, com a câmera cujo “olho” percorre o ambiente e deixa o crime ser cometido fora do campo. São apenas dois exemplos.

Quer dizer, no tipo de cinema que faziam Bergman e Antonioni, a meditação sobre o tema era parte da equação; a outra, envolvia o desafio de enfrentar esse tema em uma forma inovadora e que, ao mesmo tempo, incorporasse a tradição da cultura em geral e a do cinema em particular. Não é difícil descobrir o quanto, em meio à invenção, havia de influências e referências nos filmes de um e de outro. Mas essas referências e influências não se apresentam de forma ostensiva, como penduricalhos, à maneira de citações. Isso porque, primeiro: estavam tão bem assimiladas pelos autores, sendo partes orgânicas de sua cultura, que passavam a fazer parte deles, da sua corrente sanguínea; segundo: porque o tempo do acúmulo e exibição de citações ainda não havia chegado.

O curioso é que esse cinema que pensa e sente é às vezes pejorativamente chamado de “frio” e “distante”, pecha em geral mais aplicada a Antonioni que a Bergman. Com efeito, este é, também, um cinema da mente, da inteligência. Ao mesmo tempo, é um cinema dos sentimentos, da paixão, dos afetos. Não são termos excludentes - pelo contrário. Há furor em Bergman, há amor em Antonioni. Mas há também silêncio, pausas e reflexão. Luz e sombras. É um cinema de nuances e ambivalências profundas, expressas em termos de uma beleza por vezes convulsiva.

Por isso se impôs. Mas não de maneira serena e inevitável. Hoje, quando a morte coloca definitivo ponto final em suas carreiras, Bergman e Antonioni passaram à condição de unanimidades. Nem sempre foi assim. Ainda se encontram, em arquivos de jornais, velhas críticas que acusavam a ambos de formalistas, intelectualistas e mesmo alienados, por tratarem mais da interioridade dos personagens do que de sua inserção no social. Essa politização crítica, por vezes excessiva, se explica pelo tônus engajado dos anos 60. Não impediu que Bergman e Antonioni se impusessem como fatos incontornáveis da cultura. Por exemplo, em 1954, no festival de cinema que comemorou o 4º centenário de São Paulo, foi grande o pasmo com a projeção de Noites de Circo, filme chamado de “inclassificável” pela crítica. E, desse modo, apesar de resistências localizadas, ambos se tornaram referências e sinônimos do assim chamado “cinema de arte”.

A perda de espaço que experimentaram anos depois se deve menos a uma queda de qualidade da sua produção que a mudanças no próprio ambiente cinematográfico e cultural. Este, por sua vez, acompanhava e determinava alterações no panorama mundial, na percepção e na sensibilidade do público. O espaço para filmes complexos foi diminuindo em escala mundial, ao mesmo tempo em que Hollywood se revitalizava pelo novo cinema de ação, com filmes como Guerra nas Estrelas e Indiana Jones. Os chamados “tempos mortos” foram eliminados e a ação tornou-se contínua. O próprio cinema europeu declinou e novas gerações de realizadores mostraram-se incapazes de substituir os antigos mestres.

Começava uma nova era, hostil à reflexão, a narrativas lacunares, a qualquer coisa que pareça estranha, lenta ou complexa. Não saberemos jamais que tipo de carreira Bergman ou Antonioni teriam feito caso houvessem nascido mais tarde e começado a filmar em época tão antiintelectual como a nossa. Mas, enfim, a obra fica e é ela que conta.

(© Agência Estado)

 


Em uma geração de quebradores de regras, Antonioni foi um dos mais subversivos e venerados

Rick Lyman*

Michelangelo Antonioni, o diretor italiano cujos cânticos frios de alienação foram pedras fundamentais do cinema internacional nos anos 60, inspirando doses iguais de admiração, acusação e confusão, morreu na segunda-feira (30/07) em sua casa em Roma, informou a imprensa italiana na terça-feira. Ele tinha 94 anos. Ele morreu no mesmo dia que Ingmar Bergman, o cineasta sueco que morreu em sua casa na Suécia.

"Com Antonioni, não apenas perdemos um dos maiores diretores vivos, mas também um mestre do cinema moderno", disse o prefeito de Roma, Walter Veltroni. Seu gabinete disse estar planejando que o corpo de Antonioni seja velado na quarta-feira, informou a agência de notícias "Reuters".

 

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Michelangelo Antonioni dirigiu clássicos como "Blow Up" e "A Aventura"


Alto, cerebral e resolutamente sério, Antonioni remonta um tempo em meados do século passado em que ir ao cinema tinha uma finalidade intelectual, quando passagens propositadamente opacas em filmes reconhecidamente difíceis provocavam longas noites de discussão em cafés de calçada, e quando diretores da moda como Antonioni, Alain Resnais e Jean-Luc Godard eram seguidos à beira-mar em Cannes por cinéfilos empunhando câmeras e exigindo saber o que raios queriam dizer com seus mais recentes ultrajes.

Antonioni provavelmente é mais conhecido por "Blow-Up - Depois Daquele Beijo" ("Blow-Up"), um drama de 1966 situado em Londres sobre um fotógrafo de moda que passa a acreditar que uma foto que tirou de dois amantes em um parque público também mostra, escondida ao fundo, evidência de um assassinato. Mas sua verdadeira contribuição duradoura ao cinema está em sua trilogia anterior -"A Aventura" ("L'Avventura"), de 1959; "A Noite" ("La Notte"), de 1960; e "O Eclipse" ("L'Eclisse"), de 1962 - que explora a visão central atormentada do cineasta de que as pessoas se tornaram emocionalmente desconectadas umas das outras.

