O crítico e escritor italiano Umberto Eco, autor de "O Nome
da Rosa", escreve sobre o "Dicionário Apaixonado de Nápoles", que está saindo na
França
UMBERTO ECO
Quando falamos de viajar pela Itália e de fazer o "grande percurso", certamente
evocamos o "gentleman" inglês bem-educado que explorava o continente (europeu),
encerrando o percurso na Itália, em geral em Nápoles.
Então nos vem ao espírito o "italienische Reise" dos alemães
cultos, pois, apesar de Goethe ter permanecido apenas quatro meses entre Nápoles
e a Sicília, sua descida para o sul da Itália ainda é memorável por um verso
citado por todos: "Conheces o país onde florescem os limoeiros?".
O mito napolitano é um topos da literatura francesa, razão por
que não deveria nos surpreender o livro de outro amante de Nápoles, o último na
ordem cronológica: Jean-Noël Schifano.
Só que Schifano é um apaixonado por Nápoles no sentido mais
sensual e erótico do termo, um amante violento e ciumento, apaixonado, febril,
embriagado.
E essa febre se manifesta numa escrita inflamada e brilhante,
que confere a seu ato de amor uma sedução furiosa. O difícil em minha leitura
deste livro é que Schifano é meu tradutor francês, e nutro por ele e seu estilo
uma admiração sem limites.
Mas sou um italiano do Piemonte (região que, há séculos, é
culturalmente mais francesa que italiana), e entre um piemontês e um napolitano
existe bem mais diferença que entre um sueco e um brasileiro da Bahia.
Por essa razão, me ver diante de um francês (mesmo que seja um
francês de pai italiano) mais napolitano que qualquer outra pessoa é algo que me
provoca um sentimento de mal-estar.
Naturalmente (mesmo que isso pareça o caso de um desses
anti-semitas que iniciam seu discurso com "alguns de meus melhores amigos são
judeus"), também sinto o fascínio de Nápoles.
E falo não apenas da paisagem mas da extraordinária humanidade
de seus habitantes e da postura de cavalheiro de muitos de seus intelectuais.
Mas não posso esquecer que o "Dictionnaire Amoureux" [Dicionário Apaixonado] de
Schifano está saindo na França pouco depois de "Gomorrhe", de Roberto Saviano,
ter sido lançado na Itália -um livro tão violento sobre Nápoles, capital da
Camorra, território de uma criminalidade desenfreada, que obrigou seu autor a
viajar sob escolta policial para fugir da vingança desse mundo impiedosamente
denunciado.
Em quem acreditar? Saviano, que nos fala de um inferno, ou
Schifano, que, com seu olhar velado pela nostalgia, nos fala de um paraíso?
É verdade que Saviano vive nesse inferno, enquanto Schifano, no momento, fala
dele à distância -mas ele viveu em Nápoles, e por muito tempo, como diretor do
Instituto Francês, e outros de seus livros também carregam a marca da cidade.
Seria fácil dizer que acontece com Nápoles o que ocorre com
tantas outras cidades: no Rio de Janeiro é possível passar meses em um dos
melhores hotéis de Copacabana ou Ipanema sem saber que a alguns quilômetros de
distância está o inferno das favelas; é possível desfrutar de Nova York,
circulando entre o Village, a Quinta Avenida, ignorando o Bronx; pode-se viver
esplendidamente em Paris, ignorando a periferia do quebra-quebra.
Superstição e intelectuais
Mas Schifano não ignora a Nápoles sombria, e a prova disso,
neste livro, está no capítulo sobre a Camorra, que retoma sem censura algumas
das passagens mais terríveis do livro de Saviano.
Schifano assume a postura de todos os amantes de Nápoles: é a
cidade de mil contradições, sede da superstição mais desenfreada e berço de
alguns dos maiores filósofos, não apenas da Itália mas do mundo (para citar
apenas quatro, Tomás de Aquino, Giordano Bruno, Giambattista Vico e Benedetto
Croce), caldo de cultura de uma criminalidade difusa que se autocelebra em suas
canções, sua comédia popular, seu cinema licencioso e palco de uma queixa
contínua feita à Itália, que critica nela exatamente os defeitos que seus
maiores artistas sempre exaltaram.
Como falar de uma realidade tão contraditória?
Schifano optou pela forma da lista alfabética: falar de Nápoles
por meio de verbetes intitulados Averne, Caligula, Flaubert, Mozzarella, Murat,
Pergolese, Pulcinella, San Severo, Sartre, Stendhal e Vesúvio lhe permite girar
diante dos olhos do leitor o caleidoscópio de uma cidade inapreensível sem,
aparentemente, chegar a um veredicto.
E o charme da narrativa, das evocações, das lembranças pessoais
e eruditas é tão grande que o leitor vai pouco a pouco cedendo a esse
encantamento.
E ele faz mal. Porque há uma ideologia subjacente, e, como dizia
no passado Mao, há um pensamento-Schifano, em harmonia completa com o espírito
mais profundo da napolitaneidade, que Schifano celebra ao nos dizer que "há mais
de 3.000 anos os napolitanos são tudo menos revolucionários e (que) as aventuras
de uma elite nobre distanciada do povo e da plebe não podem, aqui, ser mais que
uma paródia desastrosa ou risível".
Nápoles x Roma
Vem daí a polêmica (certamente justa, mesmo em termos
históricos) em torno de um Piemonte que, para realizar a unidade da Itália,
humilhou essa cidade e -no sonho de fazer do vilarejo miserável que era Roma, na
época a capital do novo reino- degradou Nápoles de seu status de única capital
verdadeira da Itália.
O que permite a Schifano -sem subtrair da Camorra e do rancor de
Nápoles com relação ao Estado italiano suas características mais repugnantes-
enxergar essa queda progressiva na ilegalidade como reação à insensibilidade de
um poder que sempre lhe permaneceu exterior.
Argumento principal dos defensores e apaixonados de Nápoles, os
quais, entretanto, evitam perguntar-se por que a cidade, no fim das contas,
aceitou igualmente bem a opressão e a reação criminosa contra a opressão.
De fato, não houve e não há algo de trágico e de fatal no
inconsciente dessa cidade, algo que a impediu de fugir de seu destino? Mas
talvez seja justamente esse destino trágico que faz o fascínio perturbador e
luminoso de Nápoles.
Schifano sabe que o culto a são Genaro (aquele que a própria
Igreja riscou da lista de seus santos) e a fascinante cerimônia da liquefação de
seu sangue são a apoteose da superstição e da mentira com a qual se consola um
povo infeliz.
Não é por acaso que outro grande amante de Nápoles tenha sido o
marquês de Sade, que escreveu: "Como fazer, entretanto, numa terra em que o
clima, os alimentos e a corrupção geral convidam tão perpetuamente à
devassidão... Que excitação! Que frenesi! Que fúria!".
E Schifano, mais adiante, comenta: "Não terá Sade encontrado seu paraíso
infernal sobre a lava napolitana?". Não se julga a paixão dos amantes. E depois,
para dizer de Schifano aquilo que ele próprio diz a respeito de Sade, em certo
momento: "Merda! Que estilo!".
UMBERTO ECO (1932) é escritor e ensaísta, especialista em
semiótica e estética medieval. É autor, entre outros livros, de "O Nome da Rosa"
(Nova Fronteira). A íntegra deste texto saiu na revista francesa "Nouvel
Observateur". Tradução de Clara Allain.
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