Logo após a morte do sueco
Ingmar Bergman, cinema perde o diretor italiano
que rompeu com o neo-realismo em obras como "A
Noite" e "Blow Up"; enterro será amanhã, em
Ferrara, na Itália
DA REPORTAGEM LOCAL
Sentado ao lado da mulher, Enrica Fico, em
sua casa em Roma, o cineasta italiano
Michelangelo Antonioni morreu na noite de
segunda, aos 94.
Mestre do cinema moderno, Antonioni promoveu
uma ruptura com o neo-realismo italiano desde
seus primeiros longas, realizados na década de
50, até a consolidação de seu renome
internacional, com "Blow Up -Depois Daquele
Beijo" (1966).
Antonioni transformou em marca de seus filmes
a abordagem das angústias individuais nos
relacionamentos e da incomunicabilidade entre os
amantes, em oposição à ênfase na temática social
neo-realista. A característica "intimista" de
Antonioni lhe valeu a alcunha de "o poeta do
tédio".
Nascido na alta burguesia italiana, Antonioni
formou-se em economia e comércio na Universidade
de Bolonha.
Transferiu-se para Roma em 1939, para estudar
no Centro Experimental de Cinema e tornou-se
crítico colaborador da revista "Cinema".
Rossellini
Ele se aproximou do diretor Roberto
Rossellini (1906-77), para quem roteirizou "Un
Pilota Ritorna" (o retorno de um piloto), de
1942, ano em que foi assistente de direção do
francês Marcel Carné (1909-1996), no longa "Os
Visitantes da Noite".
Em seu primeiro longa de ficção, "Crimes
d'Alma" (1950), dirigiu Lucía Bosé, que ontem
lamentou a morte do cineasta, afirmando que ele
era um homem "maravilhoso", embora "muito duro e
exigente" com toda a equipe nas filmagens.
Em Monica Vitti, o cineasta encontrou sua
atriz-fetiche. Estrela da trilogia formada por
"A Aventura", "O Eclipse" e "A Noite", Vitti foi
também companheira de Antonioni, que se casou
duas vezes -com Letizia Balboni, em 1942, e com
Enrica Fico, em 1986.
Com prestígio confirmado na Europa por
múltiplos prêmios, Antonioni vai para os Estados
Unidos, onde filma seu maior sucesso, "Blow Up"
(1966), baseado em conto do argentino Julio
Cortázar sobre um fotógrafo que registra
involuntariamente um crime.
Em conseqüência de um derrame, em 1985, ele
tinha restrição de movimentos e da fala.
O corpo de Antonioni ficará hoje exposto em
câmara ardente, na Prefeitura de Roma. O enterro
está previsto para amanhã, em sua cidade-natal,
Ferrara, no Norte da Itália.
(Com agências
internacionais)
(©
Folha de S. Paulo)
Silêncio predomina em obra e
vida
Antonioni perdeu capacidade da fala em
1985, mas se expressava "além das palavras",
como em seus filmes, segundo a mulher
Episódio de "Eros" é última obra de ficção do
diretor; produtor cortou parte de uma cena de
masturbação, "excessivamente" ousada
DA REPORTAGEM LOCAL
As artes plásticas, sobretudo a construção de
colagens e móbiles, passaram a ser a principal
atividade artística do cineasta italiano
Michelangelo Antonioni, desde 1985, quando ele
sofreu um derrame.
Após o acidente cerebral, Antonioni ficou
praticamente sem fala e com movimentos
restritos, mas perfeitamente lúcido.
Ele se locomovia em cadeira de rodas e tinha na
mulher, Enrica Fico, 41 anos mais jovem do que
ele, uma "tradutora" para suas conversas.
Quando Antonioni recebeu um Oscar pela carreira,
em 1995, Enrica observou que expressar-se
"através do silêncio ou além das palavras"
sempre foi rotina para o cineasta, como é
evidente em sua obra.
Protagonista de "Passageiro -Profissão:
Repórter", o ator Jack Nicholson concordou: "No
vazio, nos espaços silenciosos do mundo, ele
encontrou metáforas que iluminam os lugares
silenciosos de nossos corações e descobriu neles
uma estranha e terrível beleza".
O último longa-metragem de Antonioni, "Além das
Nuvens", foi realizado em 1995, sob a supervisão
do diretor alemão Wim Wenders. A presença de
Wenders no set de filmagens foi uma exigência
dos investidores alemães na produção.