Esta visão de distanciamento das pessoas foi expressa perto do final de "A Noite", quando sua estrela Monica Vitti observa: "Toda vez que tento me comunicar com alguém, o amor desaparece".

Em uma geração de quebradores de regras, Antonioni foi um dos mais subversivos e venerados. Ele desafiou o público de cinema com um foco intenso em personagens intencionalmente vagos e um desdém por convenções padrões como trama, ritmo e clareza. Ele levantava questões e nunca as respondia, fazia seus personagens agirem de forma autodestrutiva e deixava de explicar porquê, e estendia suas tomadas por tanto tempo que os atores às vezes saíam do personagem.

Tudo fazia parte do plano do diretor. Como Antonioni explicou: "Os efeitos posteriores de uma cena de emoção, me ocorreu, também podem ter significado, tanto sobre o ator quanto sobre o avanço psicológico do personagem".

Antonioni também rompeu outras convenções. Muitos de seus cortes, durações de cena e movimentos de câmera eram altamente idiossincráticos e ele freqüentemente posava seus personagens de forma altamente formal. Ele usava enquadramentos de ponto de vista apenas raramente, uma prática que ajudava a erguer uma barreira emocional entre o público e seus personagens enigmáticos.

"O que é impressionante nos filmes de Antonioni não é o fato de serem bons", escreveu o estudioso de cinema Seymour Chatman. "Mas o fato de terem sido feitos".

Talvez o momento definidor da carreira de Antonioni tenha ocorrido na noite em que "A Aventura" foi exibido no Festival de Cinema de Cannes em 1960. Grande parte do público abandonou a sessão e ocorreram muitas vaias e apupos. O diretor e Monica Vitti acharam que suas carreiras tinham acabado.

Mas posteriormente naquela noite, Roberto Rossellini e um grupo de outros cineastas e críticos influentes esboçaram uma declaração que divulgaram na manhã seguinte. "Cientes da importância excepcional do filme de Michelangelo Antonioni, 'A Aventura', e estarrecidos pelas demonstrações de hostilidade que provocou, os críticos e membros da profissão abaixo assinados estão ansiosos em expressar sua admiração pelo realizador deste filme", escreveram.

Nascia uma das grandes lendas do cinema iconoclasta - o fato de ser vaiado em Cannes poder se tornar um emblema de honra.

"A Aventura" ganhou o Prêmio Especial do Júri do festival e se tornou um sucesso internacional de bilheteria, provocando um debate furioso. Alguns acharam o filme sem sentido; outros leram montes de significados em suas lânguidas situações difíceis. Antonioni ganhava reputação internacional.

No ano seguinte, a influente revista britânica de cinema "Sight and Sound" realizou uma pesquisa envolvendo 70 importantes críticos de todo o mundo e eles não apenas apoiaram "A Aventura", mas também o consideraram o segundo maior filme já feito, atrás apenas de "Cidadão Kane".

Após conquistar sua reputação no início dos anos 60, Antonioni surpreendeu a muitos ao tentar fazer filmes com o apoio de Hollywood. Mais surpreendente, talvez, tenha sido o fato de ter obtido assim seu maior sucesso comercial com "Blow-Up - Depois Daquele Beijo" em 1966.

"Meus assuntos são, de forma geral, autobiográficos", ele escreveu certa vez. "A história é inicialmente construída por meio de discussões com um colaborador. No caso de 'O Eclipse', as discussões levaram quatro meses. O roteiro foi então escrito, por mim mesmo, levando talvez 15 dias. Meus roteiros não são roteiros formais, mas sim diálogos para os atores e uma série de anotações para o diretor. Quando a filmagem tem início, há invariavelmente uma grande quantidade de mudanças. Quando eu chego ao set de uma cena, eu insisto em permanecer sozinho por pelo menos 20 minutos. Eu não tenho idéias preconcebidas de como a cena será feita, mas aguardo para que venham as idéias que me dirão como começar."

O mundo em um filme de Antonioni "é um mundo de pessoas alienadas umas das outras", escreveu Andrew Turner em seu livro "World Film Directors" (1968). "Suas ações não têm significado ou coerência, e mesmo a mais fundamental das emoções, o amor, parece insustentável."

Os entrevistadores descobriram que Antonioni era um entrevistado frio, combativo. "Mesmo quando está contando histórias sobre si mesmo, o rosto de Antonioni mantém sua expressão habitualmente séria", escreveu Melton S. Davis em um perfil de 1964 para "The New York Times Magazine". "Preciso nos modos, conservador no vestir e sereno ao falar, ele poderia ser considerado um banqueiro ou marchand de arte recontando um negócio fracassado."

Mas Antonioni também podia ser graciosamente encantador. Às vezes, disseram entrevistadores, os olhos verdes vivos do diretor se suavizavam e seus lábios se curvavam em um sorriso que alguns descreviam como irônico, outros, como frio.

Michelangelo Antonioni nasceu em 29 de setembro de 1912 em uma família abastada de proprietários de terras em Ferrara, no norte da Itália, uma cidade que descreveu como uma "cidadezinha maravilhosa na planície de Pádua, antiga e silenciosa". Por volta dos dez anos, lembrou sua família, Michelangelo começou a desenhar fantoches e a construir modelos de cenários para eles. Posteriormente, na adolescência, se tornou interessado em pintura a óleo, preferindo retratos a paisagens.

