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Aos 94 anos, morre Antonioni, mestre do cinema moderno

Luca Bruno - 05.set.02/Associated Press

Antonioni durante entrevista no festival de Veneza, em 2002
 

Logo após a morte do sueco Ingmar Bergman, cinema perde o diretor italiano que rompeu com o neo-realismo em obras como "A Noite" e "Blow Up"; enterro será amanhã, em Ferrara, na Itália

DA REPORTAGEM LOCAL

Sentado ao lado da mulher, Enrica Fico, em sua casa em Roma, o cineasta italiano Michelangelo Antonioni morreu na noite de segunda, aos 94.

Mestre do cinema moderno, Antonioni promoveu uma ruptura com o neo-realismo italiano desde seus primeiros longas, realizados na década de 50, até a consolidação de seu renome internacional, com "Blow Up -Depois Daquele Beijo" (1966).

Antonioni transformou em marca de seus filmes a abordagem das angústias individuais nos relacionamentos e da incomunicabilidade entre os amantes, em oposição à ênfase na temática social neo-realista. A característica "intimista" de Antonioni lhe valeu a alcunha de "o poeta do tédio".

Nascido na alta burguesia italiana, Antonioni formou-se em economia e comércio na Universidade de Bolonha.

Transferiu-se para Roma em 1939, para estudar no Centro Experimental de Cinema e tornou-se crítico colaborador da revista "Cinema".

Rossellini

Ele se aproximou do diretor Roberto Rossellini (1906-77), para quem roteirizou "Un Pilota Ritorna" (o retorno de um piloto), de 1942, ano em que foi assistente de direção do francês Marcel Carné (1909-1996), no longa "Os Visitantes da Noite".

Em seu primeiro longa de ficção, "Crimes d'Alma" (1950), dirigiu Lucía Bosé, que ontem lamentou a morte do cineasta, afirmando que ele era um homem "maravilhoso", embora "muito duro e exigente" com toda a equipe nas filmagens.

Em Monica Vitti, o cineasta encontrou sua atriz-fetiche. Estrela da trilogia formada por "A Aventura", "O Eclipse" e "A Noite", Vitti foi também companheira de Antonioni, que se casou duas vezes -com Letizia Balboni, em 1942, e com Enrica Fico, em 1986.

Com prestígio confirmado na Europa por múltiplos prêmios, Antonioni vai para os Estados Unidos, onde filma seu maior sucesso, "Blow Up" (1966), baseado em conto do argentino Julio Cortázar sobre um fotógrafo que registra involuntariamente um crime.

Em conseqüência de um derrame, em 1985, ele tinha restrição de movimentos e da fala.

O corpo de Antonioni ficará hoje exposto em câmara ardente, na Prefeitura de Roma. O enterro está previsto para amanhã, em sua cidade-natal, Ferrara, no Norte da Itália. (Com agências internacionais)

(© Folha de S. Paulo)

 


Silêncio predomina em obra e vida

Antonioni perdeu capacidade da fala em 1985, mas se expressava "além das palavras", como em seus filmes, segundo a mulher

Episódio de "Eros" é última obra de ficção do diretor; produtor cortou parte de uma cena de masturbação, "excessivamente" ousada

DA REPORTAGEM LOCAL

As artes plásticas, sobretudo a construção de colagens e móbiles, passaram a ser a principal atividade artística do cineasta italiano Michelangelo Antonioni, desde 1985, quando ele sofreu um derrame.
Após o acidente cerebral, Antonioni ficou praticamente sem fala e com movimentos restritos, mas perfeitamente lúcido.

Ele se locomovia em cadeira de rodas e tinha na mulher, Enrica Fico, 41 anos mais jovem do que ele, uma "tradutora" para suas conversas.
Quando Antonioni recebeu um Oscar pela carreira, em 1995, Enrica observou que expressar-se "através do silêncio ou além das palavras" sempre foi rotina para o cineasta, como é evidente em sua obra.

Protagonista de "Passageiro -Profissão: Repórter", o ator Jack Nicholson concordou: "No vazio, nos espaços silenciosos do mundo, ele encontrou metáforas que iluminam os lugares silenciosos de nossos corações e descobriu neles uma estranha e terrível beleza".