Wenders era a "garantia" de que o filme seria
concluído, ainda que a saúde frágil de Antonioni
o deixasse impossibilitado de fazê-lo.
"Eros"
O cineasta arquivou diversos projetos de longas
que pretendia rodar após "Além das Nuvens", mas
realizou o episódio "A Perigosa Linha das
Coisas" no filme coletivo "Eros", com o qual
retornou ao Festival de Veneza, onde havia
obtido o Leão de Ouro em 1963, por "O Deserto
Vermelho".
Para dirigir "Eros", Antonioni contou com a
ajuda de Enrica. Os demais episódios do filme
são assinados pelo norte-americano Steven
Soderbergh ("sexo, mentiras e videotape") e pelo
chinês Wong Kar-wai ("Amor à Flor da Pele").
O trecho de Antonioni é o mais ousado dos três e
foi o único que sofreu cortes, a pedido do
produtor. Três minutos de uma cena de
masturbação feminina foram eliminados.
Em Veneza, antes da apresentação de "Eros",
Kar-wai ressaltou a influência de Antonioni no
cinema: "Ele é a luz-guia para mim e para os
outros cineastas de minha geração".
O cineasta italiano, que se considerava "alguém
que tem coisas a mostrar, mais do que a dizer",
disse que, se não tivesse seguido a carreira de
diretor, teria sido "arquiteto ou pintor".
Embora tenha conquistado prestígio desde o
início de sua carreira e fosse reconhecido como
um mestre do cinema desde os anos 60, os filmes
de Antonioni jamais foram associados ao sucesso
de público.
Em 1980, numa entrevista para uma publicação
italiana, o diretor ouviu a pergunta: "Para quem
o sr. faz filmes?".
Respondeu: "Faço filmes para um espectador ideal
que é exatamente o seu diretor. Eu jamais
poderia fazer algo contrário ao meu gosto, com o
objetivo de ir ao encontro do público.
Francamente, não posso fazer isso, mesmo que
muitos diretores o façam. Além do mais, de que
público estamos falando? O italiano? O
americano? O japonês? O francês? O britânico? O
australiano? Eles são todos diferentes entre
si". (Com agências internacionais)
(©
Folha de S. Paulo)
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Roberto Rossellini fundou a moderna escola
italiana sobre a crença de que o cinema é a arte
capacitada a captar a realidade. Foi esse o
princípio do que se chamou neo-realismo.
Quando se perguntou certa vez a Michelangelo
Antonioni se ele negava os princípios
neo-realistas, ele disse que não, que fazia um
"neo-realismo sem bicicleta" (alusão a "Ladrões
de Bicicletas, de Vittorio de Sica). Em outras
palavras, se Rossellini acreditava no poder da
câmera de fixar a realidade, coube a Antonioni
introduzir uma nova questão: o que é a
realidade?
Com Antonioni, a partir daí, o cinema desloca-se
decisivamente da esfera da ação -que Rossellini
já havia rarefeito- para a do tempo. O tempo
substitui francamente a ação: ele é aquilo que
faz e desfaz as coisas.
Com isso, inicia-se também uma busca desse real,
e talvez seja ela que tenha feito de Antonioni
um mestre das distâncias, aquele que mais se
preocupou em captar não as pessoas, mas o ar que
existe entre elas.
Quem mais poderia filmar
aquela cena de "A Noite" (1961) em que Jeanne
Moreau, andando sozinha pela cidade, depara com
fogos de artifício? Imediatamente ela chama seu
amante, Marcello Mastroianni. Ele vai até o
local, só para constatar que já não há fogos.
Em "O Eclipse" (1962), a Bolsa de Valores cessa
a atividade por um minuto em homenagem a um
corretor que havia morrido. Durante um minuto
não se escuta nada. Quando soa a sineta
anunciando o final, volta o ruído infernal do
pregão.
A cada filme, o cineasta parece perguntar-se o
que é real, imaginário ou alucinação. Diante das
calamidades do pós-guerra, Rossellini se
perguntava "por que isso acontece?". Antonioni,
mais novo, olhava esse mesmo mundo (ou quase o
mesmo: já é uma Itália recuperada da guerra) e
sua questão era: "o que, afinal, acontece?"