Ele freqüentou a Universidade de Bolonha e obteve um diploma de economia e comércio em 1935. Mas foi na universidade que ele também começou a escrever histórias e peças e a dirigir algumas delas. Ele foi o fundador da trupe teatral da universidade e um de seus principais campeões de tênis. Ele também escreveu críticas severas a filmes de gênero, tanto americanos quanto italianos para o jornal local, e decidiu experimentar dirigir um filme.

Antonioni queria fazer um documentário realista sobre um asilo de loucos local. Os pacientes o ajudaram a montar o equipamento. Então ele acendeu os fortes holofotes.

Os pacientes se descontrolaram, ele escreveu posteriormente, "e seus rostos - que antes estavam calmos, se tornaram convulsivos e devastados. E então foi nossa vez de ficarmos petrificados. O cameraman nem mesmo teve força para parar sua câmera, nem eu fui capaz de dar qualquer ordem. Foi o diretor do asilo que finalmente gritou 'Parem! Apaguem as luzes!' E na sala semi-escura nós podíamos ver uma enxurrada de corpos se retorcendo como se estivessem nos últimos espasmos da agonia da morte".

Antonioni decidiu abandonar o cinema.

Em 1940, aos 27 anos, ele se mudou para Roma para trabalhar como secretário do conde Vittori Cini. O emprego não durou muito. Ele trabalhou como caixa de banco e se juntou à equipe da revista "Cinema", editada por Vittorio, filho de Benito Mussolini. Durante este período, Antonioni deixou sua aversão a dirigir e fez um curso no Instituto de Cinema Experimental. Ele escreveu alguns roteiros, incluindo "Un Pilota Ritorna", em 1942, em colaboração com outro amigo diretor, Roberto Rossellini.

Em 1943, Antonioni voltou a Ferrara e encontrou um marchand local disposto a financiar seu primeiro filme, um documentário chamado "Gente del Po", sobre as vidas miseráveis dos pescadores locais. As forças de ocupação alemãs destruíram grande parte do filme, apesar de alguns pedaços terem sobrevivido e se tornado um curta-metragem de nove minutos que antecedeu "Quando Fala o Coração" de Alfred Hitchcock, no Festival de Cinema de Veneza, em 1947.

FILMES DE ANTONIONI

Arquivo

Monica Vitti em "A Aventura", que ganhou prêmio em Cannes

Divulgação

Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni em "A Noite"

Divulgação

"Deserto Vermelho" traz Monica Vitti novamente como protagonista

Divulgação

Jack Nicholson e Maria Schneider no filme "Profissão: Repórter"



Depois da guerra, Antonioni escreveu mais críticas de cinema e continuou fazendo documentários de curta-metragem, tudo isto enquanto se tornava cada vez mais cético em relação ao movimento neo-realista, que dominava o cinema italiano, e seu foco incansável nas condições sociais precárias. Ele ansiava por olhar além destas coisas, olhar dentro dos corações dos indivíduos. "Seus filmes eram sobre varredores de rua, não sobre varrição de rua", como colocou o crítico de cinema Robert Haller. Mas ninguém lhe permitia fazer os filmes que queria fazer.

"Por dez anos, os filmes me forçaram não a usar idéias, mas palavras vazias, esperteza, senso comercial, paciência, estratagemas", escreveu Antonioni em uma introdução a uma coleção de seus roteiros, de 1963. "Eu sou tão escassamente dotado de tais dons que me recordo de tal período como sendo o mais doloroso de minha vida."

Aos 38 anos, Antonioni encontrou apoio para seu projeto mais ambicioso, de ficção, "Crimes da Alma" ("Cronaca di un Amore"). Sobre um homem e uma mulher tramando matar o marido desta, ele provou ser o primeiro exemplo da abordagem de Antonioni. No filme, o marido morre, mas não se sabe se foi assassinado, cometeu suicídio ou morreu por acidente. Toda esta trama então desaparece e o filme passa a se concentrar nas emoções dos amantes.

Assim como em filmes posteriores de Antonioni, os cenários eram desoladores, as cenas compostas de forma exagerada, as tomadas durando um pouco mais que o necessário. O filme conquistou o Grande Prêmio Internacional do Festival de Punta del Este em 1951.

Em 1954, seu casamento de 12 anos com Letizia Balboni acabou. Ela contou posteriormente aos entrevistadores que o diretor tinha se tornado cada vez mais distante. "Nós vivíamos em silêncio", ela disse. "Nós chegamos ao ponto em que nos comunicávamos por meio dos personagens que ele criava e sobre os quais queria meu conselho. Ele só tem um meio de se expressar: seu trabalho. O que ele faz é com que seus atores vivam as crises emocionais em seus filmes, vivendo as crises de sua própria vida".

Antonioni mergulhou em profunda depressão. Sua insônia piorou. Ele freqüentemente passava as primeiras horas da madrugada escrevendo roteiros.

Em 1955, no auge de sua crise, Antonioni realizou seu primeiro triunfo artístico importante. "As Amigas" ("Le Amiche") era sobre vidas mundanas, sem amor, de um grupo de mulheres de classe média em Turim. Ele conquistou um Leão de Prata no Festival de Cinema de Veneza.

Antonioni começou a experimentar mais com improviso no set de filmagem. "É apenas quando pressiono meu olho contra a câmera e começo a mover os atores que tenho uma idéia exata da cena", ele escreveu. Ele usou esta técnica extensamente em "O Grito" ("Il Grido"), em 1957, provavelmente o mais sinistro de seus filmes.