O último longa-metragem de Antonioni, "Além das Nuvens", foi realizado em 1995, sob a supervisão do diretor alemão Wim Wenders. A presença de Wenders no set de filmagens foi uma exigência dos investidores alemães na produção.

Wenders era a "garantia" de que o filme seria concluído, ainda que a saúde frágil de Antonioni o deixasse impossibilitado de fazê-lo.

"Eros"

O cineasta arquivou diversos projetos de longas que pretendia rodar após "Além das Nuvens", mas realizou o episódio "A Perigosa Linha das Coisas" no filme coletivo "Eros", com o qual retornou ao Festival de Veneza, onde havia obtido o Leão de Ouro em 1963, por "O Deserto Vermelho".

Para dirigir "Eros", Antonioni contou com a ajuda de Enrica. Os demais episódios do filme são assinados pelo norte-americano Steven Soderbergh ("sexo, mentiras e videotape") e pelo chinês Wong Kar-wai ("Amor à Flor da Pele").

O trecho de Antonioni é o mais ousado dos três e foi o único que sofreu cortes, a pedido do produtor. Três minutos de uma cena de masturbação feminina foram eliminados.

Em Veneza, antes da apresentação de "Eros", Kar-wai ressaltou a influência de Antonioni no cinema: "Ele é a luz-guia para mim e para os outros cineastas de minha geração".

O cineasta italiano, que se considerava "alguém que tem coisas a mostrar, mais do que a dizer", disse que, se não tivesse seguido a carreira de diretor, teria sido "arquiteto ou pintor".

Embora tenha conquistado prestígio desde o início de sua carreira e fosse reconhecido como um mestre do cinema desde os anos 60, os filmes de Antonioni jamais foram associados ao sucesso de público.

Em 1980, numa entrevista para uma publicação italiana, o diretor ouviu a pergunta: "Para quem o sr. faz filmes?".

Respondeu: "Faço filmes para um espectador ideal que é exatamente o seu diretor. Eu jamais poderia fazer algo contrário ao meu gosto, com o objetivo de ir ao encontro do público. Francamente, não posso fazer isso, mesmo que muitos diretores o façam. Além do mais, de que público estamos falando? O italiano? O americano? O japonês? O francês? O britânico? O australiano? Eles são todos diferentes entre si". (Com agências internacionais)

(© Folha de S. Paulo)


Antonioni criou cinema de incertezas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Roberto Rossellini fundou a moderna escola italiana sobre a crença de que o cinema é a arte capacitada a captar a realidade. Foi esse o princípio do que se chamou neo-realismo.

Quando se perguntou certa vez a Michelangelo Antonioni se ele negava os princípios neo-realistas, ele disse que não, que fazia um "neo-realismo sem bicicleta" (alusão a "Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica). Em outras palavras, se Rossellini acreditava no poder da câmera de fixar a realidade, coube a Antonioni introduzir uma nova questão: o que é a realidade?

Com Antonioni, a partir daí, o cinema desloca-se decisivamente da esfera da ação -que Rossellini já havia rarefeito- para a do tempo. O tempo substitui francamente a ação: ele é aquilo que faz e desfaz as coisas.
Com isso, inicia-se também uma busca desse real, e talvez seja ela que tenha feito de Antonioni um mestre das distâncias, aquele que mais se preocupou em captar não as pessoas, mas o ar que existe entre elas.

Quem mais poderia filmar aquela cena de "A Noite" (1961) em que Jeanne Moreau, andando sozinha pela cidade, depara com fogos de artifício? Imediatamente ela chama seu amante, Marcello Mastroianni. Ele vai até o local, só para constatar que já não há fogos.

Em "O Eclipse" (1962), a Bolsa de Valores cessa a atividade por um minuto em homenagem a um corretor que havia morrido. Durante um minuto não se escuta nada. Quando soa a sineta anunciando o final, volta o ruído infernal do pregão.

A cada filme, o cineasta parece perguntar-se o que é real, imaginário ou alucinação. Diante das calamidades do pós-guerra, Rossellini se perguntava "por que isso acontece?". Antonioni, mais novo, olhava esse mesmo mundo (ou quase o mesmo: já é uma Itália recuperada da guerra) e sua questão era: "o que, afinal, acontece?"