Para Rossellini, católico, a baliza desse mundo,
por terrível que fosse, era Deus. Para
Antonioni, materialista, Deus estava morto. O
homem, portanto, está livre. Mas a que leva a
liberdade? À crise. Antonioni filmou, quase
sempre, crises, momentos de passagem (inclusive
passagem da vida à morte, uma constante nada
gratuita).
Depois de sua célebre trilogia, Antonioni
acrescentou as cores a seu vasto repertório de
imagens, em "O Deserto Vermelho" (1964) -lançado
no Brasil como "O Dilema de uma Vida"-, antes de
partir para o exterior, Inglaterra, onde Vanessa
Redgrave tomou o lugar de sua ex-mulher Monica
Vitti como estrela em "Blow Up" ("Depois Daquele
Beijo", 1966).
A Inglaterra de Beatles e Rolling Stones talvez
lhe parecesse o lugar ideal para dar seqüência
às idéias de outro mestre, Alfred Hitchcock, que
em "Janela Indiscreta" mostrara como é delicada
a linha que separa a realidade da imaginação.
O fotógrafo de "Blow Up", ao contrário do de
"Janela Indiscreta", capta a realidade com sua
câmera. Ele passa da fabulação à materialidade:
tem provas do assassinato que captou. Ou será
que o crime teria sido apenas uma idéia
construída pela montagem de imagens?
Se as dúvidas a respeito do real prosseguiram
nas décadas seguintes, com "Profissão: Repórter"
(1975) ou "Identificação de uma Mulher" (1982),
até seu último filme Michelangelo Antonioni
tratava de uma arte capaz de se aproximar como
nenhuma outra das coisas, das pessoas, do tempo,
mas que quanto mais chega perto, menos nítida se
torna, mais instaura a incerteza. Com Antonioni,
já não existem certezas.
O homem, que mesmo em Rossellini ainda é senhor
do espaço, agora tateia um mundo que não domina,
onde o sentido já não está dado, onde é preciso
buscar, sem saber ao menos o que buscar. A crise
do homem moderno passa por esse cinema moderno,
do qual Antonioni foi um dos grandes mestres.
(©
Folha de S. Paulo)
REPERCUSSÃO
ARNALDO JABOR, cineasta, em artigo na
Ilustrada de 9/08/1994
"Ele é uma espécie de Albert Camus do cinema.
Como ele, Antonioni teve uma revolta contra o
real. Não se conformou com as convenções de
Hollywood que determinavam o ritmo de nossas
vidas. (...)Antonioni nos libertou de um
mecanismo de defesa contra a morte, que o ritmo
dos americanos inventou. A morte fica nua em
Antonioni, o mistério, o suspense, o
desaparecimento das pistas, a falta de motivo
para a tragédia."
CARLOS REICHENBACH, cineasta
"O cinema moderno perde um dos seus ícones, uma
das figuras essenciais da modernidade no cinema.
O cinema mundial, o cinema como arte moderna, dá
um salto fenomenal com o olhar do Antonioni. Não
quero atrair o olhar da dona Fatalidade, mas
agora, depois das mortes de Bergman e de
Antonioni, só sobrou o Godard entre os grandes
do cinema moderno. Que tenha muitos anos de
vida. E não me ligue amanhã para dar outra
notícia desse tipo, pelo amor de Deus."
DOMINGOS OLIVEIRA, cineasta
"O Michelangelo [Antonioni] foi o grande poeta
do tédio. Ele é parte de uma geração que trouxe
para a discussão cotidiana temas que não
pertenciam a ela, dados culturais que mudaram as
pessoas. Ele trouxe para a minha geração o tema
da náusea, do tédio, foi muito importante. Era
um cineasta de uma humanidade candente. É
interessante observar que esses grandes
cineastas estão morrendo tarde, o que parece
mostrar que o bom caráter e a honestidade
intelectual rendem frutos."
HECTOR BABENCO, cineasta
"Não está ficando ninguém, estão indo todos os
mestres, todas as grandes referências. Para mim,
o Antonioni era o perfeito contraponto ao
neo-realismo do [cineasta italiano Luchino]
Visconti. Cresci tendo na mão esquerda o
fascínio pelo Visconti e, na direita, o
minimalismo, o silêncio e a profundidade
existencial do Antonioni."