Foi enquanto filmava "O Grito" que Antonioni conheceu uma jovem atriz de teatro chamada Monica Vitti, que se tornaria sua maior e mais duradoura estrela, e sua companhia quase constante durante grande parte dos anos 60.

Por dois anos, Antonioni não conseguiu encontrar um produtor que o financiasse. Finalmente, em 1959, ele encontrou alguém e concluiu um roteiro que estava na sua cabeça há muito tempo. Mas "A Aventura" quase morreu antes de nascer. Cronicamente carente de recursos, seu produtor acabou abandonando o projeto enquanto Antonioni e os atores estavam trabalhando em uma ilha próxima da Sicília.

"Chegou ao ponto de não haver comida", lembrou Antonioni. "Uma equipe nos deixou. Nós conseguimos outra equipe e ela também partiu. Eu tinha 20 mil metros de filme e os atores permaneceram, de forma que coloquei a câmera no meu ombro e continuei filmando". No final, um novo produtor apareceu.

"A Aventura" provou ser o ponto de virada de sua carreira e amplamente considerada a obra-prima de Antonioni.

Como acontece na maioria dos filmes de Antonioni, ele se concentra nas vidas confortáveis, debilitadas, de italianos abastados, neste caso um grupo de amigos em uma viagem de iate. Sem aviso, durante uma visita a um atol, um deles, uma mulher emocionalmente perturbada chamada Anna, simplesmente desaparece. Ela teria se afogado porque seu amor, Sandro (Gabriele Ferzetti), parecia sem pressa para se casar com ela? Teria se atirado de um penhasco em um acesso de tédio? Teria sido engolida pelo tubarão que disse ter visto? Ou teria fugido em outro barco?

A pequena ilha é revistada. Chove. A polícia chega. Então, gradualmente, Sandro desenvolve uma atração pela melhor amiga de Anna, Claudia (Vitti). Ela resiste, então cede a ele. No final, eles esquecem totalmente Anna. A busca é abandonada. Sandro trai Claudia sem motivo aparente. Nós nunca descobrimos o que aconteceu com Anna.

Em "A Aventura", a técnica singular de Antonioni pode ser vista em sua plenitude. "O senso dominante de alienação transmitido por 'A Aventura' é tanto produto do estilo do filme quanto de seus eventos ou diálogos", escreveu Turner.

O diretor encontrou rapidamente financiamento para seus próximos dois filmes, que exploravam ainda mais os temas de alienação introduzidos em "A Aventura" e que ele disse posteriormente que deveriam ser vistos como uma trilogia.

Em "A Noite", Marcello Mastroianni interpreta um autor com bloqueio de escritor sofrendo em um casamento sem amor com Jeanne Moreau. Ele conhece uma jovem em uma festa, interpretada por Vitti, que ele acredita personificar a criatividade que o abandonou. O filme conquistou o Urso de Ouro do Festival de Cinema de Berlim, em 1961.

"O Eclipse" tratava mais diretamente dos efeitos alienantes da riqueza material, acompanhando o caso amoroso de uma jovem mulher de gostos simples - Vitti de novo - e um corretor da Bolsa ávido por dinheiro (Alain Delon).

O final do filme é bastante discutido. Abandonando os personagens principais, o filme acaba com uma montagem de vários minutos de duração composta de 58 tomadas, a maioria delas em uma esquina ou perto dela onde os amantes costumavam se encontrar. Água verte de um barril. Os freios de um ônibus chiam. Uma fonte é desligada. Um avião sobrevoa acima. Finalmente, com a esquina escura e vazia, a câmera dá um zoom até a luz branca, aniquiladora, de uma iluminação de rua. Fim.

Antonioni disse que pretendia que o final mostrasse "o eclipse de todos os sentimentos" e o via como uma coda tanto para o filme quanto para toda a trilogia. Mas ele também queria que pessoas diferentes interpretassem sua obra de formas diferentes. "Pode haver significados, mas eles são diferentes para cada um de nós", ele disse a um entrevistador.

Em 1964, Antonioni fez seu primeiro filme colorido, "O Deserto Vermelho" ("Il Deserto Rosso"), com Richard Harris. Ele também era estrelado por Vitti, como uma mulher que se tornava cada vez mais perturbada. Para espelhar seu estado mental, o diretor usou a cor de formas bastante incomuns, fazendo com que as casas e mesmo as árvores fossem pintadas de cores vivas e então mudando estas cores de uma cena para outra.

Em meados dos anos 60, Antonioni era um dos diretores de cinema mais famosos e controversos do mundo; seus filmes eram exibidos regularmente no circuito mundial de festivais e o autor era tema de inúmeros ensaios e artigos de revista. Inevitavelmente, um estúdio de Hollywood, neste caso a MGM, o chamou. Nem tão inevitavelmente, Antonioni aceitou, assinando um contrato de três filmes.

"Blow-Up" foi seu primeiro esforço para o estúdio. Filmado em inglês, com os astros britânicos David Hemmings e Vanessa Redgrave no auge da cena fashion da Swinging London, "Blow-Up" se tornou o maior sucesso do diretor. Também era, estilisticamente, diferente de seus filmes anteriores, com uma trama mais convencional e andamento mais rápido, apesar de ainda fundamentalmente ambíguo.

Após seu sucesso comercial e de crítica, Antonioni viajou para os Estados Unidos para fazer seu primeiro filme de grande orçamento e escolheu o movimento de protesto estudantil como assunto. "Zabriskie Point" (1970) foi o resultado e foi um desastre.