Para Rossellini, católico, a baliza desse mundo, por terrível que fosse, era Deus. Para Antonioni, materialista, Deus estava morto. O homem, portanto, está livre. Mas a que leva a liberdade? À crise. Antonioni filmou, quase sempre, crises, momentos de passagem (inclusive passagem da vida à morte, uma constante nada gratuita).

Depois de sua célebre trilogia, Antonioni acrescentou as cores a seu vasto repertório de imagens, em "O Deserto Vermelho" (1964) -lançado no Brasil como "O Dilema de uma Vida"-, antes de partir para o exterior, Inglaterra, onde Vanessa Redgrave tomou o lugar de sua ex-mulher Monica Vitti como estrela em "Blow Up" ("Depois Daquele Beijo", 1966).

A Inglaterra de Beatles e Rolling Stones talvez lhe parecesse o lugar ideal para dar seqüência às idéias de outro mestre, Alfred Hitchcock, que em "Janela Indiscreta" mostrara como é delicada a linha que separa a realidade da imaginação.

O fotógrafo de "Blow Up", ao contrário do de "Janela Indiscreta", capta a realidade com sua câmera. Ele passa da fabulação à materialidade: tem provas do assassinato que captou. Ou será que o crime teria sido apenas uma idéia construída pela montagem de imagens?

Se as dúvidas a respeito do real prosseguiram nas décadas seguintes, com "Profissão: Repórter" (1975) ou "Identificação de uma Mulher" (1982), até seu último filme Michelangelo Antonioni tratava de uma arte capaz de se aproximar como nenhuma outra das coisas, das pessoas, do tempo, mas que quanto mais chega perto, menos nítida se torna, mais instaura a incerteza. Com Antonioni, já não existem certezas.

O homem, que mesmo em Rossellini ainda é senhor do espaço, agora tateia um mundo que não domina, onde o sentido já não está dado, onde é preciso buscar, sem saber ao menos o que buscar. A crise do homem moderno passa por esse cinema moderno, do qual Antonioni foi um dos grandes mestres.

(© Folha de S. Paulo)


REPERCUSSÃO

ARNALDO JABOR, cineasta, em artigo na Ilustrada de 9/08/1994
"Ele é uma espécie de Albert Camus do cinema. Como ele, Antonioni teve uma revolta contra o real. Não se conformou com as convenções de Hollywood que determinavam o ritmo de nossas vidas. (...)Antonioni nos libertou de um mecanismo de defesa contra a morte, que o ritmo dos americanos inventou. A morte fica nua em Antonioni, o mistério, o suspense, o desaparecimento das pistas, a falta de motivo para a tragédia."

CARLOS REICHENBACH, cineasta
"O cinema moderno perde um dos seus ícones, uma das figuras essenciais da modernidade no cinema. O cinema mundial, o cinema como arte moderna, dá um salto fenomenal com o olhar do Antonioni. Não quero atrair o olhar da dona Fatalidade, mas agora, depois das mortes de Bergman e de Antonioni, só sobrou o Godard entre os grandes do cinema moderno. Que tenha muitos anos de vida. E não me ligue amanhã para dar outra notícia desse tipo, pelo amor de Deus."

DOMINGOS OLIVEIRA, cineasta
"O Michelangelo [Antonioni] foi o grande poeta do tédio. Ele é parte de uma geração que trouxe para a discussão cotidiana temas que não pertenciam a ela, dados culturais que mudaram as pessoas. Ele trouxe para a minha geração o tema da náusea, do tédio, foi muito importante. Era um cineasta de uma humanidade candente. É interessante observar que esses grandes cineastas estão morrendo tarde, o que parece mostrar que o bom caráter e a honestidade intelectual rendem frutos."

HECTOR BABENCO, cineasta
"Não está ficando ninguém, estão indo todos os mestres, todas as grandes referências. Para mim, o Antonioni era o perfeito contraponto ao neo-realismo do [cineasta italiano Luchino] Visconti. Cresci tendo na mão esquerda o fascínio pelo Visconti e, na direita, o minimalismo, o silêncio e a profundidade existencial do Antonioni."