JÚLIO BRESSANE, cineasta
Eu estive com ele algumas vezes, inclusive
recebi-o em casa aqui no Brasil, fiz um filme
chamado "Antonioni e Hitchcock - A Imagem em
Fuga" e mostrei a ele. Estou bastante chateado.
"Crônica de um Amor" (1950) e, principalmente,
"A Dama sem Camélias" (1953) já antecipavam todo
o cinema moderno. Foi um dos cineastas mais
estudados e admirados da história, mas, apesar
do esforço e de algumas tiradas de gênio,
infelizmente deixou pouca influência no cinema
de hoje, que teve uma queda grande de
substância, vive submetido a uma grande tirania.
É um dia de luto para o cinema.
NICOLAS SARKOZY, presidente da França
"Antonioni foi um poeta da elegância
estilística, do rigor e da pureza. Sua obra está
marcada pela dificuldade das relações entre os
indivíduos e o mundo. Ele acaba de se unir a
Ingmar Bergman além das nuvens."
JOSÉ MANUEL BARROSO DURÃO, presidente
da Comissão Européia
"A morte de Michelangelo Antonioni deixa a
Europa sem um de seus grandes artistas, alguém
que se destacou no desenvolvimento do cinema na
Europa e no mundo e cuja busca contínua por
novas formas de expressão gerou obras-primas
como "Blow Up" e "Zabriskie Point"."
GILLES JACOB, presidente do Festival
da Cannes
"Ele foi um alquimista do íntimo, o maior
aquarelista do coração que o cinema moderno já
conheceu."
THEO ANGELOPULOS, cineasta grego
"[A morte de Antonioni e Bergman] é algo
simbólico. Ambos haviam alcançado a plenitude em
sua vida e em suas obras."
(©
Folha de S. Paulo)
Análise
Diretor de "A Noite" apostou nos tempos
mortos para retratar o mal-estar burguês em seus
filmes
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Uma segunda-feira que registra a desaparição de
Ingmar Bergman e de Michelangelo Antonioni não é
um dia de luto apenas para os cinéfilos. A morte
sucessiva destes dois gigantes marca também o
fim de um tempo, especificamente o século 20,
mas não de seus problemas.
Oriundos de uma mesma geração e alçados à cena
pública quase simultaneamente, os dois diretores
conseguiram juntos levar ao cinema a
transformação pela qual passava o homem
ocidental depois da barbárie da Segunda Guerra.
Bergman o fez através das subjetividades.
Antonioni escolheu a objetividade.
A escolha da objetividade como núcleo da
representação da crise do homem moderno decorre
das origens cinematográficas de Antonioni, junto
aos pioneiros do neo-realismo italiano. Passado,
porém, o momento em que a proeminência do tema
social era mais relevante, ele se afirma como
diretor de longas com uma visada cujo foco se
atém ao individual.
Tratava-se, agora, de prosseguir as conquistas
estéticas do neo-realismo (um modo de
representação da realidade assumidamente
crítico) deixando de lado a bicicleta.
Em referência ao clássico "Ladrões de
Bicicleta", de Vittorio de Sica, Antonioni
escreveu em 1958: "Hoje, que eliminamos o
problema da bicicleta, é importante ver o que há
no espírito e no coração desse homem de quem
roubaram a bicicleta, como ele se adaptou, o que
sobrou nele de todas as suas experiências".
Desde o início, estava sendo gestada em sua obra
uma nova estética, na qual a psicologia não se
perde em discursos verbais, mas encontra lugar
na forma como o diretor agencia sons e imagens.
Os chamados tempos mortos, constantes em seus
filmes, se intensificam com a presença de
espaços vazios, modo de explicitar a situação de
crise vivida por seus personagens.
A desaparição da protagonista de "A Aventura", a
perambulação de Jeanne Moreau em terrenos
baldios em "A Noite" e as imagens urbanas
desertas em "O Eclipse" são todos signos do
mal-estar moderno: o do indivíduo burguês, que,
mesmo mergulhado no conforto, na elegância ou
nas distrações da sociedade de consumo, não
consegue mais reencontrar sua alma ou algo
equivalente que o preencha de sentido.
Obsessão pelo deserto
Esse processo de esvaziamento se consolida ainda
mais na fase seguinte da obra de Antonioni,
quando a obsessão pelo deserto é reiterada como
tema ou cenário simbólico em filmes como
"Deserto Vermelho", "Zabriskie Pont" e
"Passageiro: Profissão Repórter".