Apesar de alguns críticos estrangeiros terem elogiado o filme, ele foi quase que universalmente atacado nos Estados Unidos. "Para muitos críticos, parecia que o diretor, que começou a década no controle absoluto de seu meio, a estivesse terminando em algo parecido com confusão total", escreveu Turner.

"Zabriskie Point" foi um fiasco de bilheteria para a MGM, um dos maiores fracassos financeiros da época. Antonioni ficou devastado e, de muitas formas, sua carreira nunca se recuperou. Certamente, seu período criativo mais fértil tinha acabado. Ele fez seis filmes nos anos 60, muitos deles considerados obras-primas, mas faria apenas mais três filmes no quarto de século que se seguiu.

Mas Antonioni reconquistou parte de seu respeito anterior junto aos críticos em 1975, com "Profissão: Repórter" ("The Passenger), estrelado por Jack Nicholson como um repórter no Norte da África que assume a identidade de um traficante de armas. O filme termina com a famosa tomada contínua de 10 minutos na qual Nicholson é visto em seu quarto de hotel, esperando para ser morto. A câmera se afasta do quarto e vagueia pelo pátio. Pessoas e objetos entram e saem da cena contínua até a câmera completar o círculo, entrando novamente no quarto de hotel para encontrar Nicholson morto. "'Profissão: Repórter' não deixa dúvida da maestria de Antonioni", escreveu o crítico de cinema David Thomson, que o chamou de "um dos grandes filmes dos anos 70".

Após "Profissão: Repórter", Antonioni anunciou que queria dedicar algum tempo para estudar novas tecnologias e passou cinco anos fazendo isto, até que Vitti pediu para que voltasse à direção com um filme para a televisão italiana em 1980, chamado "O Mistério de Oberwald" ("Il Mistero di Oberwald"). Rodado em vídeo e transferido para filme, ele era substancialmente mais leve que seus trabalhos anteriores. Isto, ele disse, lhe permitiu "escapar da dificuldade do compromisso moral e estético, do desejo obsessivo de se expressar". Ele recebeu uma fita de prata por efeitos visuais no Festival de Veneza em 1980, mas teve pouco impacto internacional.

Antonioni fez seu último filme comercial em 1982, "Identificação de uma Mulher" ("Identificazione di una donna"), sobre um homem que tem um caso com duas mulheres após a morte de sua esposa. Ele conquistou o Grande Prêmio do Festival de Cannes naquele ano.

Em 1985, enquanto trabalhava na adaptação cinematográfica de um conto que escreveu em 1976, Antonioni sofreu um derrame e o projeto foi colocado de lado. Ele se casou no ano seguinte pela segunda vez, com Enrica Fico, e viveram tranqüilamente em um apartamento em Roma. Ela estava ao lado dele quando morreu, informou a agência de notícias italiana "Ansa". Ele não teve filhos.

Após o derrame, Antonioni trabalhou em um documentário da televisão italiana sobre a Copa do Mundo de 1990, mas não trabalhou novamente no cinema até 1995, quando produtores italianos conseguiram lhe tirar da aposentadoria para fazer "Além das Nuvens" ("Al di là delle Nuvole"), baseado em um livro de seus contos. Mas devido à enfermidade de Antonioni, o diretor alemão Wim Wenders o ajudou e foi listado como seu co-diretor.

Desde o derrame, Antonioni tinha dificuldade de falar mais que poucas palavras de uma vez, de forma que grande parte do trabalho foi feito por sua esposa, Enrica, que interpretava energicamente as exigências do diretor. O filme foi estralado por Jeanne Moreau e Jeremy Irons. O ressurgimento de Antonioni levou a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas a lhe conceder um Oscar honorário pelo conjunto da obra em 1995.

Antonioni voltou a dirigir em seus 90 anos. Ele colaborou com Steven Soderbergh e Wong Kar-wai, o diretor de Hong Kong, em uma trilogia sobre amor e sexualidade chamada "Eros", que foi lançada em 2004. Ele também dirigiu um curta chamado "Lo Sguardo di Michelangelo". Para seus defensores, como David Thomson, "o fato do maior cineasta vivo do mundo ser incapaz de trabalhar é um tema adequado para uma de suas meditações".

Para Thomson, "os enigmas da obra de Antonioni estão sujeitos ao tempo da mesma forma que monumentos estão à erosão, e os feitos de alguns filmes podem compensar ou explicar os aparentes, ou iniciais, limites de outros. Por exemplo, 'Profissão: Repórter' nos ajudou a ver o anseio pela fuga e espaço em 'A Aventura' e ilumina a persistência da vida no final de 'O Eclipse'. Eu suspeito que os melhores filmes de Antonioni continuarão crescendo e mudando, como as dunas ao longo dos séculos no deserto. Neste processo, se restarem olhos para ver, ele se tornará um padrão para beleza".

Mas para outros Antonioni permanece não apenas enigmático, mas também inacessível no final.

Um entrevistador lhe pediu para olhar para trás para sua vida. "Em um mundo sem cinema, o que você teria feito?" lhe foi perguntado.

Antonioni respondeu: "Cinema".

* Christine Hauser e Graham Bowley contribuíram com reportagem para este artigo

Tradução: George El Khouri Andolfato

(© UOL Mídia Global)


Autores da Sétima Arte

JOSÉ AUGUSTO LOPES
Repórter

Com o falecimento esta semana dos cineastas Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, reduz-se o número de expoentes do chamado cinema de autor

Para Jean Luc-Godard, diretor de ´Acossado´ e um dos papas da Nouvelle Vague francesa, a expressão ´cinema de autor´ é inapropriada. No caso de aceitá-la, surgiria também a necessidade da criação de rótulos como ´livro de autor´ e ´teatro de autor´. Na concepção de Godard, a definição seria, além de pretensiosa, um tanto indefinida em sua essência.