JÚLIO BRESSANE, cineasta
Eu estive com ele algumas vezes, inclusive recebi-o em casa aqui no Brasil, fiz um filme chamado "Antonioni e Hitchcock - A Imagem em Fuga" e mostrei a ele. Estou bastante chateado. "Crônica de um Amor" (1950) e, principalmente, "A Dama sem Camélias" (1953) já antecipavam todo o cinema moderno. Foi um dos cineastas mais estudados e admirados da história, mas, apesar do esforço e de algumas tiradas de gênio, infelizmente deixou pouca influência no cinema de hoje, que teve uma queda grande de substância, vive submetido a uma grande tirania. É um dia de luto para o cinema.

NICOLAS SARKOZY, presidente da França
"Antonioni foi um poeta da elegância estilística, do rigor e da pureza. Sua obra está marcada pela dificuldade das relações entre os indivíduos e o mundo. Ele acaba de se unir a Ingmar Bergman além das nuvens."

JOSÉ MANUEL BARROSO DURÃO, presidente da Comissão Européia
"A morte de Michelangelo Antonioni deixa a Europa sem um de seus grandes artistas, alguém que se destacou no desenvolvimento do cinema na Europa e no mundo e cuja busca contínua por novas formas de expressão gerou obras-primas como "Blow Up" e "Zabriskie Point"."

GILLES JACOB, presidente do Festival da Cannes
"Ele foi um alquimista do íntimo, o maior aquarelista do coração que o cinema moderno já conheceu."

THEO ANGELOPULOS, cineasta grego
"[A morte de Antonioni e Bergman] é algo simbólico. Ambos haviam alcançado a plenitude em sua vida e em suas obras."

(© Folha de S. Paulo)


Análise

Duplo adeus marca fim de era

Diretor de "A Noite" apostou nos tempos mortos para retratar o mal-estar burguês em seus filmes

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Uma segunda-feira que registra a desaparição de Ingmar Bergman e de Michelangelo Antonioni não é um dia de luto apenas para os cinéfilos. A morte sucessiva destes dois gigantes marca também o fim de um tempo, especificamente o século 20, mas não de seus problemas.

Oriundos de uma mesma geração e alçados à cena pública quase simultaneamente, os dois diretores conseguiram juntos levar ao cinema a transformação pela qual passava o homem ocidental depois da barbárie da Segunda Guerra.

Bergman o fez através das subjetividades. Antonioni escolheu a objetividade.

A escolha da objetividade como núcleo da representação da crise do homem moderno decorre das origens cinematográficas de Antonioni, junto aos pioneiros do neo-realismo italiano. Passado, porém, o momento em que a proeminência do tema social era mais relevante, ele se afirma como diretor de longas com uma visada cujo foco se atém ao individual.

Tratava-se, agora, de prosseguir as conquistas estéticas do neo-realismo (um modo de representação da realidade assumidamente crítico) deixando de lado a bicicleta.

Em referência ao clássico "Ladrões de Bicicleta", de Vittorio de Sica, Antonioni escreveu em 1958: "Hoje, que eliminamos o problema da bicicleta, é importante ver o que há no espírito e no coração desse homem de quem roubaram a bicicleta, como ele se adaptou, o que sobrou nele de todas as suas experiências".

Desde o início, estava sendo gestada em sua obra uma nova estética, na qual a psicologia não se perde em discursos verbais, mas encontra lugar na forma como o diretor agencia sons e imagens.

Os chamados tempos mortos, constantes em seus filmes, se intensificam com a presença de espaços vazios, modo de explicitar a situação de crise vivida por seus personagens.

A desaparição da protagonista de "A Aventura", a perambulação de Jeanne Moreau em terrenos baldios em "A Noite" e as imagens urbanas desertas em "O Eclipse" são todos signos do mal-estar moderno: o do indivíduo burguês, que, mesmo mergulhado no conforto, na elegância ou nas distrações da sociedade de consumo, não consegue mais reencontrar sua alma ou algo equivalente que o preencha de sentido.

Obsessão pelo deserto

Esse processo de esvaziamento se consolida ainda mais na fase seguinte da obra de Antonioni, quando a obsessão pelo deserto é reiterada como tema ou cenário simbólico em filmes como "Deserto Vermelho", "Zabriskie Pont" e "Passageiro: Profissão Repórter".