Nesses trabalhos, Antonioni ressignificou, aos
nossos olhos, o termo "niilismo", essa "vontade
de nada/nada da vontade" da qual as gerações
Prozac/ecstasy que vieram em seguida continuam
tentando escapar.
Por isso, não soa exagerada a definição de
Glauber ao escrever que "no século 19,
Michelangelo seria filósofo como Hegel e talvez
tivesse a mesma importância para o mundo de
então como teve o filósofo. Hoje, substituindo a
linguagem escrita pela imagem & som,
Michelangelo usa o cinema como instrumento de
especulação ao mesmo tempo em que funda, no
filme, o estilo de sua moral".
Morto o artista, sua obra prossegue viva,
contaminando, pelo modo de representar, o olhar
de outros cineastas. Todo o Wim Wenders dos anos
70 atesta essa herança, depois transferida para
parte do cinema oriental, na obra de diretores
como os chineses Wong Kar-wai e Jia Zhang-ke,
além de Tsai Ming-liang, de Taiwan.
Nesses vínculos, não é tanto a referência
consagrada que importa e, sim, a necessidade de
mostrar que o homem moderno pode estar morto com
o século 20, mas nosso mal-estar no mundo não se
prende a mudanças do calendário.
(©
Folha de S. Paulo)
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
A câmera se afasta do corpo de Jack Nicholson,
deitado na cama de um hotel vagabundo em um
vilarejo espanhol; passa pela janela do quarto,
passeia pelo pátio onde carros estão
estacionados e se detém em alguns personagens,
antes de retomar seu movimento lento, quase
imperceptível, para então voltar ao quarto e ao
corpo do ator -cujo personagem, agora, está
morto.
Essa imagem, que está nos minutos finais de
"Passageiro: Profissão Repórter" (1975),
tornou-se uma espécie de síntese do cinema
moderno -além de fetiche de muitos cinéfilos,
cineastas e técnicos, que até hoje tentam
desvendar seu virtuosismo técnico (a câmera,
entre outra proezas, "atravessa" uma cerca sem
que haja cortes).
Mas essa imagem é emblemática não só por ser um
plano-seqüência virtuoso, na grande tradição
inaugurada por Orson Welles, mas principalmente
por conter em si as características mais
importantes do cinema moderno: a imagem que
incorpora o tempo (recusando o corte da
montagem) e o chamado extra-campo, ou seja,
aquilo que está fora do quadro.
A "informação" mais importante desse plano para
a compreensão narrativa do filme está fora da
imagem. É o som do tiro que mata o personagem de
Nicholson. Antonioni chegou a dizer que só criou
esse plano para não precisar mostrar o
assassinato: "A idéia de vê-lo morrer me
aborrecia".
Um tiro que não se vê e que dá fim à vida
"dupla" do personagem central, um repórter que,
lá no começo do filme, assumiu a identidade de
um traficante de armas. "Trama" que resume uma
aflição presente até hoje em tantos filmes, mas
que raramente encontrou expressão tão "precisa"
-cuja força está, justamente, em sua imprecisão.
Sem medo do silêncio
Antonioni não tem medo do silêncio e do vazio,
ou seja, das lacunas que fazem parte da nossa
experiência de mundo, mas que o cinema, até
então, recusava-se a enxergar.
Esse modo de ver se expressa em um trabalho de
câmera genial, que nos obrigou a ver o cinema
com novos olhos e transformou Antonioni em um
cineasta de assinatura inconfundível, presente
até em seus filmes mais recentes, como o
criticado episódio do longa "Eros" ou o genial
curta "O Olhar de Michelangelo".
Se Antonioni tivesse filmado apenas esse plano
em toda sua vida, o fim de "Passageiro:
Profissão Repórter" já teria justificado sua
importância como cineasta. Mas a sua obra
comporta muitas outras imagens marcantes que, de
alguma forma, fazem parte do imaginário
contemporâneo, como os corpos no deserto e as
explosões fragmentadas de "Zabriskie Point" ou a
névoa industrial que toma conta da imagem e faz
desaparecer a atriz Monica Vitti em "Deserto
Vermelho". Imagens que permanecem.
(©
Folha de S. Paulo) |