A maioria dos cinéfilos e críticos discorda da opinião do polêmico cineasta francês. Questiona-se qual outra expressão definiria melhor o estilo inconfundível, original - e facilmente reconhecível - de diretores como Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Luchino Visconti ou Alfred Hitchcock.

O sueco Bergman e o italiano Antonioni, falecidos na semana passada, não se admiravam mutuamente. O primeiro declarava abertamente não gostar dos filmes de Michelangelo por considerá-los ´lentos e cansativos´. Opiniões à parte, nada desmerece o imenso valor e a indiscutível criatividade dos dois diretores, ambos diretamente responsáveis pela consolidação conceitual do cinema como a Sétima Arte.

Nascido na Suécia, em 1918, Ingmar Bergman dirigiu mais de 50 filmes e 125 produções teatrais, legando ao cinema clássicos do porte de ´Morangos Silvestres´, ´Cenas de um Casamento´, ´A Fonte da Donzela´, ´Gritos e Sussurros´ e ´Fanny e Alexandre´. Seu reconhecimento internacional ocorreu em 1956 com ´O Sétimo Selo´, ambientado na Idade Média ao tempo da peste negra. O filme mostra um cruzado à procura de Deus e do sentido da vida, a jogar xadrez com o estranho personagem da Morte. Por essa realização, Bergman ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes.

Semelhanças e diferenças

Embora em grande parte de suas criações a obra de Bergman priorizasse o diálogo para expor os grandes impasses e conflitos do relacionamento humano, não apenas entre um homem e uma mulher, como fez de maneira brilhante em ´Cenas de um Casamento´, mas também entre outros tipos de aproximação, a exemplo de uma mãe (Ingrid Bergman) e sua filha (Liv Ullmann), no magnífico ´Sonata de Outono´, um de seus principais filmes era significativamente denominado ´O Silêncio´.

Bergman é considerado, por boa parte da crítica internacional, como o mais perfeito de todos os cineastas. Dele disse o também diretor Woody Allen: ´É provavelmente o maior artista do cinema, desde a invenção da câmera cinematográfica´. Apesar de perfeccionista e amante do rigor nos detalhes, Ingmar jamais conseguiu ser supérfluo e nunca fez uso de desnecessários maneirismos barrocos. As imagens e sons se combinam à perfeição em suas obras-primas, e sempre abordam, principalmente, a tragédia da dificuldade de comunicação e integração entre as pessoas.

Já Michelangelo Antonioni (1912-2007) caracterizou-se como o grande encenador da solidão em si mesma, com seus planos longos, narrativa sem pressa, caminhadas solitárias e personagens na interminável busca do ´outro´. Entre seus mais famosos filmes, estão ´O Grito´, ´A Aventura´ e ´A Noite´ (considerados a trilogia da alienação), ´Blow-Up´, ´Zabriskie Point´, ´O Deserto Vermelho´, ´Profissão: Repórter´. Apesar de se proclamar um intelectual marxista, persistem sérias dúvidas a respeito de suas reais convicções políticas. Ao contrário dos neo-realistas italianos Roberto Rossellini e Vittorio De Sica (em sua primeira fase), e ainda mais distante do assumidamente esquerdista Pier Paolo Pasolini, que abordavam em sua obra personagens marginalizados pela sociedade, Antonioni dava preferência aos tipos da elite e da burguesia urbana.

Luchino Visconti, outro iniciado no neo-realismo, progressivamente acrescentou aos temas sociais do início de sua carreira (´A Terra Treme´) o requinte das próprias origens nobres, expondo de maneira sofisticada (´O Leopardo´, ´Sedução da Carne´), mas sempre enfaticamente crítica, os problemas fundamentais do homem em face da sociedade, geralmente injusta e eivada de discriminações, na qual ele está inserido.

Mesmo vitimado por um derrame cerebral, há mais de 20 anos, Michelangelo Antonioni continuou produzindo. Seu último filme foi ´Eros´ (2004), em parceria com Steven Soderbergh e Kar Wai Wong. A despedida de Ingmar Bergman deu-se com ´Sarabanda´ (2003), um drama familiar muito elogiado pela crítica.

Estilos autorais

A expressão ´cinema de autor´ consolidou-se durante o auge da Nouvelle Vague francesa (alguns afirmam haver sido usada pela primeira vez pelo crítico André Bazin). Famosos diretores como François Truffaut (´Os Incompreendidos´), Alain Resnais (´Hiroshima, Meu Amor´), Jean-Luc Godard (´A Chinesa´), Louis Malle (´Ascensor para o Cadafalso´) e Claude Chabrol (´Os Primos´), entre outros, imprimiram em suas criações a marca característica da liberdade de filmar, isenta dos convencionalismos e padrões estereotipados vigentes na época.

Certos estudiosos da Sétima Arte afirmam, entretanto, sempre ter existido o cinema autoral. D. W. Griffith (1875-1948) é reputado como a figura provavelmente mais importante do cinema estadunidense e o realizador que mais influenciou o cinema em todo o mundo. Seus principais filmes foram ´O Nascimento de Uma Nação´ (acusado de ter conteúdo racista), ´Intolerância´ e ´Lírio Partido´, rodados na segunda década do século passado, ainda na fase do cinema mudo.