Nesses trabalhos, Antonioni ressignificou, aos nossos olhos, o termo "niilismo", essa "vontade de nada/nada da vontade" da qual as gerações Prozac/ecstasy que vieram em seguida continuam tentando escapar.

Por isso, não soa exagerada a definição de Glauber ao escrever que "no século 19, Michelangelo seria filósofo como Hegel e talvez tivesse a mesma importância para o mundo de então como teve o filósofo. Hoje, substituindo a linguagem escrita pela imagem & som, Michelangelo usa o cinema como instrumento de especulação ao mesmo tempo em que funda, no filme, o estilo de sua moral".

Morto o artista, sua obra prossegue viva, contaminando, pelo modo de representar, o olhar de outros cineastas. Todo o Wim Wenders dos anos 70 atesta essa herança, depois transferida para parte do cinema oriental, na obra de diretores como os chineses Wong Kar-wai e Jia Zhang-ke, além de Tsai Ming-liang, de Taiwan.

Nesses vínculos, não é tanto a referência consagrada que importa e, sim, a necessidade de mostrar que o homem moderno pode estar morto com o século 20, mas nosso mal-estar no mundo não se prende a mudanças do calendário.

(© Folha de S. Paulo)


"Profissão Repórter" sintetiza linguagem do cinema moderno

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

A câmera se afasta do corpo de Jack Nicholson, deitado na cama de um hotel vagabundo em um vilarejo espanhol; passa pela janela do quarto, passeia pelo pátio onde carros estão estacionados e se detém em alguns personagens, antes de retomar seu movimento lento, quase imperceptível, para então voltar ao quarto e ao corpo do ator -cujo personagem, agora, está morto.

Essa imagem, que está nos minutos finais de "Passageiro: Profissão Repórter" (1975), tornou-se uma espécie de síntese do cinema moderno -além de fetiche de muitos cinéfilos, cineastas e técnicos, que até hoje tentam desvendar seu virtuosismo técnico (a câmera, entre outra proezas, "atravessa" uma cerca sem que haja cortes).

Mas essa imagem é emblemática não só por ser um plano-seqüência virtuoso, na grande tradição inaugurada por Orson Welles, mas principalmente por conter em si as características mais importantes do cinema moderno: a imagem que incorpora o tempo (recusando o corte da montagem) e o chamado extra-campo, ou seja, aquilo que está fora do quadro.

A "informação" mais importante desse plano para a compreensão narrativa do filme está fora da imagem. É o som do tiro que mata o personagem de Nicholson. Antonioni chegou a dizer que só criou esse plano para não precisar mostrar o assassinato: "A idéia de vê-lo morrer me aborrecia".

Um tiro que não se vê e que dá fim à vida "dupla" do personagem central, um repórter que, lá no começo do filme, assumiu a identidade de um traficante de armas. "Trama" que resume uma aflição presente até hoje em tantos filmes, mas que raramente encontrou expressão tão "precisa" -cuja força está, justamente, em sua imprecisão.

Sem medo do silêncio

Antonioni não tem medo do silêncio e do vazio, ou seja, das lacunas que fazem parte da nossa experiência de mundo, mas que o cinema, até então, recusava-se a enxergar.

Esse modo de ver se expressa em um trabalho de câmera genial, que nos obrigou a ver o cinema com novos olhos e transformou Antonioni em um cineasta de assinatura inconfundível, presente até em seus filmes mais recentes, como o criticado episódio do longa "Eros" ou o genial curta "O Olhar de Michelangelo".

Se Antonioni tivesse filmado apenas esse plano em toda sua vida, o fim de "Passageiro: Profissão Repórter" já teria justificado sua importância como cineasta. Mas a sua obra comporta muitas outras imagens marcantes que, de alguma forma, fazem parte do imaginário contemporâneo, como os corpos no deserto e as explosões fragmentadas de "Zabriskie Point" ou a névoa industrial que toma conta da imagem e faz desaparecer a atriz Monica Vitti em "Deserto Vermelho". Imagens que permanecem.

(© Folha de S. Paulo)

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