Griffith mostrou a importância do Primeiro Plano e da montagem paralela de ações diferentes, dando fim à imobilidade da câmera e criando a necessidade de um enquadramento rigoroso. Em síntese, criou a linguagem e a gramática do cinema.

Em ´Cidadão Kane´, Orson Welles quebrou, enfaticamente, o desenrolar cronológico da narrativa. Inovou, também, no plano-seqüência e na profundidade do campo visual, criando um inédito senso de perspectiva na tela.

São também inconfundíveis os estilos de Fellini, com seu exuberante universo onírico; a poética da crueldade sempre presente em Pier Paolo Pasolini. E ainda a carga expressivamente original do tratamento cinematográfico desenvolvido por Murnau (´Aurora´), Alfred Hitchcock (merecidamente chamado de ´mestre do suspense´), Dreyer (´A Paixão de Joana D´Arc´), Akira Kurosawa (´Rashomon´, ´Os Sete Samurais´) e o sempre citado russo Sergei Eisenstein (´O Encouraçado Potemkim´, ´Ivan, o Terrível´), com seus expressionistas arroubos visuais de intensa plasticidade, embasados em forte convicção política e até hoje imitados por vários cineastas, mais de 50 anos após sua morte. Também é imprescindível citar Stanley Kubrick (´2001 - Uma Odisséia no Espaço´, ´O Iluminado´, ´Doutor Fantástico´), autor de genial coerência, a despeito da sua sistemática abordagem de temas bastante diversificados.

Outro cineasta pleno de personalidade própria é o americano John Ford (´No Tempo das Diligências´, ´Rastros de Ódio´), mestre do gênero faroeste (´western´). Personalíssimo pela viva integridade de suas panorâmicas, geralmente focadas na paisagem agreste do antigo Oeste dos EUA, Ford sempre foi fascinado pelos sentimentos da coragem e do medo. Ele também imprime suas características autorais numa rara economia de expressão e pelos planos fixos, sempre filmados da distância exata.

Comentários adicionais não são necessários para Charles Chaplin (´Luzes da Cidade´, ´Um Rei em Nova York´), pois ele foi, na abrangência mais ampla do conceito, o ´autor´ absoluto de todos os seus filmes, nos quais era o roteirista, intérprete, produtor, diretor e criador da trilha musical.

Autores de hoje

Haja ou não o ´cinema de autor´, quais os diretores, ainda atuantes, cujas realizações revelariam de pronto a ´griffe´ de seu criador? O talento na ampla utilização de todos os recursos enriquecedores de uma narrativa cinematográfica é a característica marcante de Martin Scorsese, perfeccionista na mais ampla acepção do termo. O universo multicolorido e ´kitsch´ de Pedro Almodóvar também o destaca como um autor singular. Há ainda Francis Ford Coppola, diretor de ´O Poderoso Chefão´, unanimemente considerado um dos melhores filmes de todos os tempos.

Roman Polanski revelou-se excelente e original em ´A Faca na Água´, ´O Bebê de Rosemary´ e ´A Dança dos Vampiros´, mas parece haver perdido a inspiração e, mesmo com uma aparente retomada de estilo no recente ´O Pianista´, esteve irreconhecível em ´Oliver Twist´. Merecem também ser citados Emir Kusturica, Spike Lee, Bertolucci, Wim Wenders, Herzog... Mas, na verdade, nada há de absolutamente empolgante, à altura, por exemplo, de um Fritz Lang, de um Otto Preminger ou de um Robert Altman. Até mesmo os meninos e meninas de ouro do Clint Eastwood já apresentam um certo sabor ´déjà vu´.

Woody Allen acerta aqui e ali, porém hoje se repete muito e está longe do cineasta que um dia realizou ´Annie Hall´ e ´Manhattan´. Talvez apenas Coppola encontre-se à altura daqueles que construíram um conjunto de obras além da dimensão restrita de uma competência circunstancial.

Todo cinéfilo convicto, apesar de tentar enganar-se, sabe bem no íntimo que o cinema segue o caminho ao qual nem mesmo a Grande Arte logrou escapar. Da mesma forma que os melômanos sentem que não haverá um outro Verdi, e os artistas plásticos já desistiram de esperar por um herdeiro do imensurável talento de Picasso, os leitores brasileiros ainda esperam o milagre de um novo Guimarães Rosa e os fãs da música erudita aguardam o reflorescer da Sagração da Primavera.

O resto é suspirar de inelutáveis saudades por Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. E reverenciar, com os devidos louvores, o indiscreto charme de Luís Buñuel, a ousadia alucinada de Glauber Rocha, o senso de humor cortante de Billy Wilder. Se possível, revendo o inigualável ´Amarcord´, expressão que significa, no genuíno dialeto de Fellini, as três palavrinhas mágicas do universo proustiano. ´Eu me lembro...´.

(© Diário do Nordeste)


Fotogramas da incomunicabilidade

A obra de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni foi marcada pelo silêncio, a solidão, a incomunicabilidade e a efemeridade da vida

A morte, ao retirar de nosso convívio artistas como Ingmar Bergman e Michelangelo Antinioni, criadores da arte e da inspiradores da capacidade de criação do homem, faz bater uma reflexão sobre o sentido e a efemeridade da existência. Impossível não sentir a melancolia, a lágrima, o pesar. Não o lamento, pois há algo de nobre na morte. Acalentam alguns que a Ciência, em futuro indefinido, deverá dar um xeque-mata na morte, como tenta desesperadamente o bergmaniano Antonius Block (Max Von Sydow) em ´O Sétimo Selo´. O tempo, até lá, dirá se verdadeiro ou falso.

Bergman e Antonioni, nascidos na segunda década do século passado, nos deixam na alvorada do novo milênio. Antonioni, aos 94, Bergman, aos 89. Em comum em suas filmografias, a antecipação aos dramas humanos a partir das mudanças regidas pelos anos 60.

Ernest Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni tratavam de temas distintos e comuns como criadores da arte. O mesmo caminho: praticaram o cinema de autor. O sueco, formado em artes pela Universidade de Estocolmo, adotou a dramaturgia, o teatro e o cinema, onde iniciou a carreira imediatamente ao pós-guerra, ainda em 1945. O italiano trocou a economia, pela qual se formara na Universidade de Bolonha, pela crítica de cinema, e nele ingressou ainda durante a 2ª. Guerra Mundial, em 43, com documentários, embora o primeiro longa ´Crimes D´Alma´, só viesse oito anos depois.

Enquanto Bergman, filho de pai protestante com o qual manteve uma relação de amor e ódio, tratava com certa obsessão de temas como a morte e a possibilidade da existência de Deus, questionando o criador que colocara e abandonara o filho à própria sorte num planeta em meio milhões de semelhantes completamente diferentes entre si, Antonioni, filho de modesta família de classe média, explorava, como nenhum outro, a incomunicabilidade e o vácuo entre as pessoas. Bergman via a diversidade humana como a angústia da existência, Antonioni a via como um fosso infinito entre os semelhantes. Em comum aos dois, a solidão e o silêncio.

Condição humana

Bergman e Antonioni adentraram ao estudo da condição humana por meio diversos. Bergman explora e busca entendê-la através das questões metafísicas e existenciais. Bergman situa na mulher esse ponto de partida. Antonioni, por sua vez, desce às relações entre as pessoas, captura o vazio da vida em sociedade, revela a incapacidade do casamento em unir as pessoas, emerge a solidão como a companheira humana e questiona o sentido de realidade - expressada pela fotografia em ´Blow Uo - Depois Daquele Beijo´.

Curiosamente, a busca de ambos segue um único rumo: entender a existência humana. Bergman e Antonioni exploram, buscam, questionam, reviram os três elementos: o homem, a sociedade e o sentido da existência. Esbarram na realidade e situam na limitada condição humana as suas inquietações: somos humanos, frágeis e imperfeitos. É por esta imperfeição que Bergman se inquieta com Deus. Como pode um Deus perfeito criar um filho tão imperfeito, complicado, diversificado, capaz de amar e odiar, de amar e de trair, de amar e manipular, de amar e de matar? Antonioni não se importa com Deus, mas com as pessoas e suas condições, as paixões, a solidão, a fragilidade das relações, a infidelidade, a política e a relevância da cor na realidade.

A política e a partida

A política não se ausenta nas obras dos cineastas. Curiosamente, a grande criação política de Bergman, ´O Ovo da Serpente´ (79), uma angustiante reconstituição do ascensão do nazismo, é menosprezada por grande parte da crítica, talvez pela presença de David Carradine. Uma injustiça.

Antonioni tem em ´Zabrieskie Point´ (69), ´O Passageiro: Profissão Repórter´ (75) e ´O Mistério de Oberwald´ (80) seus exemplares políticos. O primeiro retrata o movimento da contracultura nos EUA através de um casal, uma secretaria idealista e um militante radical; no segundo, Jack Nicholson, um jornalista, assume a personalidade de outra pessoa; e no terceiro, Mônica Vitti (na época casada com o diretor) refugia-se num castelo após a morte do marido e inimigos políticos planejam o seu assassinato. Para Antonioni, ´O Passageiro´ é sua obra mais bem acabada, tanto ´estilística´ quanto ´política´.

Antonioni e Bergman tiveram serenas saídas deste mundo. Bergman, segundo a filha Eva, uma morte ´calma e suave´ na ilha sueca de Faro, onde vivia sozinho desde 1995 quando perdeu a quinta esposa, a condessa Ingrid Karlebo von Rosen. O mestre italiano tranquilamente, em casa, na companhia da mulher, Enrica Fico. Deixam como herança, obras de arte, as quais, no entanto, poderemos ter em casa e apreciá-las a qualquer momento. Não poderiam deixar legado melhor à posteridade.

PEDRO MARTINS FREIRE
Crítico de Cinema

INGMAR BERGMAN

Quem quiser conhecer uma obra básica de Bergman, a recomendação é começar por ´Morangos Silvestres´ (57) e ´Sorrisos de uma Noite de Amor´ (55), passando para obras mais densas como ´A Fonte da Donzela´ (59), ´O Silêncio´ (62), ´Quando Duas Mulheres Pecam´ (66), ´A Hora do Amor´ (71), ´Gritos e Sussurros´ (73) e os obrigatórios ´Cenas de um Casamento´ (76) e ´Fanny & Alexander´ (82).

ANTONIONI

Recorra-se à sua obra básica, a trilogia ´A Aventura´ (59), ´A Noite´ (60) e ´O Eclipse´ (61) e os obrigatórios ´Deserto Vermelho´ (64), ´Blow Up´, ´Zabriskie Point´ (79), ´Passageiro: Profissão Repórter´ (75), ´O Mistério de Oberwald´ (80) e ´Identificação de uma Mulher´ (82), além, evidentemente, de ´Além das Nuvens´ (95), feito com o auxílio de Wim Wenders, após o derrame que, ironicamente, tirou do poeta da incomunicabilidade a capacidade de falar.

(© Diário do Nordeste)

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